Aquilo que as democracias liberais fizerem no futuro próximo para salvar
a nova geração perdida vai determinar a sobrevivência do regime
democrático no futuro médio. João Pereira Coutinho, via FSP:
Foi Ernest Hemingway quem popularizou a expressão “geração perdida”. O
escritor falava da sua geração, que tinha vivido a Primeira Guerra
Mundial. Em 1914, a civilização cometia suicídio nas trincheiras da
Europa. Os jovens que viveram, combateram e sobreviveram ao cataclismo
passaram a ter uma existência espectral, sombria, à deriva. Perdida.
Pelo menos, até o momento em que ditadores diversos resgataram essas
vidas com uma ilusão de sentido.
Não estamos em guerra. Qualquer comparação com as carnificinas de
1914 é absurda. Mas como negar que existe uma nova geração perdida entre
nós? Falo dos millennials, claro, sobretudo daqueles que tiveram o
supremo azar de nascer entre 1985 e 1995, mais coisa, menos coisa. Os
primeiros entraram na vida profissional com a crise financeira de 2008.
Ou, melhor dizendo, não entraram. Foram as primeiras vítimas. Os
segundos foram largados na arena com a pandemia de 2020. São as
segundas.
Será que a nova geração perdida vai marchar alegremente pela democracia liberal?
Mas os desastres da economia não explicam tudo. Como lembra a revista
Economist, que dedica ao assunto um artigo pungente, é a meio dos
nossos 20 anos que os valores individuais se cristalizam. A pergunta é
óbvia: quais serão os valores desses fantasmagóricos millennials? Não
falo apenas de “estilos de vida”, como “viver o presente como se não
houvesse amanhã” ou “poupar para o futuro incerto” (estudo recente, nos
Estados Unidos, informa que os millennials massacrados pela crise
financeira de 2008 se dividiam entre esses dois grupos). Falo de valores
políticos, ou seja, democráticos: será que a nova geração perdida vai
marchar alegremente pela democracia liberal?
É cedo para dizer. Mas um dos melhores estudos que conheço sobre a
relação entre os mais jovens e a democracia (Youth and Populist Wave, de
Roberto Foa e Yascha Mounk) permite levantar um pouco o véu. Sim, que
existe um desencanto com a democracia liberal em todos os grupos
etários, vertido em abstenção eleitoral, fraca militância partidária e
desconfiança nas instituições, é certo e sabido. Mas o ponto de Foa e
Mounk é que esse desencanto é bastante mais acelerado entre os jovens.
Quão essencial é para eles viver em democracia?
Numa escala de um (nada essencial) a dez (totalmente essencial), 72%
dos jovens americanos nascidos antes da Segunda Guerra escolhiam a nota
máxima. Mais de metade dos europeus da mesma época também. Entre os
millennials, só um terço imita os antepassados. Razão para alarme?
Calma: existe uma diferença entre “apatia” e “antipatia”
democráticas, avisam os autores. Uma coisa é não ter interesse pela
democracia liberal; outra é desejar derrubá-la. Em 2018, data do estudo,
Foa e Mounk ainda viam um cenário misto, nebuloso, onde apáticos e
antipáticos se misturavam. Nas eleições americanas de 2016, por exemplo,
só metade dos eleitores com menos de 30 anos se deram ao trabalho de ir
votar.
Mas na Europa, comme d'habitude, a antipatia era maior. Em 2017, nas
eleições presidenciais francesas, metade dos millennials se dividiu
entre a extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon e a extrema-direita de
Marine Le Pen (em 2012, os millennials votaram maciçamente na
centro-esquerda de François Hollande).
Eu sei: é fácil condenar esses flertes juvenis com o extremismo. E a
tese da ignorância é a primeira carta a ser jogada pelos moralistas:
como sempre viveram em democracia, esses meninos birrentos nem sonham
como ela é preciosa. Pior: alguns olham para a ditadura com olhos
benevolentes. Ainda que isso seja verdade, também é preciso lembrar que
os meninos birrentos têm vidas de privação econômica, salários baixos
(ou inexistentes) e dívida permanente, ao contrário dos seus pais. Será
que isso faz do parceiro um bom democrata?
A essa eu respondo: nunca fez e a história ensina. Hitler, antes de
conquistar o Estado, conquistou primeiro os estudantes. Lênin, nascido
há precisamente 150 anos (uma efeméride ignorada; bom sinal), fez do
partido bolchevique o partido dos mais jovens.
Não sou economista. Não sei como sair da recessão brutal que a
pandemia vai provocar. Muito menos como inverter o medíocre crescimento
econômico que o Ocidente experimentou nas últimas décadas. Mas sei que
aquilo que as democracias liberais fizerem no futuro próximo para salvar
a nova geração perdida vai determinar a sobrevivência do regime
democrático no futuro médio.
As gerações perdidas, uma vez perdidas, nunca perdoaram.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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