A crise que estamos a cavar será a que iremos ter de suportar. Podemos
fechar os olhos mas, os que ainda não cegamos, temos a obrigação de
alertar: ninguém vai enfrentar a crise por nós. Artigo de André Azevedo
Alves e Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
De Sócrates a Platão, de Schopenhauer e Nietzsche a Heidegger, não
faltam reflexões filosóficas que procuram explicar a nossa relação com a
morte e a forma como ela determina a nossa existência e a nossa relação
com o mundo. A consciência da nossa finitude, de sermos um “ser que
caminha para a morte”, ora moldada na preocupação, na angústia, na
culpa, ora alienada nos apetites humanos ou na exorcização do
sofrimento, encontra na ânsia de infinito, na libertação do corpo e na
utopia da eternidade os tónicos para tentativas de superação que, ainda
assim, não conseguem resolver uma evidência intransponível: a morte
física é, para todos nós, uma fatalidade inevitável. Se a morte física
nos conduz a um vazio, a uma eternidade plena, ou nos fecha de novo em
ciclos de regresso a uma natureza reincarnada, é um mistério que
continua por resolver abrindo espaço para o medo e para um desconhecido
que após milhares de anos ainda não conseguimos resolver.
“No dia seguinte ninguém morreu”. Assim começa e acaba um romance que
anuncia no primeiro dia do ano, de um qualquer ano, num qualquer lugar,
um novo tempo sem morte. Uma Morte personificada, burocratizada e
humanizada decide, por razões que só a Ela lhe dizem respeito, suspender
o seu expediente por largos meses, deixando toda uma população
estupefacta, em crise, perante a absoluta alteração daquilo que deveria
ser, empurrando toda uma sociedade para o caos político, económico e
social e a mais grave desordem. Saramago, no livro “As Intermitências da
Morte”, faz-nos esta proposta ousada, bem-humorada e polémica. Uma
proposta que coloca a descoberto os problemas de algo que seria
aparentemente tão consensual como suspender a Morte. Para lá das
diversas provocações e convocações éticas e morais que a obra encerra (e
que não é nosso intuito aqui dirimir ou repristinar), Saramago merece
ser lido à luz da presente crise, na medida em que transforma a nossa
aspiração de imortalidade (ou o nosso medo da morte) numa distopia onde a
sua suspensão conduz um país imaginário a uma profunda perturbação e ao
colapso das estruturas políticas, sociais e religiosas.
“As Intermitências da Morte” é escrito na linha do “Ensaio sobre a
Cegueira”, romance maior onde Saramago nos descreve, aqui de uma forma
brutal e, diga-se, não doutrinária, o colapso de uma sociedade provocado
por uma súbita e inexplicável epidemia que cega a população, a qual
enfrenta um enorme desafio de sobrevivência perante a repentina
fatalidade. Saramago convida-nos aqui a refletir sobre o impacto que uma
cegueira colectiva pode ter na sobrevivência e na convivência social,
mostrando de uma forma crua como a degradação ética, o autoritarismo e a
indiferença face aos outros vão ganhando espaço à medida que a
misteriosa doença se apodera dos cidadãos.
Saramago oferece-nos dois romances que na sua caricatura nunca
imaginámos pudessem ser tão assustadoramente reais, retratando como a
aspiração de uma eternidade sem morte se pode transformar num inferno,
abrindo o espaço para o caos político, económico e social; e
exibindo-nos também como perante circunstâncias adversas a cegueira da
razão faz emergir o pior do Homem, desumanizando-o.
Nas últimas semanas tentámos alertar, em artigos escritos aqui no
Observador, para o perigo que a cegueira causada pelo medo representa,
corroendo o espírito e o discernimento individual e coletivo, e
condicionando as decisões. Manifestámos a nossa inquietação perante a
alienada exigência de soluções implacáveis e simplistas, imediatas,
drásticas e mágicas, construídas a partir de pressupostos não-reais que
ignoram a complexidade da realidade, as suas interdependências e a
multiplicidade dos interesses legítimos em jogo. Procurámos sinalizar a
necessidade de começarmos a preparar a consciência coletiva e cada um de
nós para o regresso à normalidade, uma nova normalidade com naturais
restrições e faseada, mas onde a maioria de nós forçosamente terá de
conviver com o vírus, e aceitar riscos inevitáveis. Chamámos também à
atenção para as consequências que sofreríamos se não ponderarmos o
impacto das medidas a tomar, reduzindo toda a nossa ação coletiva ao
combate ao vírus.
Nas últimas semanas começamos também a ter sinais claros das
consequências que as decisões de fechamento e confinamento têm na vida
dos portugueses. Aqui no Observador, podemos
ler por exemplo que existem estudos que indicam que o ano de 2020 teve
os últimos dez dias de março com mais mortes dos últimos 12 anos, onde
um excesso de 702 mortes (o triplo das mortes por COVID-19 identificadas
à data) não encontram explicação na pandemia do novo coronavírus.
São ainda relatadas as preocupações da Ordem dos Médicos para a
existência de doentes a deixar de tomar medicamentos ou a adiar
tratamentos com medo de serem infetados nas unidades de saúde, assim
como a existência de pessoas que optaram por esperar vários dias em casa
após sofrer um AVC recusando-se ser transportadas ao hospital.
