sábado, 29 de agosto de 2020

A Argentina e o fantasma da venezuelização


A Argentina está a caminho de ser uma nova Venezuela? Não. Não está. A Argentina só está sendo a Argentina. Artigo de Luciano Coutinho para a revista Oeste:

A tragédia venezuelana é tão insofismável que se transformou em comparativo para qualquer outra crise que surge na região. Em 2018, durante a campanha eleitoral, por exemplo, o então candidato Jair Bolsonaro usou a imagem do regime fundado por Hugo Chávez para alertar sobre os riscos de o PT transformar o Brasil em uma nova Venezuela.

Nesta semana, o norte-americano Donald Trump também recorreu aos horrores do chavismo para dizer aos eleitores de seu país que Joe Biden é um sujeito que pensa como os bolivarianos e pode conduzir os Estados Unidos para o mesmo abismo no qual a Venezuela despencou.

Ambos erraram. Não dá para pensar que basta um socialista para transmutar realidades tão singulares em uma cópia venezuelana. A Venezuela é produto de muito mais do que isso.

Aliás. O recurso de comparar tudo com a Venezuela é tão desmesurado que foi e é útil até para petistas e psolistas — estes, sim, sonham com uma Brazuela — que cochicham no ouvido de alguns influenciadores que Nicolás Maduro é um ditador de direita e que Jair Bolsonaro reproduz o chavismo porque vive cercado de militares.

“Venezuela” é hoje um tipo de ofensa. Um turpilóquio político que nem sempre descreve com precisão o que está acontecendo e o que está por vir.

Recentemente, o editor-executivo da Revista Oeste, Silvio Navarro, publicou em seu Twitter a melhor definição do que está se passando no nosso vizinho do sul: “A Argentina é um país que a cada vinte anos volta vinte casas”.

O que isso quer dizer? A Argentina está repetindo a própria receita. Os argentinos dançam a mesma música melancólica composta exclusivamente por eles. O país sul-americano já foi um dos mais ricos do mundo. Mas a praga do populismo entrou de tal maneira no DNA político e social que, de ponta a ponta do espectro político, vê-se, em maior ou menor grau, a herança do modelo local que se transformou na armadilha da qual quem tenta escapar não sobrevive.

No início do século passado, a Argentina teve um PIB per capita maior que o do Reino Unido. Quando comparadas com as da Espanha, as riquezas argentinas eram ainda mais viçosas. Somente em 1986, a antiga metrópole conseguiu superar a capacidade de produção de riquezas dos argentinos, que viriam a seguir descendo a ladeira.
A Argentina paga o preço do populismo. Quando Juan Domingo Perón assumiu pela primeira vez a Presidência do país, em 1946, a Argentina tinha um PIB per capita que a colocava no clube dos países ricos. Ele morreu em 1974, no início de seu terceiro mandato, conquistado depois de um lapso de 18 anos fora do poder. O país ficou sob o comando da viúva de Perón e vice-presidente, Maria Estela, coroando uma era de vício no Estado.
O argentino médio passou a preferir um Estado paternalista. Uma vida subsidiada ou, de preferência, totalmente gratuita. Um governo honesto e competente é bem-vindo. Mas, como os benefícios passaram a ser vistos como direitos, quem pensar em mudar as regras enfrentará ruas apinhadas de piqueteros ao som insuportável de metal produzido por panelas. Um primitivismo político recentemente importado pelo Brasil.

Esse foi o preço que Mauricio Macri pagou, ainda no primeiro ano de governo, quando deixou de maquiar o câmbio e de subsidiar a tarifa de energia elétrica.

O bolivarianismo leva à tentação de pintar com suas cores todos os erros políticos e econômicos da América Latina. No entanto, muitos dos vícios que parecem ser bolivarianos são nativos da Argentina, assim como alfajor, tango e Maradona.

Um longa lista de calotes (nove até agora), congelamentos de preços, expropriações e políticas econômicas irresponsáveis faz da Argentina um melancólico caso em que ela mesma, em certo momento da história, foi a “Venezuela” da vez.

Sem, obviamente, os elementos catastróficos que acompanham o regime de Nicolás Maduro, toda vez que a economia da Argentina afundava, a do Brasil era arrastada para o buraco. Fenômeno que ficou conhecido como “efeito Orloff”.

Voltando ao pavor da venezuelização, Néstor Kirchner e sua viúva Cristina tiveram tempo hábil suficiente para mimetizar o país nos moldes da Venezuela de Chávez. O ditador fanfarrão estava vivo e fazia jorrar apoio e dinheiro para a Argentina. Mas nem assim nossos vizinhos do sul replicaram o caos do vizinho do norte.

A Venezuela é um caso singular. Para chegar aonde chegou, Chávez cumpriu um montão de etapas, que passaram pela transformação das Forças Armadas em um cartel de drogas, pela destruição completa do setor produtivo local e pelo massacre da economia até atingir a total criminalização do Estado.

Isso é mais complexo, sofisticado e profundo que o populismo endêmico da Argentina. Nem Brasil nem Argentina são imunes à devastação promovida por governos incompetentes. Dilma Rousseff serve para nos lembrar. Mas nem mesmo a maior crise econômica do século nos fez sequer passar perto do que é a Venezuela sob o chavismo.

A Argentina vai sair bem dessa. E tudo ficará bem até a próxima crise.
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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