A crônica semanal de Alberto Gonçalves, publicada nos finais de semana pelo Observador:
António Costa. Um príncipe da política, um imperador da
pandemia. Além da competência, do amor à verdade e da empatia face ao
cidadão comum, esta boa alma conduziu-nos pela tormenta com a leveza de
um anjo. Quem não se sentir agradecido, não merece ser português. Quem
se sentir, merece.
Álcool-gel. Desinfecte as mãos de 4 em 4 minutos. “As Mãos
Sujas”, de Sartre, relata o drama de um sujeito que não o fez e desatou a
contaminar os vizinhos.
Austeridade. Conforme prometido, não haverá austeridade. No
máximo, há fome, um capricho amaricado e destinado a promover a dra.
Jonet da “caridadezinha”.
Autoridades. A palavra inclui governantes, autarcas, técnicos,
polícias e articulistas do “Público”. Todos são excelentes, todos
contribuíram para o milagre português, que consiste em aumentar o número
de infectados numa fase em que a Europa já quase erradicou o bicho – o
que deixa o bicho confundido. A miséria e a humilhação são uma factura
razoável por tão magnífico trabalho. Agradeça-lhes, de mão no peito,
sempre que os vir.
Casa. A RTP, pelo menos, continua a pendurar a “hashtag”
#fiqueemcasa no cantinho do ecrã. O governo manda-nos sair de casa. A
DGS tem dias. O meu vizinho dorme na sala do condomínio. Obedeça a
todos.
Crianças. Não as tenha. Se já as teve, desenrasque-se.
Cultura. Antigamente, a cultura no sentido lato terminava nos
habitantes da polinésia que davam cabeçadas em rochedos com propósitos
de acasalamento. Agora o conceito alargou-se a qualquer desvairado que
guinche umas cançonetas. Grave é que a cultura sofre com a crise e nós
sofremos com a cultura. Felizmente, o governo vai ajudar a cultura, em
nome dele e com o nosso dinheiro.
DGS. Ao longo de toda a epidemia, a DGS mostrou ser
exactamente o que se esperava de uma organização de burocratas
instruídos nas fileiras do socialismo: um espectáculo. Já a senhora que
dá a cara e os palpites por aquilo é um espectáculo dentro do
espectáculo. O fundamental é respeitarmos as recomendações que dali vêm,
mesmo, ou sobretudo, se estas são absurdas, prepotentes, divertidas ou
contraditórias entre si. Em qualquer das hipóteses, são sempre para o
nosso bem.
Espectáculos. Todos proibidos excepto os protagonizados por comunistas ou, desculpem a redundância, artistas cómicos.
Etiqueta respiratória. A “nova normalidade” implica novos conceitos, que dão aos que os utilizam sem se rir a ideia de que estão a par dos tempos.
Jornalismo. Ontem, dia 29, o secretário de Estado da Saúde fez
questão de agradecer “aos senhores jornalistas pelo papel que têm
desempenhado”. Não vale a pena comentar: o papel que vão receber
justifica o papel que desempenham.
Marcelo Rebelo de Sousa. Passou os primeiros tempos da
epidemia a lavar calções em casa, passa os últimos a passeá-los na rua.
Pelo meio, disse umas coisas sobre a mola. Um senhor.
Máscaras. Obrigatórias em espaços fechados, à chave ou com o
trinco. Também ficam impecáveis quando se conduz sozinho ou se passeia
nos cumes do Parque Natural do Montesinho. Davam uma falsa sensação de
segurança até começarem a dar uma verdadeira sensação de segurança. O
seu uso mostra obediência às regras e, de brinde, permite que uma pessoa
respire o seu próprio ar, e não o ar que anda por aí à solta sabe-se lá
em que condições.
Praias. Um pequeno grupo de estudiosos calculou a lotação
ideal para cada praia nacional. Um grupo maior de contribuintes paga o
justo esforço dos estudiosos. O manual da DGS, com meras 34 páginas,
oferece ao banhista tudo o que este precisa saber acerca dos
comportamentos a adoptar. Basta respeitar semáforos, “sinalética”,
orientações de circulação, trigonometria do toalhão e, principalmente,
obedecer à directiva de não se deitar em cima de desconhecidos. Se o
cidadão for presidente da República, arranja um “esquema” e contorna os
regulamentos com facilidade. Se o cidadão for irresponsável, arranja um
voo e vai espraiar-se em lugares desprovidos de instruções.
Projecções. Incontáveis gráficos foram criados por incontáveis
génios a descrever, por prestidigitação ou vidência, a evolução da
epidemia. A coisa só falhou enquanto os génios não perceberam que o
segredo estava em ajustar as previsões aos factos. A partir daí, não
houve engano possível. É fácil, por exemplo, saber quantos casos haverá
no dia 5 desde que se faça a previsão no dia 6.
Restaurantes. Apenas frequentáveis em conjunto por membros do
mesmo agregado familiar, o que limita o grupo de comensais a umas quatro
pessoas – ou 57, se integrarem a “comunidade cigana”. Leve
comprovativos de parentesco e residência. E leve máscara, claro,
opcional no momento de enfiar a comida na boca.
Segunda vaga. Inúmeros especialistas, que disseram tudo e o
seu contrário sobre a primeira vaga do vírus, receiam particularmente a
segunda. Eu confesso-me apreensivo com a quinta, a sétima e a décima
oitava. À cautela, fuja dos picos e das curvas chatas e proteja-se até
2067.
SNS. Graças ao PS e ao dr. Arnaut, é o melhor serviço de saúde
do mundo. Não fora a escassez de material básico, a mais baixa “ratio”
de unidades de cuidados intensivos da Europa (incluindo Bulgária,
Roménia e quiçá Albânia) e a necessidade de matar poucos milhares de
pacientes com outras doenças de modo a abrir alas para a Covid, o SNS
roçaria a perfeição. Certo é que, fora os sofredores de maleitas
oncológicas, cardiovasculares, respiratórias, hepáticas, renais e etc.,
hoje não há ninguém que admita recorrer aos hospitais privados, de resto
a nacionalizar com urgência. Se se sentir mal, não vá ao “público”, mas
louve-o com o fervor de uma, ou duas, Catarina Martins.
Trump. Uma anedota de homem, que matou com as próprias mãos
cem mil americanos. Permite que a rapaziada das nossas televisões se
convença de que faz jornalismo e mordisca o poder. O poder de lá,
obviamente.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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