"Em vez de submeter nossa herança cultural a uma avaliação crítica, buscando o que há de bom nela e tentando entender e endossar os laços que nos unem, muitos dos chamados guardiões da cultura – professores de humanidades, curadores, produtores, críticos, conselheiros culturais e autoridades — optaram por dar as costas a ela". Em ensaio publicado por The Imaginative Conservative e traduzido para a Gazeta do Povo, o filósofo Roger Scruton analisa essa cultura do repúdio e chama a atenção para a importância da tradição na arquitetura e na música:
Aceita-se
há cem anos, desde “A Decadência do Ocidente”, de Oswald Spengler, que
“Ocidente” denota uma forma ampla de vida, que essa forma prosperou e se
expandiu e que ela hoje está decaindo na esterilidade e na autodúvida. A
sensação de se estar vivendo o final dos tempos está tão disseminada
que aqueles que buscam renovar nossa herança cultural, bem como
reafirmar sua fé ou se inspirar no legado de autoconfiança subjugado
pelo Iluminismo tendem a ser considerados ou excêntricos ou reacionários
perigosos. É o que acontece principalmente nas universidades e
instituições culturais, onde uma espécie de antipatia morosa quanto à
herança cultural ocidental se junta a uma dúvida profunda quanto a todos
os que querem ensiná-la e se inspirar nela.
Não
só porque nós, no Ocidente, desenvolvemos uma reação crítica a nossas
tradições. A autocrítica é uma virtude e parte do que distingue a
Civilização Ocidental de suas rivais mais evidentes, como a Civilização
Islâmica. As grandes reviravoltas do espírito ocidental se deram por
meio de questionamentos – na Renascença, por exemplo, quando nossas
práticas artísticas foram comparadas às da Antiguidade, na Reforma,
quando nossas instituições religiosas foram ridicularizadas, satirizadas
e por fim reformadas em reação ao ceticismo radical, no Iluminismo,
quando tudo foi virado de cabeça para baixo em nome da Razão. Em todas
essas revoluções, nossos antepassados mantiveram o interesse e a
inspiração, o que se vê em todas as instituições que sobreviveram até os
tempos modernos e, claro, nas extraordinárias instituições artísticas
que são a glória da nossa civilização.
Em
certo momento, contudo, e sem motivo aparente, a autocrítica deu lugar à
repulsa. Em vez de submeter nossa herança cultural a uma avaliação
crítica, buscando o que há de bom nela e tentando entender e endossar os
laços que nos unem, muitos dos chamados guardiões da cultura –
professores de humanidades, curadores, produtores, críticos,
conselheiros culturais e autoridades — optaram por dar as costas a ela.
A
ideia dominante parece ser a de que “tudo está morto. Podemos fingir
fazer parte disso, mas o resultado será um pastiche ou o kitsch”. E a
repulsa pela tradição vem acompanhada por denúncias quanto à ordem
social e à moral dos que antes a apreciavam e criavam e cujos
comportamentos sexistas, racistas e hierárquicos aparentemente os afasta
irremediavelmente de nós. Acho que todos os que já frequentaram uma
aula de humanidades em nossas universidades conhecem bem esse tipo de
postura e a “cultura da repulsa” por ela fomentada.
Dois
exemplos dessa cultura do repúdio me interessam, uma vez que elas
ilustram o enorme dano que essa cultura causa em nossa sociedade. O
primeiro é a arquitetura e o segundo é a música clássica, formas de arte
fundamentais para a saúde e felicidade de uma cidade moderna, e ambas
traídas sem motivo por “especialistas” em cujas mãos eram foram
colocadas.
A
arquitetura e a música são dignas de comparação por um motivo muito
importante: enquanto a música é uma das belas artes, e uma forma de arte
que faz uso de todos os seus recursos para fins espirituais, a segunda é
uma habilidade medida, em parte, em termos de sua utilidade, e que não
pode, por natureza, demandar genialidade ou originalidade de quem a
pratica. Essa distinção é reconhecida desde ao menos o nascimento da
estética filosófica, no século XVIII, e é cada vez mais importante para
nós, numa era em que críticos e empresários consideram a
“originalidade”, a “criatividade”, a “transgressão” e a “ousadia” como
valores estéticos primários, desprezando o amor à beleza como uma forma
duradoura de nostalgia.
