A vacina da Pfizer é preparada como um coquetel e o corpo reage como um exército. Veja como funciona essa vacina dentro do corpo. Marta Leite Ferreira para o Observador:
É
o princípio do fim de um problema de saúde pública que reformulou por
completo o nosso modo de viver. Dois dias depois do Natal, arrancou em
Portugal a vacinação contra a Covid-19 com a administração do primeiro
lote com 9.750 doses da solução desenvolvida pela Pfizer em parceria com
a BioNTech.
Se,
à escala mundial, a batalha contra o novo coronavírus foi elevada a um
novo nível, com a aprovação desta vacina (e, mais tarde, da vacina da
Moderna, que utiliza uma tecnologia muito semelhante), uma luta de
proporções bélicas para ensinar o organismo a batalhar contra o
SARS-CoV-2 desencadeia-se também no interior das nossas células assim
que a recebemos.
Para
compreender o que se passa no corpo humano assim que uma pessoa é
vacinada é preciso ir buscar o livro de receitas do consórcio
Pfizer-BioNTech, as cábulas de Biologia do 11º ano, os melhores manuais
de estratégia militar e, para embrulhar tudo isto, pedir explicações a
Henrique Veiga Fernandes, imunologista e investigador da Fundação
Champalimaud.
É
trabalhoso, intrincado e implica um monte de nomes complicados? Sim,
não podemos negar. Mas também envolve M&Ms, um cocktail muito
parecido com licor de anis, cães farejadores e células que jogam Pacman
com outras células.
Capítulo 1: o (difícil) armazenamento da vacina
A
vacina BNT162b2 da Pfizer-BioNTech é feita de umas partículas
nenométricas — uma escala um milhão de vezes mais pequena que o
milímetro — feitas de material genético e de uma bolsa de lípidos. Pense
nelas como uma drageia de M&Ms: o recheio é uma molécula de ARN
mensageiro (mRNA) — uma cadeia genética que, neste caso, contém a
informação sobre a proteína S do novo coronavírus. Como estas moléculas
são muito frágeis e seriam destruídas pelas enzimas do organismo caso
fossem injetadas diretamente no corpo, foram encapsuladas em bolhas
feitas de lípidos — moléculas de gordura.
Mas
estas bolsas, tal como os M&Ms, decompõem-se quando sujeitas a
temperaturas elevadas. Aliás, basta que a vacina seja guardada em salas à
temperatura ambiente (20ºC) durante mais do que cinco dias para
comprometer a segurança e a eficácia. Por isso, a Pfizer e a BioNTech
conceberam umas embalagens especiais — uns contentores que, se não forem
abertos, mantêm a temperatura no interior a -70ºC durante 10 dias e que
serão utilizados no transporte da vacina. Mas têm outra vantagem:
também podem ser aproveitados para armazenar os frascos durante até 30
dias se forem reabastecidos com gelo seco a cada cinco. Caso haja
necessidade de guardar as vacinas durante mais tempo, então devem ser
mantidas em equipamentos de arrefecimento especializados.
Cada
frasco da vacina BNT162b2 contém cinco doses de 0,3 mililitros. Antes
de serem administradas aos portugueses, os frascos devem transferidos
para frigoríficos normais, a uma temperatura entre 2ºC e 8ºC, para
descongelarem; durante um máximo de cinco dias. Em alternativa, os
frascos também podem ser colocados à temperatura ambiente, mas sem nunca
ultrapassar os 25ºC, caso a vacina seja aplicada num prazo máximo de
duas horas após a retirada dos contentores gelados. Já se sabe porquê:
os nossos M&Ms podem destruir-se — o que, no caso de uma vacina,
significa tornar-se ineficiente ou mesmo perigosa.
Cada
frasco contém cinco doses de 0,3 mililitros. Antes de serem
administradas aos portugueses, os frascos devem transferidos para
frigoríficos normais, a uma temperatura entre 2ºC e 8ºC para
descongelarem; durante um máximo de cinco dias. Já se sabe porquê: os
nossos M&Ms podem destruir-se, o que, no caso de uma vacina,
significa tornar-se ineficiente ou mesmo perigosa.
Capítulo 2: como preparar a vacina e administrá-la
Agora,
é como fazer um cocktail. Quando alcançar a temperatura ambiente, o
profissional de saúde (que, neste caso, é o nosso barman) vai inverter o
frasco para cima e para baixo 10 vezes, sem agitar. O resultado será
uma solução de cor esbranquiçada, semelhante a um licor de anis.
A
seguir, deve introduzir-se no frasco original 1,8 mililitros de uma
solução injetável de cloreto de sódio (sal, vá). Esta solução deve ser
injetada com uma agulha esterilizada de calibre 21 ou mais estreita. A
mesma agulha, mas com o corpo da seringa já vazio, deve ser utilizada
para remover o equivalente a 1,8 mililitros de ar do interior do frasco.
