A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao
PT, mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia,
os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum? Uma boa
pergunta de Fernando Gabeira, em artigo publicado hoje pelo Globo e
reproduzido em sua página:
A roda rodou. Já vi muitos presidentes, subindo e descendo a rampa.
Um deles descendo ao fundo da terra, Tancredo. Collor chegando e saindo
de nariz erguido. Lula com tantas promessas.
Itamar, encontrei antes da posse, no Hotel Sheraton. Ele ainda não
era o presidente, e eu tentava convencê-lo de que seria. Conheci Itamar
desde a Rua Halfeld, a mesma onde Bolsonaro tomou a facada. Era um homem
decente, tomava religiosamente uma sopinha ao entardecer. Ousou assinar
o Plano Real.
Agora, sobe Jair Bolsonaro. Não foi uma rodada simples, dessas em que
PT e PSDB se revezam. Foi mais ampla, como foi a de 64, só que agora
sem Guerra Fria, num contexto democrático.
Senti a ascensão de Jair Bolsonaro. Impossível ignorá-la correndo o
Brasil, observando as redes sociais. Quando levou a facada em Juiz de
Fora, pensei: facada e tiro, quando não matam, elegem.
Se nossa cultura produziu essa certeza, isso quer dizer que a
condenação da violência política tende a ser consensual. O presidente
eleito deveria encarnar e expressar essa condenação. Não é um conselho,
apenas uma leitura do Brasil. Os últimos dias de campanha foram
ameaçadores. Prisão, desterro, banir da face da terra. Alta tensão. As
universidades podem ser invadidas por ideias, não pela polícia.
O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses
de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.
Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso
encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o
sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como
reconciliá-los com o homem comum?
Minha atitude com Bolsonaro será a que sempre adotei nos anos de
convivência: respeito ao argumentar nos pontos divergentes e estímulo
aos seus movimentos positivos. Alguns leitores condenam essa visão, sob o
argumento de que normaliza a barbárie.
Mas se era assim com o deputado, por que não seria com o presidente,
cujas ações mexem com nosso destino e com a imagem externa do Brasil?
Na minha visão de mundo, é impensável ofender os eleitores que
escolheram outro caminho. O pressuposto é apostar na boa-fé da maioria
do povo brasileiro.
Farei uma oposição sem truques ou medo, das que não visam ao poder.
Apenas um desejo de ver o país retomando democraticamente os trilhos, um
pouco também por filhos e netos. A sensação de continuidade ao lado da
poesia são os territórios em que desafiamos a morte.
Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. No
entanto, as dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo. As
qualidades para ganhar a eleição são diferentes das que impulsionam o
governo. Para vencer, é preciso falar a linguagem do povo.
O grande talento nesse campo nem sempre nos socorre, quando a
necessidade impõe grande esforço intelectual para a tomada de decisões.
Da mesma forma, o tom agressivo de campanha é o inverso da generosidade
que se espera de um eleito.
Bolsonaro não é um raio em céu azul. O panorama político no Brasil
mudou. Pensadores de direita surgiram no cenário. Jovens liberais,
propagandistas religiosos ocuparam as redes.
As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração
difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da
corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.
Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para
vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.
Foi uma campanha da era digital. Hoje, todos falam, compartilham.
Baixo nível? Talvez. Mais democrático? Sem dúvida. Foi também facada,
fake news, acusações, brigas entre famílias, amigos, ansiedade,
tentativas de suicídio — um psicodrama nacional.
Fiz tudo para manter a cabeça fria. É natural levar caneladas dos dois lados. Caneladas e balas perdidas são parte do jogo.
Outro dia, alguém escreveu sobre mim: se ficar como ele, peço aos
amigos que me ajudem numa eutanásia. Não tenho por hábito contestar
essas coisas da rede. Nesse caso, a resposta seria simples: obrigado por
morrer em meu lugar. É uma gentileza nesses tempos sombrios.
É preciso viver um pouco mais para ver um país mais tranquilo,
fraternal. Não sou ingênuo a ponto de imaginar esquerda e direita de
mãos dadas. Não se trata de lirismo. As emoções da campanha ofuscaram um
pouco a gravidade de nossos problemas.
Agora, voltamos à vida real.
Artigo publicado no Jornal O Globo em29/10/2018
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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