Isso, sim, foi polarização: o precedente de Keynes contra Hayek. Artigo de Vilma Gryzinski, publicado na edição impressa de Veja:
Países polarizados, sociedades rachadas ao meio, radicalização da
política. Não existe lugar-comum que não tenha sido usado nestes curtos e
alterados anos em que o caminho do meio foi largado sem nenhuma
cerimônia, a esquerda assistiu estarrecida ao renascimento da direita
que considerava enterrada para sempre e os próprios eleitores se
dividiram com diferenças mínimas, quase sempre de 49% contra 51% seja
numa eleição no Uruguai, num plebiscito na Bolívia ou no referendo sobre
o Brexit. Como castigo a quem não consegue raciocinar sem
lugares-comuns — mesmo quando estes, tal como os relógios, também
acertam eventualmente —, os abusadores deveriam ser condenados a
mergulhar nos detalhes da maior batalha entre gênios da economia ou “o
choque que definiu a economia moderna”, a Guerra dos (quase) Noventa
Anos entre John Maynard Keynes e Friedrich Hayek. Os demais são
convidados a se deleitar com um confronto entre dois cavalheiros que se
estende, em diferentes reencarnações, até hoje: a melhor forma de bombar
a economia e gerar empregos numa época de crise é soltar os cofres até o
ponto de abrir frentes de trabalho ou, ao tentar estimular
artificialmente o marasmo, o governo (qualquer um) pode acabar criando
mais desemprego ainda e a livre-iniciativa é a solução.
Keynes, o teórico brilhante, solar, exuberante, alto, bonitão, como
seus amigos do grupo de Bloomsbury, depois contemplado com um título de
nobreza e um lugar na Câmara dos Lordes, com direito a ter suas teorias
batizadas com seu nome, foi contestado no próprio território pela
primeira vez pelo austríaco macambúzio e definitivamente nada sedutor em
1931. Hayek fez suas quatro palestras na London School of Economics,
praticamente sem nenhum efeito. Tinha 32 anos e pouco mais que uma rara
capacidade de pensamento independente que lhe permitira “nadar contra
algumas das mais poderosas correntes de sua época”, como descreveu o
filósofo John Gray. O que viria a ser chamado de keynesianismo já estava
encaminhado para a glória.
O embate de ideias, porém, fincou raízes. E nem sempre em termos
cavalheirescos. “Precisamos de uma restauração do pensamento moral”,
admoestou Keynes numa carta de 1944 ao rival. “Se o senhor pudesse
dirigir sua cruzada nesse rumo, não ficaria parecendo tanto com Dom
Quixote. Eu o acuso de talvez confundir um pouco os assuntos morais e os
materiais.” O curioso é que o “Dom Quixote” austríaco viveu para ver o
renascimento de suas ideias ganhar um Nobel. E ainda frequentar a famosa
bolsa de Margaret Thatcher, que sacou um exemplar de Constituição da
Liberdade e bateu na mesa de um palestrante de seu próprio Partido
Conservador que lhe pedia moderação. Mesmo para quem já conhece os
detalhes dessa delícia de guerra, é imperdível ver, no YouTube, a
hilariante série de paródias de clipes de rap em que o badalado Keynes e
o desprezado Hayek se defrontam. Um spoiler: os córneres de Hayek são
Say (como o francês liberal da lei com seu nome) e Mises (o outro gênio
austríaco). É o melhor antídoto disponível no mercado para as ideias,
rasas, dos reis da polarização.
Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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