Para isso, basta puxar o êmbolo da seringa até que a rolha de retenção
atinja a marca dos 1,8 mililitros.
Agora,
é preciso diluir os ingredientes. Para isso, o frasco volta a ser
invertido para cima e para baixo 10 vezes, mais uma vez sem agitar. Se a
vacina diluída estiver transparente ou tiver partículas em suspensão, o
frasco não deve ser administrado no paciente. Se continuar
esbranquiçada e sem partículas visíveis, o cocktail está pronto. Cada
frasco deve ser rotulado com data e hora de diluição; e pode voltar a
ser armazenado a uma temperatura entre 2ºC e 25ºC. No entanto, deve ser
administrado o mais depressa possível e num prazo máximo de seis horas.
O
frasco volta a ser invertido para cima e para baixo 10 vezes, mais uma
vez sem agitar. Se a vacina diluída estiver transparente ou tiver
partículas em suspensão, o frasco não deve ser administrado no paciente.
Se for esbranquiçada e sem partículas visíveis, o cocktail está pronto.
No
momento da vacinação, o profissional de saúde vai retirar 0,3
mililitros do cocktail com recurso a uma agulha e seringa esterilizadas.
A dose deve então ser injetada no deltoide, o músculo na zona superior
do braço, responsável por movimentá-lo em todos os sentidos e que cobre o
ombro. Nunca deve ser administrada no interior dos vasos sanguíneos,
imediatamente debaixo ou no interior da pele.
Capítulo 3: a receita para cozinhar a proteína S nas células
A
superfície das células é composta por uma membrana muito fina de
lípidos e de proteínas. Como as bolsas que transportam o mRNA nas
vacinas também são feitas de lípidos, as moléculas de gordura, há uma
grande afinidade entre elas e as membranas celulares. Por isso, quando
as partículas da vacina se aproximam das células, elas fundem-se e o
mRNA entra nas células.
Para
compreender os passos que se seguem, é importante conhecer alguns
conceitos, normalmente lecionados na disciplina de Biologia e Geologia
no 11º ano.
O
ARN mensageiro (mRNA), a molécula que contém a informação genética
relativa a uma determinada proteína, é uma sequência de quatro blocos
chamados nucleótidos, todos eles representados por uma letra, que podem
ser adenina (A), uracilo (U), citosina (C) e guanina (G). O primeiro
liga-se sempre ao segundo e o terceiro liga-se sempre ao quarto.
Cada
conjunto de três destes blocos construtores é um codão, isto é, um
pedaço de informação que, quando lido no interior da célula, vai
recrutar um aminoácido (peças que se organizam para dar origem às
proteínas) através de uma outra molécula — o ARN transportador (tRNA).
Esta
molécula traduz a informação presente no mRNA para recrutar uma
sequência específica de aminoácidos, espalhados no interior das células.
Os nucleótidos que compõem o ARN transportador são complementares às
sequências do mRNA. Ou seja, se a sequência de codões no mRNA for
“AUG-UUU-GCA”, por exemplo, a sequência de anti-codões do tRNA será
“UAC-AAA-CGU”. O primeiro codão do mRNA é sempre “AUG” e sintetiza o
aminoácido metionina.
Dentro
do organismo, a receita continua. O tacho tem um nome complexo:
chama-se retículo endoplasmático rugoso. É aqui que a mensagem do mRNA
vai ser lida e a proteína S do novo coronavírus vai começar a ser
produzida. Até aqui, o corpo ainda não sabe que está a ser invadido
porque o mRNA introduzido pela vacina é parecido com o mRNA que já
existe naturalmente no nosso corpo. É por isso que a proteína S vai
sendo produzida sem lançar o alarme do nosso sistema imunitário.
Dentro
do tacho há umas pequenas peças chamadas ribossomas. Essas peças
deslizam ao longo da molécula de mRNA para produzir a proteína S. Como?
Todas as proteínas são feitas de ingredientes mais pequenos: os
aminoácidos. Quando todos os aminoácidos codificados no mRNA se
juntarem, nasce uma nova proteína S, as estruturas em forma de espigão
que dão o aspeto coroado ao SARS-CoV-2 e que têm a capacidade de se
ligarem aos recetores ACE-2 na superfície das células.
É
aqui que entra a estratégia militar: algumas partes da proteína vão
migrar até à membrana celular e ficar expostas, outras vão ser partidas
aos bocados por tesouras que existem nas células — os lisossomas. Esses
bocados também vão ficar expostos na superfície da célula, mas no topo
de umas moléculas que funcionam como montras: as HLA, sigla em inglês
para antígeno leucocitário humano.