Relativamente à educação, a decisão do Governo de só manter em aberto
o regresso a aulas presenciais para o 11.º e 12.º anos – e mesmo para
esses anos de forma limitada – levanta também questões importantes sobre
os impactos a curto, médio e longo prazos para os estudantes afetados.
Se no ensino superior esses impactos poderão ser, na maioria das áreas,
relativamente limitados pela possibilidade de substituição por meios de
ensino não presencial, para os restantes níveis de ensino os impactos
serão necessariamente pesados e difíceis de limitar – em especial para
os alunos de contextos sociais e familiares mais desfavorecidos. Para
além do impacto na aprendizagem, temos de ponderar as perdas resultantes
da socialização, da prática desportiva, e até os riscos em matéria de
maus tratos que o confinamento faz aumentar e cuja sinalização torna
mais difícil. Só o clima generalizado de medo pode explicar que, com os
dados conhecidos, se decida no início de Abril manter uma quarentena
educativa generalizada até Junho. Face à incerteza que ainda existe, não
seria aconselhável um regresso simultâneo de todos os alunos às
escolas, mas faria todo o sentido ponderar e deixar em aberto a
possibilidade de um regresso faseado ao mesmo tempo que se monitorizam
os respetivos efeitos.
Noutro sentido, surgem estimativas que apontam para uma recessão que
poderá oscilar entre perdas de 2,7% e 20% do PIB, cenários que nos
empurram para a pior recessão que o país alguma vez viveu em tempos
recentes (o PIB contraiu 5,1% em 1975 e 3,2% em 2009). As informações
que recebemos da Europa mostram que, pese embora o otimismo político e
as grandes proclamações que compreensivelmente se fazem para consumo
interno, dificilmente grande parte das perdas decorrentes da pandemia
não terão de ser absorvidas por cada um dos países.
Tentar suspender a Morte deixando em suspenso todo um país pode ser
um desejo latente, mas é em si uma impossibilidade, um absurdo, e
reflete também uma profunda cegueira e desumanização. Podemos aceitar
medidas de restrição, inclusive de confinamento, como resposta a
necessidades provisórias de reorganização dos serviços de saúde e atraso
da propagação do contágio, mas tal não pode transformar-se e escalar –
como tem vindo a ocorrer – para se tornar na forma estruturante como
encaramos a adversidade e enfrentamos um vírus. Muitos dos que hoje
paralisaram e estão disponíveis para capturar ou entregar as liberdades
para que se opere este “combate ao vírus” fazem-no a partir de uma
posição confortável – em muitos casos, ilusoriamente confortável –,
esquecendo que as crises têm impactos assimétricos.
As quarentenas e os confinamentos não são todos iguais. E prejudicam
mais os mais pobres e os mais frágeis, assim como todos aqueles que não
terão meios ou oportunidades para reconstruir as vidas que venham a ser
desorganizadas ou destruídas. Um
importante e oportuno estudo realizado pelo Centro de Sondagens e
Estudos de Opinião da Universidade Católica evidencia precisamente esses
efeitos profundamente assimétricos do confinamento. Com base numa
amostra representativa da população portuguesa, conclui-se por exemplo
que “a proporção dos que [já] viram reduzir-se o salário ao fim do mês é
maior entre os que ganhavam menos: 43% dos que tinham um rendimento até
mil euros mensais perderam rendimento”. Sem esquecer que serão os
jovens à procura do primeiro emprego, os precários, os trabalhadores
independentes e menos qualificados, os imigrantes e os pequenos
empresários, comerciantes e agricultores os mais severamente penalizados
pela crise.
O discurso simplista e aparentemente altruísta dominante, que exige
“a colaboração de todos”, a “mobilização geral”, a socialização dos
danos, e que promete que “vai ficar tudo bem”, encerra na verdade em si
um profundo egoísmo: o de ignorar que temos a obrigação moral de assumir
gradualmente alguns riscos para que possamos anular os danos que
resultam já hoje do confinamento e minimizar os que inevitavelmente
resultarão de uma grande recessão. É certo que há ainda uma margem
substancial de incerteza mas com os dados que entretanto já conhecemos
não é racionalmente aceitável que continuemos a exigir de uma forma tão
acrítica o sacrifício de tanto do nosso presente e do nosso futuro no
combate a uma única ameaça em concreto, criando condições de
vulnerabilidade significativas para encarar todas as restantes ameaças
que enfrentamos.
Depois de convocarmos a sociedade para que sejamos “guerrilheiros de
sofá”, impõe-se um apelo a que gradualmente nos levantemos, os que
estamos sentados, sendo solidários e assumindo cada um os riscos
adequados à sua própria condição, e regressemos, com prudência, mas
também com sentido de responsabilidade, a uma normalidade possível. A
crise que estamos a cavar será a que iremos ter de suportar. Em vidas.
Em sonhos destruídos ou adiados. Podemos fechar os olhos mas, os que
ainda não cegamos, temos a obrigação de alertar: ninguém vai enfrentar a
crise por nós.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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