O filósofo John Gray |
A tendência a enxergar a atividade intelectual como uma prática que visa a “redenção” da sociedade despejou nas nossas melhores universidades hordas de militantes que não têm a menor ideia do que é o espírito de scholarship próprio à vida intelectual. Ensaio de Fernando José Coscioni para a revista Amálgama:
“Ao abolir o irracional e o irreparável, a utopia se opõe também à tragédia, paroxismo e quintessência da história. Qualquer conflito despareceria em uma cidade perfeita; as vontades seriam estranguladas, apaziguadas e milagrosamente convergentes; reinaria somente a unidade, sem o ingrediente do acaso ou da contradição. A utopia é uma mistura de racionalismo pueril e angelismo secularizado”Emil Cioran em História e Utopia.
Poucas
coisas no meio acadêmico me incomodam mais do que essa tendência que os
intelectuais têm para querer dizer como o mundo “deveria ser”.
O
papel daqueles que se dedicam a pensar, pesquisar e escrever é,
fundamentalmente, o de tentar explicar a realidade como ela é e o de
fomentar o gosto pela erudição. É claro que existem disputas (saudáveis)
para estabelecer a explicação mais satisfatória daquilo que a realidade
é, mas essa atitude compreensiva, que é a essência das ciências
humanas, não tem, necessariamente, nenhuma relação com o anseio
militante de “transformar o mundo” que anima a maior parte dos
estudiosos dessas áreas.
O
entranhamento da posição marxista de que não se deve apenas
“interpretar” o mundo, mas também “transformá-lo”, é tão intenso nesse
meio que, mesmo intelectuais que não são marxistas e não se definem
assim, acabam reproduzindo esse cacoete, que virou, por uma série de
razões, um verdadeiro senso comum naturalizado no comportamento e no
pensamento daqueles que trabalham com as humanidades. Existe, no meu
entendimento, uma incompatibilidade entre o distanciamento (que não tem
nada a ver com neutralidade) que é necessário para interpretar a
realidade social e a atitude política de preocupação com a mudança de
tal realidade.
Marx
que me perdoe, mas a busca da compreensão do mundo não tem,
obrigatoriamente, nenhuma “relação dialética” com a sua transformação. E
pior: muitas vezes, essa demanda de “transformação social”, pelas
concessões ideológicas que obriga as pessoas a fazer, pela limitação à
liberdade acadêmica que impõe e pelo discurso contraído e simplório
baseado em chavões que costuma difundir, trabalha no sentido de
impossibilitar a atividade intelectual. Certas modalidades de militância
política são verdadeiras catalisadoras do anti-intelectualismo puro e
simples; e o mais triste nisso tudo é que, em muitos casos, essas
modalidades têm a chancela de instituições de pesquisa e ensino
prestigiosas e, não raramente, se utilizam de dinheiro público para
financiar seus quadros.
Recorrentemente,
nós vemos intelectuais que, ecoando esse ethos “marxista”, atrelam
inteiramente a sua atuação no espaço acadêmico (e às vezes no espaço
público mais amplo) ao desejo de modificar os comportamentos das
pessoas, de dizer como elas devem pensar, quais são as “boas ideias”, os
“valores justos”, os “ideais corretos”, as formas de linguagem
“apropriadas”, os grupos sociais com demandas “legítimas”, o “lado certo
da história”, etc. Ou seja: estamos diante do moralismo de uma espécie
de “clero secular”.
Vários
autores já apontaram que a modernidade, ao invés de provocar uma
laicização de todos os aspectos da vida humana, nos traria, no terreno
intelectual, uma secularização do comportamento clerical (isso, aliás,
ficou bem ilustrado pelo papel das elites intelectuais nos
acontecimentos de 1789 e 1917), afinal, não tem nada mais próximo do
comportamento clerical do que o comportamento de um intelectual
engajado.
No
caso brasileiro, a tendência a enxergar a atividade intelectual como
uma prática que visa a “redenção” da sociedade, que é generalizada nas
humanidades na academia, acabou despejando nas nossas melhores
universidades hordas de militantes que não têm a menor ideia do que é o
espírito de scholarship próprio à vida intelectual, e que entendem,
única e exclusivamente, que a função da atividade acadêmica é a de
fornecer justificativas intelectuais para a militância política.
Essa
tendência é relativamente antiga na história ocidental. Contudo, no
século XX, o envolvimento de intelectuais com ideias políticas atingiu
um novo patamar de importância histórica e de consequências trágicas. Se
analisarmos as duas piores experiências totalitárias do século passado,
o nazismo e o comunismo, constataremos que ambas são, entre outras
coisas, tentativas de colocação em prática de ideias formuladas por
intelectuais. A crença iluminista de que a razão, o esclarecimento e as
atividades intelectuais formais levam, necessariamente, a um “mundo
melhor”, não passaria pelo crivo da experiência histórica do século XX.