É
aqui que entra a estratégia militar: algumas partes da proteína vão
migrar até à membrana celular e ficar expostas, outras vão ser degradas
por "tesouras celulares" — os lisossomas. Esses pedaços também vão ser
apresentados na superfície da célula, mas por umas moléculas que servem
de montra de certas proteínas ao sistema imune: as HLA, sigla em inglês
para antígeno leucocitário humano.
Em
circulação na corrente sanguínea estão os glóbulos brancos, também
conhecidos por leucócitos, células que funcionam como cães farejadores e
que protegem o corpo humano dos invasores. Quando as moléculas HLA
expõem proteínas que fazem parte do nosso organismo, os farejadores
reconhecem-nas e não fazem nada contra elas. Neste caso, no entanto, os
fragmentos são tão diferentes das proteínas do nosso corpo que os
glóbulos brancos bravejam um grito de guerra. E o sistema imunitário
pega em todas as armas para reagir.
Os
sargentos, neste caso, são células como os neutrófilos, macrófagos e as
células dendríticas, que protegem o corpo de invasores e engolem
partículas assinaladas como estranhas pelos glóbulos brancos. Estes
sargentos também produzem armas, particularmente uns químicos que
funcionam como mediadores imunológicos — as citocinas. São elas as
responsáveis pelos efeitos secundários reportados após a vacinação, como
a dor no local da injeção ou a febre, por exemplo. Entretanto, outra
categoria de sargentos, as células fagocitárias, entram numa espécie de
Pacman e engolem as células que têm a proteína S.
Ora,
as citocinas têm duas missões neste campo de batalha. A primeira é
ajudar os linfócitos B a produzir grandes quantidades de anticorpos
contra as proteínas invasoras. Os anticorpos são outra categoria de
armas, concebidos para terem uma grande afinidade com a proteína S. Se
no futuro houver uma nova batalha e a proteína S voltar a atacar, estes
anticorpos ligam-se a ela e impedem que se una aos recetores ACE-2.
A
segunda missão das citocinas é induzir uma grande movimentação de
linfócitos T — agentes de uma força SWAT que identifica as células
infetadas e matam-nas para travar o avanço do inimigo. Entretanto, um
outro tipo de linfócitos-T, os reguladores, entram nas trincheiras como
se fossem capacetes azuis em busca de paz: entram em ação com o objetivo
de controlar a inflamação provocada pelas citocinas. É que, se
circularem em excesso, o corpo entra em guerra civil por causa de um
excesso de atividade do sistema imunológico. Isso compromete algumas
funções essenciais do organismo
A
segunda missão das citocinas é induzir uma grande movimentação de
linfócitos T — agentes de uma força SWAT que identifica as células
infetadas e matam-nas para travar o avanço do inimigo. Entretanto, um
outro tipo de linfócitos-T, os reguladores, entram nas trincheiras como
se fossem capacetes azuis em busca de paz: entram em ação com o objetivo
de controlar a inflamação provocada pelas citocinas.
Esta
estratégia militar do sistema imunitário até este ponto é a resposta
inata e desenvolve-se ao longo dos primeiros dias após à administração
da primeira dose da vacina. As células que entram em batalha até este
momento desenvolvem uma resposta imunitária que não são dirigidas
especificamente para o SARS-CoV-2 — a reação que têm será a mesma para o
vírus da gripe ou para outro qualquer. A segunda dose da vacina serve
para desenvolver uma verdadeira operação militar: a criação da imunidade
celular.
Capítulo 4: segunda dose, a cereja no topo do bolo
A
partir de certa altura, a quantidade de linfócitos B e de linfócitos T
começa a diminuir progressivamente. Por isso, 21 dias depois da
administração da primeira dose, o corpo recebe a segunda dose com o
objetivo de estimular ainda mais a criação de uma resposta imunitária
adquirida. A quantidade destas células volta a aumentar e elas tornam-se
mais específicas, e mais eficientes, contra o SARS-CoV-2. Além disso,
quando são recrutadas para a guerra nesta segunda fase, mantêm-se no
campo de batalha durante muito tempo.
Estes
passos desenvolvem a imunidade celular, que não depende de anticorpos,
mas sim da presença de células que destroem outras células infetadas. É
como se o exército não precisasse de utilizar um arsenal tão grande de
armas porque lhe basta a experiência dos soldados no terreno — militares
com formação específica contra o SARS-CoV-2. Os imunologistas chamam
resposta adaptativa: as células podem reagir com outros invasores, mas
têm uma grande capacidade de atacar o novo coronavírus em particular
depois de contactarem pela primeira vez com ele.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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