Penso num poeta-político discreto que, no meio de um discurso qualquer, solta um decassílabo sem que a plateia de puxa-sacos perceba. A crônica de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo:
São
23 horas da madrugada. O telefone ancião, daqueles de disco, toca na
cabeceira da minha cama. Levo uns segundos para me lembrar de quem sou
eu e onde estou. Tiro o telefone do gancho e, com a voz pastosa de quem
sonhava com um piquenique nos Alpes, espero pelo pior.
Do
outro lado da linha, a mais severa das editoras, Marcela, não diz nem
“alô” e já vai esbravejando. Eu, que estava à espera de uma tragédia
urgentíssima que requereria minha atenção àquela hora, talvez a morte de
um grande líder ou, Deus me livre, uma crase errada, ouço do outro lado
a voz raivosa de Marcela e seu mui peculiar senso de urgência.
Entre
berros, mas sem nenhum palavrão, porque Marcela é acima de tudo uma
dama, entendo que o grande problema que precisa ser resolvido agora
mesmo, às 23 horas de uma madrugada fria, é o fato de eu não estar
escrevendo textos muito inspiradores. Tento argumentar que ando cansado,
que a vida não está fácil, que é preciso transbordar inspiração para
inspirar os outros. Coisa e tal. Mas, do outro lado, só escuto a ameaça:
ou escrevo um texto inspirador agora mesmo, a partir do próximo
parágrafo, ou estou demitido. Ouviu bem? De-mi-ti-do!
Me
levanto. Ao meu lado, minha mulher ronrona alguma coisa. Entre a
responsabilidade e a preguiça, escolho a primeira só para tornar a
segunda mais prazerosa. Tiro as remelas dos olhos e arrasto os pés até o
escritório, que fica na Ala Sul da mansão. Ao longo do caminho, obrigo
meu cérebro a trabalhar. Inspirar, inspirar, inspirar. O que posso
escrever para inspirar o leitor quando eu mesmo não me sinto muito
inspirado?
Há
outras dificuldades pelo caminho. A primeira e mais difícil delas é
fugir do lugar-comum. Textos inspiradores sempre têm chuvas torrenciais,
repare só, e campos verdejantes e lutas infatigáveis e coisas do
gênero. Sem falar no enredo que é sempre a mesma história do homem caído
que acredita em si mesmo e que vai conseguir se redimir e encontrar a
felicidade. Acredite em mim, sou o primeiro parágrafo de todas as
histórias do gênero e já vi muito mendigo na primeira frase virar barão
na última.
Ligo
o computador e levo um susto com o brilho da tela. Lá fora, a noite com
uma neblina que não me permite nem enxergar a araucária plantada há 40
anos por um tal Lucrécio de Almeida, que não tem nada a ver com a
história, mas resolveu aparecer aqui, então que seja. Aqui dentro, o sol
muito branco do processor de texto, todo um universo esperando que meus
dedos toquem o teclado para dar origem a tragédias, risos e, sob as
ordens enfáticas de Marcela, inspiração.
Ocorre-me,
pois, que já há algum tempo ando querendo escrever sobre poesia. Mas
ninguém aguenta mais poesia hoje em dia. Ninguém lê, ninguém consome.
Poesia é coisa ou de maconheiro hiponga ou de conquistador barato em
programa matinal, seduzindo as secretárias executivas com aquela
metáfora que não faz sentido algum, mas, ah, tão profunda a dor.
Escrever (arght) poesia é uma vontade que tenho empurrado para baixo do
tapete ou, quando não consigo, para dentro de um caderninho desses com
uma fechadura fácil de abrir, mas que nos passa uma sensação enganosa de
segredo.
E,
ninguém sabe, nem a Marcela, mas há noites em que, lá por volta das
19h, um pouco antes de pegar no sono, fico inventando formas de colocar
poesia nos textos em que escrevo, na esperança de dar vazão a esse lado
constrangedoramente poeta, de inculcar nas pessoas um gostinho pela
poesia e, por fim, de expressar qualquer coisa que não caiba em prosa,
só em verso.
Mas
as pessoas só querem saber de política. De Bolsonaro, de Lula. De
Trump. Da mais recente frase que ofendeu alguém. De todo esse aparente
nada que preenchem nossos dias com uma ilusão de tudo. Que nos exaure. E
que diabolicamente faz com que, no dia seguinte, assim que acordamos,
busquemos tudo de novo. Ele disse, ela disse. Urgente, escândalo.
Inadmissível e inaceitável. Desonestidade intelectual. Não acredito que
você disse uma coisa dessas. Deixa de ser burro, vá estudar.
Daí
que pensei que criar um personagem que, além de político de opiniões
fortes, para agradar aos homens que conhecem as leis, mas não um mero
versinho do Bandeira, por acaso também é poeta. Não precisa ser assim um
Murilo Mendes. Mas também não precisa ser um Sarney. Penso num
poeta-político discreto, mas talentosíssimo, que no meio do discurso de
inauguração de uma estrutura qualquer solta um decassílabo sem que a
plateia de puxa-sacos perceba. E, em fazendo isso, deixe escapar umas
lágrimas que os jornais no dia seguinte discutirão se são ou não de
crocodilo.
Um
político que, no meio do passeio entre a multidão que o adora, mas que o
odiaria se soubesse que ele comete versos, pegasse um bebê ranhento no
colo e compusesse ali, sob o sol inclemente de uma cidadezinha do
interior, uma estrofe silenciosa que, se transposta para o papel, talvez
fosse até motivo para impeachment.
Mas
o espaço acabou e o político-poeta não surgiu. Resta, contudo, uma
mísera frase e a inspiração tornada decreto: esteja inspirado!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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