A única reforma que funciona continua sendo a mesma de sempre: “Power to the people”. Artigo de Fernão Lara Mesquita:
Uma mentira puxa a outra. Até o Lula sabe disso e, excepcionalmente,
confessa. O empilhamento de “erros” – e no Brasil a esmagadora maioria
deles não passa de mentiras – é a maior maldição nacional. É daí que vem
a obesidade mórbida da Constituição (245 artigos, 105 emendas) e essa
legiferância desenfreada que nos estão matando. Arrotamos “direitos” sem
parar, mas temos “cerca de” 200 mil leis em vigor (ninguém sabe o
número exato), entre elas a que afirma que “ninguém pode alegar em sua
defesa o desconhecimento da lei”...
O País real (99,5% da população) vai como vai o mundo da
hipercompetição que ruge lá fora: corrigindo o mais rapidamente possível
os seus erros porque contemporizar com eles é morte certa. Nada de
mais. Até os animais irracionais funcionam assim. Mas não aquele Brasil
isento de competição, com mandatos e empregos inabalavelmente “estáveis”
(0,5% da população). Este desfruta uma combinação de prerrogativas
capaz de corromper até o mais santo dos homens. Não só está dispensado
de pagar pelos seus, como pode cometer “erros” em causa própria, fazer
deles leis e normas constitucionais e impô-los, “petrificados” para todo
o sempre, ao resto de nós.
Esse “erro” original da invulnerabilidade é o pai de todos os outros.
E cada vez que é constitucionalmente “petrificado” mais um dos acertos
entre grupos de poder para auferir benefícios ilícitos à custa dos
outros que dela decorrem, uma nova e frondosa árvore de gambiarras
legais começa a estender seus galhos sobre a Nação, de crise em crise,
na vã tentativa de cercar os efeitos do “erro” original “imexível”.
Não é por acaso, portanto, que a alegação da “constitucionalidade”
deste ou daquele movimento é tida pelo povo brasileiro como a mais
segura prova da sua ilegitimidade. Assim como não é por acaso – e o
freguês tem sempre razão! – que a imprensa que recorre a esses mesmos
argumentos para declarar inconstitucional qualquer tentativa de corrigir
essas distorções colhe do povo o mesmo repúdio que ele reserva aos
toffolis e gilmares. A verdade no Brasil de hoje está sempre nas
nuances...
O mundo todo, aliás, anda mergulhado na Babel da subversão
conceitual. Muita gente vê como sinal de morte da democracia a epidemia
de explosões sociais sem projetos utópicos que grassa no planeta. A
Primavera Árabe (2010), o Occupy Wall Street (2011), o Brasil-2013 e,
neste 2019, França, Chile, Líbano, Bolívia, Equador, Iraque e o mais
compõem um feixe de casos que não poderia ser mais diversificado em
matéria de liberdades democráticas e níveis de desenvolvimento e renda. O
que eles têm em comum não é o “descrédito generalizado nas instituições
de representação do povo que sustentam a democracia”. É, ao contrário, o
repúdio às versões falsificadas, às democracias sem povo ou ao
esvaziamento do poder do povo por via direta ou indireta mesmo nas mais
avançadas.
Andar para trás na senda das conquistas econômicas e sociais é sempre
explosivo, não importa a altura da qual se parta. Abertas às pressões
populares, entre as quais as mais fortes estão sempre ligadas ao medo da
perda do emprego, a grande diferença entre as democracias e as
ditaduras onde o títere pode bancar sua “valentia” com o sangue dos
outros é a covardia institucionalizada. Essas manifestações são os
estertores de morte, sim, mas das classes médias meritocráticas, que, em
qualquer canto do mundo, são as que primeiro aprendem a usar o poder de
mobilização que as redes sociais proporcionam.
O poder de mercado chinês é, antes de mais nada, a projeção
internacional de força do partido totalitário no poder. E tem tido
enorme sucesso em dobrar e perverter o capitalismo democrático. Este tem
de aprender com os socialistas a ser inflexível na sanção das
manifestações em contrário. Em vez disso, citando Bolívar Lamounier,
domingo, nesta página, vemos Hollywood aceitando a censura para não ser
expulso do mercado chinês, a NBA fazendo rapapés a assassinos para se
desculpar pela declaração de apoio de um único atleta às manifestações
de Hong Kong, as 40 maiores empresas aéreas do mundo concordando em
apagar de seus sites qualquer referência a Taiwan como país e,
acrescento eu, democracias maduras revogando legislações antitruste para
entrar na corrida de monopólios (e no consequente desembesto da
corrupção) imposta por Pequim. Já são quase 40 anos de recordes
sucessivos de fusões e aquisições...
Sempre a China totalitária impondo limites à liberdade de expressão e
retrocessos às democracias, e não o contrário, como deveria ser,
mediante a criação de impostos sistemáticos contra a violação de
direitos humanos e de propriedade que ela perpetra impunemente sem parar
para roubar empregos, no primeiro momento, e liberdades, no fim da
linha, às classes médias meritocráticas ao redor do mundo.
Feito de pequenos avanços no prazo de gerações que tornam impossível
que qualquer uma isoladamente tenha memória viva de modelos muito
diferentes para cotejar, a única maneira de evoluir rapidamente na arte
da construção de instituições é com estudos comparativos. Daí o zelo da
censura que os inimigos da democracia exercem no Brasil contra a
cobertura do funcionamento das ferramentas do sistema imunológico das
mais adiantadas (primárias diretas, recall, referendo, iniciativa, etc.)
que proporcionam aos seus povos o luxo de não estar nem aí para aquilo
que querem nos apresentar como a essência delas, como é o caso de Donald
Trump (que não manda nada) nos (próprios) Estados Unidos.
A resposta às explosões de descontentamento que pululam por aí é a
que Sebastian Piñera está articulando no Chile: depois de cortar pela
metade os salários dos políticos numa só tacada, eliminar os erros de
raiz com uma nova Constituição elaborada do zero por constituintes
especialmente eleitos para isso (e não pelos políticos usurpadores da
constituição a ser reformada), seguida de referendo popular do documento
que eles elaborarem.
A única reforma que funciona continua, portanto, sendo a mesma de sempre: “Power to the people”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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