Quando se trata de construir uma cidade, um empreendimento que requer muitas mãos ao longo de muitos anos e no qual o objetivo principal é criar uma comunidade duradoura unida por uma sensação de acomodação, raramente é possível convocar um único arquiteto para compor o resultado final. Ver uma cidade como um ato de originalidade, criatividade e autoexpressão é justamente excluir a arquitetura do mundo das necessidades humanas, colocando-a em seu próprio museu – como a cidade inabitável de Le Corbusier em Chandigarh. As grandes cidades bem-sucedidas da Civilização Ocidental — Paris, Florença, Barcelona, Edimburgo, as cidades alemãs tragicamente destruídas na Segunda Guerra Mundial — não foram concebidas como obras de arte e certamente não foram construídas tendo a ideia de originalidade em mente. Elas são soluções para o problema da acomodação. Elas alcançam a ordem e a unidade por meios que nos são naturais, quando nos esforçamos para nos adaptar aos outros em empreendimentos aos quais não demos início. As cidades usam padrões, materiais e detalhes que combinam com naturalidade; seus prédios se enfileiram pelas ruas elas expressam um senso de proporção e escala que as pessoas compreendem sem saber como explicar. E elas são organizadas de acordo com uma espécie de “gramática generativa”, que é como uma linguagem que todos podem aprender e da qual podem se apropriar, mas que geralmente é dita numa prosa simples e sem originalidade.
Essa
gramática foi muito estudada e passou por períodos de renovação e
revisão, sobretudo na Renascença e durante o surgimento dos estilos
georgiano e neogótico vitoriano. Mas ela sobreviveu até os tempos
modernos e pode ser vista nas colunas de ferro fundido e nas cornijas de
latão de Lower Manhattan, assim como nos arcos góticos de uma igreja no
interior da Inglaterra ou na fenestração rítmica de uma sacada
georgiana. Qualquer um pode aprendê-la e qualquer um pode também
aprender a adaptá-la a novos usos e materiais.
De
repente, contudo, diante do movimento modernista, as escolas de
arquitetura deram as costas para essa gramática e a tradição por ela
representada — uma tradição tão antiga quanto a Civilização Ocidental.
Não que elas tenham apenas absorvido o espírito crítico dos modernistas
ou que estivessem procurando formas de usar os novos materiais e novos
conhecimentos de engenharia de modo a harmonizá-los com a tradição do
urbanismo. Elas estavam num estado absoluto de repúdio. O passado era o
passado e não estava mais disponível. Não pertencemos mais a ele. Temos
de recomeçar com algo totalmente novo. A construção deve ter início com
base em pressupostos completamente novos e qualquer tentativa de usar
uma ideia antiga ou o velho vocabulário e a antiga sintaxe genial com os
quais as pessoas construíam umas ao lado das outras, em harmonia,
fosse uma espécie de traição, um deslize no pastiche, na nostalgia, na
mentira.
Qual
o sentido exato desses termos? E, se é que eles têm algum sentido, este
sentido é ruim? E, se é ruim, será que a única forma de evitá-lo é por
meio de algum ato de repúdio total? Essas são questões que precisam ser
resolvidas, mas que não são discutidas nas escolas de arquitetura.
E
deveríamos pensar nesse fato ao lado de outro, o fato de que, sempre
que pensamos nas formas antigas de construção, é em torno delas que as
pessoas gravitam não apenas como turistas (se bem que... quantos
turistas visitam o centro de Tampa ou os subúrbios de concreto de
Paris?), mas também como moradores.
Na
verdade, se você explorar as residências de muitos arquitetos
modernistas descobrirá que elas se escondem discretamente por trás de
fachadas elegantes no interior imaculado ou (no caso de Richard Rogers)
numa aldeia de pescadores em Portugal, construída com materiais antigos e
de acordo com o idioma tradicional, sem acesso por estrada.
As
pessoas fogem das novas estruturas que lhes são impostas por
engenheiros e construtoras que buscam obter crédito por seu gosto
elevado, mas que não ousam viver nos lugares que constroem. Por que,
diante disso, não é possível dar continuidade à tradição — sem repetir o
que foi feito, mas adaptando-o aos nossos hábitos? O que provocou esse
rompimento radical, esse ato de repúdio? Por que pensamos que a
adaptação, da qual dependem todas as comunidades, espécies e indivíduos,
já não está mais disponível?
Música
A
mesma pergunta assombra o mundo da música clássica. Como sugeri, os
dois casos são distintos, já que a maior parte da arquitetura é produto
de pessoas comuns e sem inspiração, orientadas (na melhor das hipóteses)
pela boa educação e respeito, enquanto a maior parte da música é
produto da inspiração artística. Mas essa diferença torna a comparação
ainda mais relevante.
A
tradição clássica na música evoluiu por meio de um diálogo contínuo
entre compositores criativos e a comunidade autossustentável de
musicistas, ouvintes e frequentadores de concertos. Ao contrário da
arquitetura, que nos é imposta independentemente da nossa vontade, a
música só pode ser imposta sobre os que a desejam ouvir ou tocar e,
portanto, sobrevive apenas graças a esse apelo. Quando um estilo cansa,
quando um vocabulário musical vira repetição e clichê, ele perde sua
plateia ou mantém o interesse apenas distante dela, como no caso da
música ambiente nos restaurantes.
A
tradição, então, depende da renovação – do artista que, como Beethoven,
descobre um novo uso e um novo território nos quais antigos artifícios
podem ser utilizados. Essa situação é dramatizada com beleza em Die
Meistersinger von Nürnberg, no qual Wagner personifica o diálogo entre
músico e plateia.
