quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Rótulos, ignorância e um tiquinho de má-fé: o que significa ser ultraconservador.

 



Ultrarrevoltados com a indicação de uma conservadora para a Suprema Corte dos EUA, ultraeditores gravaram nela as letras escarlates da heresia progressista. A crônica de Paulo Polzonoff Jr.:


No fim de semana, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, confirmou a indicação de Amy Coney Barrett para a Suprema Corte do país. Se o Senado aprovar, e tudo leva a crer que aprovará, ela vai assumir o lugar ocupado por Ruth Ginsburg. É, eu sei. O assunto é ultra-aborrecido e, em condições normais de temperatura e pressão, mereceria apenas uma nota com uma breve biografia da indicada.

Mas vivemos tempos ultraturbulentos, você sabe. E até a indicação de uma juíza para a Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja influência no Brasil é praticamente nenhuma, vira um campo de batalha. Não à toa, no fim de semana, diante da indicação de Barrett, dois ultraeditores de pelo menos dois ultrajornais não hesitaram e tascaram um “ultraconservadora” para se referir a ela.

Não sei se é ultraignorância ou ultramá-fé dos meus colegas. Pode ser também apenas uma ultracoincidência – hipótese que talvez revele uma ultraingenuidade de minha parte. O fato é que o prefixo “ultra” seguido pelo rótulo que para muitos ainda soa como palavrão, “conservadora”, confere à indicação de Trump um ar maquiavélico, como se tudo fosse uma grande conspiração com algum objetivo macabro.

Aí você vai dar uma lida rápida na biografia de Barrett para descobrir o que a torna não apenas conservadora, mas, na visão dos progressistas, ultra. Casada, católica, mãe de sete filhos. Contra o aborto. Foi pupila de Antonin Scalia. Leitora de Flannery O’Connor e C. S. Lewis. Defensora da 2ª Emenda da Constituição Americana, aquela que garante às pessoas o direito a portar armas, mas que alguns brasileiros, novamente por ultraignorância ou ultramá-fé, acreditam garantir às pessoas o direito a sair por aí atirando em quem bem entender.

Me confesso ultradecepcionado. Afinal, para alguém merecer o rótulo de “ultraconservadora” eu esperava, no mínimo, que fosse ultramonarquista. Esperava ainda que não tivesse dois filhos não-biológicos, e ainda por cima com mais melanina na pele. Esperava uma pessoa que defendesse, talvez, a pena de morte para gays, como acontece ainda em alguns lugares que os ultraprogressistas teimam em enaltecer, acredito que só por birra mesmo.

Mas eu ultraentendo a ultramá-vontade de meus colegas ultrajornalistas. Primeiro porque o que está em jogo na indicação de Barrett é mesmo a possibilidade de a Suprema Corte dos EUA reverter o infame caso Roe vs Wade, que permitiu a prática do aborto por lá. Isso causa nos ultraprogressistas uma espécie de ultraurticária moral e intelectual. Daí a necessidade de marcá-la com um rótulo capaz de causar escândalo.

Para “piorar”, Barrett é uma originalista – espécie que, dizem, já habitou o Cerrado brasileiro, mas que ultimamente está em extinção. Ela acredita que a enxuta Constituição dos Estados Unidos basta para resolver os conflitos jurídicos atuais, mesmo tendo sido escrita há 233 anos. Porque os valores contidos naquele documento, sobretudo o respeito às liberdades individuais e à vida, merecem ser defendidos, ou melhor, conservados para o bom funcionamento da sociedade.

E deve ser ultradifícil para alguém entender isso na realidade brasileira, na qual juízes ultraprogressistas de um Supremo Tribunal Federal ultra-ativista interpretam a caudalosa Constituição Millennial de 1988 a seu bel-prazer, cada qual acreditando numa solução ultracriativa para conflitos pontuais, com consequências quase sempre nefastas.

Daí porque é mais fácil (ultrafácil!) pintar as letras escarlates “UC” nas costas de Barrett ou de qualquer um (pior ainda se for uma) que não reze pela cartilha do progressismo.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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