Votar por um futuro cheio de criancinhas sorridentes? Pode acontecer,
mas bronca e protesto impulsionaram eleitores americanos de ambos os
partidos, escreve Vilma Gryzinski:
“A intensidade é sempre poderosa. A intensidade leva as pessoas a
votar”. O senador Ted Cruz, passando um sufoco para não perder a vaga
pelo Texas, usou uma palavra elegante para descrever o sentimento dos
eleitores que fariam qualquer coisa para colocar o adversário democrata,
Beto O’Rourke, no lugar dele no Senado.
“Eles se arrastariam sobre cacos de vidro para ir votar”, disse Cruz, usando uma metáfora mais crua.
E qual o motor desses eleitores dispostos a, metaforicamente, rasgar a
própria carne? “Eles odeiam o presidente Trump. Esta raiva é perigosa. É
uma raiva que mobiliza as pessoas. Leva-as a votar não importa como.”
Na recente eleição presidencial no Brasil, o poder mobilizador da
raiva foi um fator importante, embora o voto obrigatório altere
consideravelmente as condições. Um exemplo: eleitores acima de 70 anos,
dispensados da obrigatoriedade, que foram votar para marcar posição
contra os candidatos identificados com um sistema podre.
O próprio Donald Trump foi eleito com base no mesmo princípio: os
americanos comuns estavam sendo ignorados e desprezados pelas elites
dirigentes, martelou ele, explorando sentimentos negativos de rejeição e
inferioridade.
Hillary Clinton, a adversária que já se considerava na Casa Branca,
colaborou ao chamar de “deploráveis” todo mundo que tendia a concordar
com Trump. Está deplorando a derrota até hoje.
Depois das lágrimas e das lamentações entre o eleitorado democrata, a
inesperada vitória de Trump criou um novo tipo de raivosos: os
antitrumpistas revoltados com o que ele foi durante a campanha e
continuou a ser nos dois primeiros anos de governo.
Esta raiva é alimentada constantemente por “influenciadores” de todo
tipo, desde a imprensa tradicional até estrelas de Hollywood.
Em alguns episódios, atinge momentos de paroxismo. Algumas
manifestantes uivaram e arranharam a porta da Suprema Corte, como se
fosse possível derrubá-las, enquanto Brett Kavanaugh prestava juramento.
As acusações de abuso sexual contra o juiz quando era estudante não
foram comprovadas, os republicanos tinham apertada porém suficiente
maioria no Senado para aprovar a nomeação e a ideia de que os Estados
Unidos estavam mergulhando numa era das trevas teve aprovação bem
distante de unânime entre a opinião pública.
Agora, não se fala mais nisso. Mesmo depois que uma das acusadoras
reconheceu que tinha recorrido a uma “tática” política para se
apresentar como a anônima que denunciou Kavanaugh como estuprador. Ou
seja, uma mentira deslavada.
Também quase sem nenhuma repercussão foi revelação sobre o depoimento
de dois homens da mesma época, apresentando-se como possíveis
protagonistas de episódios envolvendo a principal acusadora, Christine
Blasey Ford. Um deles inclusive disse que era parecido com o juiz na
juventude.
Terá o capítulo Kavanaugh influência numa fatia do eleitorado na qual
os democratas colocam muitas esperanças – mulheres brancas de classe
média que votaram em Trump, mas agora se sentem mal com o comportamento
dele?
Os eleitores que “mudam de opinião” são relativamente poucos. Ao se
registrar como eleitores, os americanos já escolhem o partido
preferencial. Quando não gostam de seus candidatos, simplesmente “ficam
em casa” – uma expressão genérica, pois em grande parte estão
trabalhando. Eleição é em dia de semana, sem feriado.
Alimentar paixões – negativas, pois bons sentimentos não costumam
ferver as urnas – é uma tática comum da oposição. Quem está no governo
costuma apresentar suas maravilhosas conquistas e prometer mais ainda,
se os eleitores não fizerem a burrice de atrapalhar seus planos.
Como em tantos outros exemplos, Trump fez o contrário. Saiu
incendiando comícios de candidatos republicanos a perigo com um dos
assuntos mais inflamáveis dos Estados Unidos, o da imigração
clandestina.
A campanha eleitoral coincidiu com a longa marcha de alguns milhares
de centro-americanos que têm o propósito anunciado de atravessar a
fronteira na marra.
Não é nada bom para os democratas, ainda mais que ganhou força uma
espécie de “ala maluca”, a de candidatos jovens que pregam, entre outros
extremismos, a abertura da porteira para quem quiser entrar nos Estados
Unidos e a extinção da polícia de imigração.
Para aumentar a bronca dos americanos que se sentem incomodados pela
imigração em massa, um filme de propaganda política aprovado por Trump
mostra o sinistro Luis Bracamontes, clandestino mexicano condenado à
pena de morte pelo assassinato de dois policiais.
Como uma espécie de Hannibal Lecter latino, Bracamontes ri o riso
congelante dos psicopatas durante o julgamento. Em meio a palavrões, diz
que só lamenta não ter matado mais.
“Os democratas deixaram que ele entrasse aqui”, é a mensagem, tão
pesada e, obviamente, errada, que foi recusada até pela Fox News, o
único veículo importante de comunicação que favorece Trump.
Perder a maioria na Câmara, como indicam todas as previsões, será ruim para Trump. Mas seria o fim do mundo?
Em 2010, sob Barack Obama, o Partido Democrata perdeu 63 deputados e
seis senadores. “Levamos uma sova”, reconheceu Obama, sem grandes
abalos. O popular Bill Clinton presidiu uma carraspana similar em 1994:
54 deputados e oito senadores.
Quando o processo de impeachment contra Clinton foi levado ao Senado,
em 1999, por perjúrio e obstrução de justiça no que ficou conhecido
como o caso Monica Lewinsky, foi absolvido com o voto de todos os 45
senadores democratas e mais cinco republicanos. Estava com 7% de
popularidade.
Trump não pode nem sonhar com aprovação parecida, mesmo com o
impressionante desempenho da economia. Aliás, nem se descobrir a cura do
câncer e celebrar um tratado de paz mundial para todo o sempre.
A ferocidade das tensões internas nos Estados Unidos é enorme. Parece
intransponível na falta de um agente externo que reaproxime o país.
Por enquanto, a raiva predomina. Como os elementos políticos e
sociais, inclusive a estridência nas redes sociais, que produziram isso
lá também estão em ação aqui, ficou mais interessante ainda acompanhar
os desdobramentos desse fenômeno.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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