A
ideia de que os seres humanos poderiam ser modificados por uma
experiência “revolucionária” conduzida por uma elite esclarecida que
criaria “homens novos”, tão presente nas crenças utópicas da
intelectualidade ocidental – especialmente naquela mais identificada com
a esquerda – foi comparada, pelo filósofo John Gray, em seu esplêndido
livro-ensaio, “The Silence of Animals”, de 2013, à crença em discos
voadores (sim, é isso mesmo!).
Gray
cita, na referida obra, um estudo conduzido pelo psicólogo Leon
Festinger e outros dois colaboradores (Henry Riecken e Stanley
Schacter), intitulado “When Prophecy Fails”, que foi publicado em 1956.
Festinger e seu grupo estudaram uma seita apocalíptica liderada por uma
mulher de Michigan (EUA) nos anos 1950. Essa mulher alegava ter
recebido mensagens de inteligências alienígenas anunciando o fim do
mundo, que ocorreria, segundo ela, nas horas anteriores à madrugada do
dia 21 de dezembro de 1954. A mulher e seus discípulos deixaram suas
casas, empregos, familiares e bens com o objetivo de estarem prontos
para o desembarque de um disco voador que, supostamente, iria
resgatá-los do planeta condenado na noite do apocalipse.
O
líder desse grupo de psicólogos ficou conhecido por formular a teoria
da “dissonância cognitiva”. De acordo com a teoria, os seres humanos não
lidam com crenças e percepções conflitantes testando-as contra os
fatos. Eles, na realidade, reduzem o conflito através da reinterpretação
dos fatos que desafiam as crenças às quais são mais apegados.
Com
o objetivo de testar a teoria, nos conta Gray, Festinger e seus
colaboradores se infiltraram na seita e observaram a reação de seus
membros quando o apocalipse deixou de ocorrer. Assim como a teoria
previa, a reação imediata dos membros da seita era de recusa à aceitação
de que seu sistema de crenças era enganoso. E não apenas isso, a reação
ia além disso: a frustração da expectativa pela chegada do apocalipse
os levava a um apego ainda mais intenso às crenças que professavam; a
expectativa não realizada tornava o proselitismo mais fervoroso.
O
filósofo usa essas conclusões de Festinger e seu grupo sobre a
psicologia de uma seita excêntrica para colocá-las em paralelo à
concepção utópica da intelectualidade “humanista” moderna que acredita
que, caso a luta pelos ideais políticos “corretos” tiver êxito, os seres
humanos poderiam ser mais “racionais” no futuro e mundo poderia,
necessariamente, melhorar, enquanto que, na realidade, o que a evidência
da ciência e da história mostra, é que os seres humanos são apenas
parcialmente e intermitentemente racionais. Logo, a partir da provocação
de Gray, poderíamos concluir que a esperança utópica na política e no
engajamento para modificar radicalmente a sociedade, dada a imperfeição
ontológica da nossa espécie e a evidência histórica acumulada, está
fadada ao fracasso.
Essa
esperança de “emancipação” constitui um caso de dissonância cognitiva
claríssimo com enormes consequências na história das ideias políticas
que pode ser colocado em paralelo com o que ocorreu com a seita estudada
por Festinger e seu grupo, que, como já dito, fortalecia as suas
crenças justamente quando as evidências não as confirmavam (um dos
exemplos mais claros de dissonância cognitiva presente na
intelectualidade ocidental contemporânea é a manutenção da crença de que
o “socialismo” ainda pode ser uma alternativa para sanar os inúmeros
problemas que as sociedades capitalistas têm; essa crença aglutina uma
dissonância cognitiva dupla: ela reforça a ideia de que existe uma
possibilidade de aperfeiçoamento do homem e, ao mesmo tempo, postula a
“benevolência” de um sistema socioeconômico que, se olharmos a
experiência histórica acumulada, se revelou uma gigantesca tragédia
política, econômica e moral).
Quando
nós vemos intelectuais, do conforto de suas cátedras acadêmicas
estáveis, pregando mudanças sociais radicais e incitando indivíduos ao
engajamento no mundo público, certamente, muitos deles acabam sendo
movidos por essa crença utópica de que as atividades intelectuais
formais, supostamente, poderiam contribuir para a formulação de
princípios que, se aplicados, criariam um “novo mundo” muito melhor do
que mundo como ele é. Se há uma coisa que o século XX mostrou com
clareza, é o quanto é possível criar um mundo pior sob a justificativa
de que se está lutando por um “mundo melhor”.
O
apelo dessa postura engagé, irresistível na academia brasileira, tem
gerado grande prejuízo para as ciências humanas, a educação, e a
formação intelectual dos estudantes e pesquisadores. É preciso afastar a
atividade acadêmica desses delírios utópicos e reestabelecer, em certas
áreas das humanidades, uma cultura intelectual que seja balizada por
dois ideais que são incompatíveis com o proselitismo político: o amor
pela erudição e o apego à busca da verdade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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