A
nova linguagem melódica de Wagner se adapta à tradição musical de
Nuremberg, que por sua vez se adapta à melodia de Wagner. O drama mostra
a plateia se transformando em reação à música e a música se moldando em
reação à tradição existente, de modo a se tornar parte dela,
transformando-a.
Uma
transformação assim estava na mente de Schoenberg quando ele deu início
a suas experiências com atonalidade. Ele começou a perceber que a
música experimental não tem sentido algum se ela não puder criar uma
plateia a ela adaptada – uma plateia capaz de sentir prazer ao ouvi-la e
que reagisse a ela de uma forma semelhante à sua reação ao repertório
existente. Quando pensamos no resultado disso (e, para mim, a melhor
forma de descrever isso é como uma coisa cheia de remendos), a intenção
era renovar uma tradição, e não dar as costas a ela.
Na
época de Darmstadt, contudo, a cultura do repúdio já tinha tomado conta
do cenário. Stockhausen e Boulez já não era uma questão de adaptar a
música à plateia e a plateia à música. Era uma questão de recomeçar a
partir de um conceito novo da arte do som. E, se a plateia não gostasse
do resultado, isso só provava a realidade dessa nova música como algo
“ousado” e “transgressor”.
Além
disso, na nova cultura controlada pelo Estado da Europa do pós-guerra,
já não era preciso ter uma plateia. As artes podiam ser bancadas
completamente pelo Estado e o Estado, instituição socialista, podia ser
totalmente controlado pelos modernistas – pelos que acreditam no
progresso e no futuro para o qual o passado finalmente se refutou.
Essa,
em essência, foi o legado cultural da Alemanha pós-guerra, e ele se
provou contagioso até mesmo nos Estados Unidos. Toda tentativa, por
parte dos compositores, de estabelecer uma espécie de continuidade em
relação ao repertório existente, atraindo uma comunidade de ouvintes
cujos ouvidos foram moldados pela linguagem atonal, era vista com
suspeita pela vanguarda e, em geral, desprezada como pastiche ou clichê.
É
interessante, aqui, o caso de George Rochberg, o compositor
norte-americano que se juntou ao culto pós-guerra do serialismo e deu
suas contribuições extremamente competentes para o gênero, antes de
admitir para si mesmo, depois da morte trágica do filho, que o
serialismo é desprovido de conteúdo expressivo e não podia ser um
veículo para sua dor. Rochberg precisou de coragem para fazer o que sua
consciência artística mandava e voltar à tradição clássica. “Não há
provincianismo maior”, escreveu ele em 1969, “do que essa forma especial
de sofisticação e arrogância que nega o passado”.
Portanto,
Rochberg permitiu que sua música fosse guiada pelo ouvido, e não por
teorias da moda, e produziu três ou quatro dos mais belos quartetos de
corda do século XX. O terceiro quarteto foi considerado por Andrew
Porter “quase irrelevante” e se tornou alvo de desprezo e
ridicularização por parte dos críticos acadêmicos, e mais ainda entre os
críticos populares. E, a seu tempo, ele teve uma influência real sobre
compositores como David Del Tredici e John Corigliano. Apesar de
considerados pastiches, os quartetos de Rochberg, ao que me parece, são
genuinamente originais – e a originalidade deles consiste em seu
respeito pelos princípios da harmonia romântica e da voz principal,
mesmo quando expressando o luto muito real do compositor.
A
maioria das pessoas, hoje, vive em cidades – ou melhor, elas se reúnem
em torno de cidades, cada vez mais evitando o centro delas, procurando
proteção nos subúrbios. Mas se perguntarmos a elas o que as atrai ainda
no centro da cidade, duas coisas se sobressaem: primeiro a arquitetura
tradicional, que cria a visão de uma comunidade de seres livres em paz;
depois o espaço sinfônico, que convida o ouvinte a uma visão interior da
mesma comunidade livre.
E,
assim como uma cidade se renova por meio da adaptação aos novos
hábitos, ao mesmo tempo mantendo uma ligação com o passado, a tradição
clássica na música se renova, incorporando novos sentimentos e novas
formas de convívio social na tradição viva do som polifônico. Esse tipo
de renovação não pode ser alcançado por meio da repulsa. Somente por
meio da adaptação ao que nos é útil é que podemos aceitar e dar forma ao
novo.
Nosso
modelo para o futuro, portanto, não deveriam ser as obras estéreis de
Stockhausen e Boulez, e sim as tentativas pacientes de adaptar o antigo
ao novo e de encontrar notas que toquem o coração dos ouvintes porque
expressam o âmago do compositor. A música de George Rochberg nos põe
nessa direção. Mas ela levanta a questão que incomoda todos os amantes
da música de hoje em dia: será que podemos encontrar uma sintaxe musical
tão expressiva quanto a linguagem tonal de Rochberg, mas que não se
distancie demais da cultural popular do mundo que a cerca?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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