Conservar, esse verbo que tanto estimo, é um trabalho de amor, não de
ódio à raça humana. Coluna de João Pereira Coutinho para a FSP e Gazeta
do Povo:
Imagine o leitor que a humanidade só tem 24 horas antes da extinção. O
que fazer? Bom, cada um sabe de si. No meu caso, desconfio que passaria
o dia de pijama, na companhia da família e dos amigos, esvaziando a
minha garrafeira. Nunca acreditei naquelas proclamações desesperadas, ou
heroicas, em que os seres humanos condenados se entregam a atividades
radicais e impensáveis – escalar montanhas, pular de paraquedas, caçar
leões ou elefantes. Com 24 horas para viver, o mais provável era não
fazer nada.
Agora imagine o leitor que as 24 horas se convertiam em 100 segundos.
Menos de dois minutos. Como aproveitá-los? Uma vez mais, cada um é
senhor do seu destino. Mas eu desconfio que passaria esse tempo a rir à
gargalhada, ou a chorar à gargalhada.
Um erro, avisam os ativistas. Existe um relógio, criado em 1947, que
dá pelo nome de Relógio do Juízo Final. E, segundo o bicho, faltam 100
segundos para a festa terminar. Motivos? Sim, um confronto nuclear
continua a assombrar o planeta. Mas as mudanças climáticas e os avanços
tecnológicos perigosos também aproximaram os ponteiros do abismo. Na
cabeça dos ativistas, esse relógio apocalíptico é um estímulo para
mudarmos de vida, renunciando à economia carbonizada. Só temos 100
segundos. Vamos ao trabalho?
Não, pessoal, não vamos. Para começar, um Relógio do Juízo Final,
pelas suas características circenses, não convida à ação. Exceto para
pessoas que confundem o universo Marvel com a vida humana comum,
vestindo capa e collants de super-herói para salvar as calotas polares.
Mas o anedótico relógio revela um dos principais problemas do
catastrofismo ambiental: na ânsia de aterrorizar as almas, apenas gera
apatia e bocejo.
O filósofo Pascal Bruckner escreveu há uns anos um dos melhores
livros sobre o assunto. Intitula-se Le Fanatisme de l'Apocalypse (“O
fanatismo do apocalipse”) e a primeira observação de Bruckner procura
comparar o catastrofismo ecológico com a pornografia. Atenção: Bruckner
não nega que existem problemas ambientais. E também não nega que cabe
aos homens, pelo seu engenho e pela sua arte, cuidar dos ecossistemas. O
problema é que o catastrofismo tende a anestesiar os homens, da mesma
forma que um excesso de pornografia acaba por matar a libido. “A
ecologia do desastre”, escreve Bruckner, “é um desastre para a
ecologia”. Touché! De fato, quando o cenário é dantesco, surreal,
praticamente inultrapassável, qualquer pessoa boceja e murmura: “Foi bom
enquanto durou”.
Mas a pornografia da catástrofe não inspira apenas passividade
absoluta. Também desperta repugnância absoluta. Para Bruckner, esse é o
segundo grande paradoxo do fanatismo do apocalipse: ele procura recrutar
para a luta ambiental os mesmos personagens que humilhou sem piedade.
Basta escutar um fanático qualquer. Para ele, os seres humanos são o
câncer do planeta. Somos mesquinhos, egoístas, predadores, animalescos,
“ecocidas”, monstruosos, repugnantes. Mas depois, com impecável
esquizofrenia, o fanático espera que os mesquinhos, os egoístas, os
predadores, os animalescos, os “ecocidas”, os monstruosos e os
repugnantes sejam os obreiros da salvação planetária.
Isso não é apenas uma contradição nos termos (logicamente, um monstro
não é um anjo). É não entender a cabeça humana: eu não vou colaborar
com aqueles que nutrem uma tão grande repugnância por mim. Pelo
contrário, o mais provável é eu redobrar os meus vícios. Falo por
experiência própria: sempre que vejo Greta Thunberg a pontificar na
televisão, com dedo levantado e olhar fulminante sobre a raça humana (de
que ela, obviamente, não faz parte), a minha vontade imediata é
vandalizar ainda mais o planeta, não conservá-lo. O mesmo acontece com
as pantomimas do Extinction Rebellion: por cada manifestação do grupo,
desconfio que as emissões de CO2 aumentam em todo o mundo como resposta.
Porque conservar, esse verbo que tanto estimo, é um trabalho de amor,
não de ódio à raça humana. E esse trabalho só acontece quando existe
equilíbrio e proporção: no tamanho do desafio e nas virtudes dos seres
humanos para o enfrentar. Se isso está ausente da pornografia
ambientalista, não vale a pena mexer um dedo. Exceto para esvaziar a
garrafeira.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário