Quem
subestima a intensidade das transformações provocadas nas relações
humanas pelo avanço tecnológico é convidado a acompanhar a mais recente
celeuma nos ambientes digitais. Em qualquer plataforma aberta à
expressão do pensamento, o tema do momento, a poucas semanas de eleições
gerais, é o combate às fake news. De alguma forma as redes sociais
teriam criado esse monstruoso fenômeno que ameaçaria a equivocada ilusão
de uma democracia sólida e à prova de manipulação. Não que o assunto
não seja sério; é muito importante que se discuta a disseminação de
mentiras num ambiente pouco controlado e massificado como a Internet. A
questão é que acreditar na possibilidade de resolver definitivamente o
problema é trabalhar no sentido de atingir, ainda que involuntariamente,
conquistas que custaram à sociedade contemporânea um alto preço.
Para que
possamos ter uma discussão séria a respeito da questão, importa
primeiramente resgatar os cruzados do combate às fake news de seus
devaneios imperativos e de volta à realidade. A opinião pública sempre
esteve sujeita não apenas a opiniões equivocadas e desprovidas de
sentido, mas, sobretudo, a muita mentira friamente construída e
sordidamente vendida como fato, inclusive por autoridades e agências de
notícias. A história está repleta de exemplos a ilustrar a hipótese,
para quem quiser pesquisar.
1. A capacidade de mentir
É muita
ingenuidade acreditar que fake news decidam eleições apenas agora,
quando a Internet e plataformas como Twitter, Facebook e Whatsapp (para
citar apenas as mais populares) seriam utilizadas por agentes
“maliciosos.” Ingenuidade porque, primeiramente, a imensa maioria dos
usuários de Internet consomem outras fontes de ilusão, como Rádio,
Televisão, Jornais Impressos etc. Em segundo lugar, ingenuidade porque
as redes apenas registram, em códigos e sinais elétricos, as mentiras e
opiniões furadas que as pessoas já propagam entre si no boteco após o
futebol, no salão de beleza, no cafezinho do escritório, no ponto de
ônibus, no clube de tênis, na reunião do sindicato e por aí vai.
O fato é
que a Internet acabou com o monopólio da informação temerária (ou
leviana) e da desinformação amplamente exercido por grupos específicos
até a massificação do acesso à rede. Fake news sempre abundaram nas
mídias hoje tidas por tradicionais. Afinal, uma característica peculiar
de nossa espécie é que os homens mentem uns para os outros e para si
mesmos, especialmente se motivados por fins coletivos, como ocorre,
obviamente, em processos eleitorais.
Informação,
manipulação de ideais, mentira e histeria são ferramentas comumente
empregadas pelo homem para exercer domínio sobre o universo e seus
semelhantes. Tudo isso se deve ao desenvolvimento do primeiro e maior
artefato humano, como define Tom Wolfe: a fala.
Em seu último livro, O Reino da Fala
(2016), Tom Wolfe, recentemente falecido, apresenta uma envolvente
história sobre 150 anos de discussões e pesquisas acerca dos mistérios
envolvendo o intrigante dom observado apenas nos humanos: a capacidade
de articular sons para transmitir ideias, a habilidade da fala. De
Darwin a Chomsky, Wolfe emprega humor, ironia e ceticismo à análise dos
estudos sobre a linguagem para conceder algum especial crédito a nomes
menos conhecidos como Alfred Wallace e Don Everett, que em seus
trabalhos de campo ofereceram argumentos e provas contra a concepção da
fala como capacidade inata, que decorreria da simples evolução de algo
como a capacidade de canto apresentada pelos pássaros ou de comunicação
gestual ostentada pelos orangotangos. Após concluir a jornada pela
história da linguagem até os dias atuais, com a rendição do mundo
acadêmico em 2014, que declarou não possuir respostas para a origem do
fenômeno, Wolfe não deixa de entregar ao leitor sua própria teoria: o
homem desenvolveu a fala/linguagem como um artefato, um instrumento de
trabalho que lhe permitiu dominar não somente a natureza, mas idealizar e
planejar seu próprio destino, elaborar explicações para seus
infortúnios, conferir sentido às contingências do viver.
2. Informação e persuasão
O
surgimento da cultura de forma geral, e das culturas, em forma
ramificada, bem como suas transformações, está diretamente relacionada
ao uso desta ferramenta, a linguagem, para o bem ou para o mal. Seja
pela estruturação da comunicação e das organizações coletivas que
possibilitaram a instituição da agricultura e assentamento nas primeiras
comunidades, o surgimento das nações e a consolidação do comércio
gentil, seja pela concepção de ideias e sonhos, a partir do momento em
que se estabelece como canal de transmissão de ideias, fatos e
conhecimento, a fala se transforma em útil ferramenta de negociação e
persuasão. E persuasão, todos sabemos, não se promove apenas com dados
irrefutáveis.
A
justificação do emprego da mentira como recurso em defesa do bem contra o
mal é uma constante na história do pensamento político e o filósofo
Gabriel Liiceanu, em sua obra Da Mentira
(2006) analisa o serviço prestado pela desinformação e pelo poder de se
dizer “o que não é” à legitimação de tiranias e de regimes
autoritários. Das tragédias em Sófocles ao jornalismo sob o comunismo
soviético, passando por Maquiavel e a projeção do homem virtuoso capaz
de um ato de vilania quando necessário, Liiceanu observa o fenômeno da
mentira e da dissimulação como ferramenta em favor de algo maior,
obviamente, idealizado, e geralmente, impraticável. Sempre houve alguém
disposto a recorrer a uma “pequena” mentira, um mal por definição, em
nome de uma “grande” causa, e é por isso que, conclui o pensador romeno,
“toda a história dessa espécie é a expressão de uma fraude
linguística.”
O poder
da fala e da capacidade de propagar conhecimento – verdadeiro ou falso –
na historia do homem é realmente inquestionável. Não à toa, dois dos
momentos cruciais desta jornada ocorrem em momentos particulares de
revolução na forma de comunicação: a invenção da imprensa por Gutenberg,
no século XV, e a adoção massificada da Internet propulsionada pelo
protocolo world wide web (o “www”) desenvolvido por um grupo de
pesquisadores em Genebra no início dos anos 1990. Curiosamente, estas
duas revoluções impactaram a forma como consumimos conhecimento até os
dias atuais. Se vincularmos a informação à moda antiga aos jornais,
rádio e televisão, é possível opor a esta forma “tradicional” de
comunicação os “modernos” mecanismos de informação, notadamente, os
portais da Internet e as redes sociais.
3. O fim do oligopólio da persuasão
A
informação que tramita no ambiente digital é, por concepção da própria
rede, descentralizada, livre e essencialmente democrática. O que poderia
explicar a razão de a mídia tradicional ter adotado, desde os anos
noventa, uma aguerrida tática de descrédito aos meios digitais como
fonte de informação. De fato, o filósofo e sociólogo Pierre Lévy,
especialista em sociedade da informação, registra em seu livro Cibercultura
(1999) que a Internet, inicialmente pensada para usos militares e
estruturada para resistir inclusive a ataques nucleares, logo passou a
ter como principal utilização a troca de informações entre pesquisadores
de instituições acadêmicas. Foi apenas no fim dos anos 80 que o público
descobriu a praticidade e segurança da rede como sistema de correio
eletrônico, passando, a partir de então, a canalizar um volume cada vez
maior de informações.
Lévy
ressalta que a natureza plural e por vezes caótica da Internet,
descentralizada e democrática, certamente não está imune à ação de
grupos ou pessoas mal-intencionadas. Contudo, ressalva que é exatamente
nessa esfera, da possibilidade das intenções maliciosas, que a Internet,
ao contrário do que aparenta, representa uma possibilidade real de
batalha contra a desinformação. Afinal, como afirma o filósofo
tunisiano, “é muito mais difícil executar manipulações em um espaço onde
todos podem emitir mensagens e onde informações contraditórias podem
confrontar-se do que em um sistema onde os centros emissores são
controlados por uma minoria.”
De fato,
não há como negar que hoje as informações podem ser rapidamente
checadas e desmentidas pelas ferramentas de informação que a própria
Internet disponibiliza. É preciso reconhecer que, se é verdade que a
maior parte dos usuários da rede ainda está despreparada para o consumo
consciente e desconfiado de informações, também é verdade que esse é o
mesmo público que há pouco tempo estava sujeito a uma ou duas fontes de
informação, e reféns, portanto, de possíveis deturpações maliciosas dos
fatos. A persuasão pela desinformação não é mais uma arma exclusiva de
poucos.
Ainda
assim, a despeito da pluralidade e da impossibilidade de monopolização
da informação, a cada boato ou farsa promovida por indivíduos na
Internet, surgem novas proposta de regulamentação das fake news.
Qualquer seja o tom ou argumento retórico que se empregue a tais
iniciativas, o fato é que uma lei que pretenda proibir notícias falsas
está inevitavelmente vocacionada a ser utilizada como fundamento para
censura e violação de direitos.
4. A lei, a mentira e a verdade
A
efetividade de uma lei que pretenda acabar com as fake news esbarra na
inegável dificuldade de se distinguir entre notícia falsa (uma mentira) e
uma opinião equivocada ou uma interpretação livre dos fatos. Se alguém
diz que o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 foi golpe, isso é uma
opinião ou uma mentira? À luz da lei e dos procedimentos legais, uma
clara mentira. Contudo, assentada em interpretações históricas e
ideológicas, uma opinião que não fere lei alguma, e, por mais absurda
que soe, sua expressão é livre e constitucionalmente garantida.
Não se
olvide, ainda, a possibilidade de uma legislação voltada ao combate às
ditas notícias falsas acabar por reprimir as mock news, notícias
fictícias que empregam de grande ironia e de paródia para fazer humor
crítico, um dos elementos mais importantes na preservação de uma
democracia efetivamente livre e saudável.
Excessos,
como os ocorridos no recente caso da vereadora assassinada no Rio de
Janeiro que teve sua imagem e reputação atacada por boatos infundados,
já são alcançados pela legislação brasileira. Aliás, mentiras, falsas
promessas, injúrias, calúnias e difamações, são combatidas com um enorme
aparato legal que passa pela própria Constituição Federal, Código
Penal, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e pelo Marco Civil
da Internet, sem falar na construção doutrinária e jurisprudencial sobre
o tema. O que não faltam são dispositivos legais que reprimam condutas
maliciosas. Há um pouco de dificuldade na identificação de autoria
destas noticiais falsas? Sem dúvida. Contudo, apesar da tecnologia ser
relativamente nova, os investigadores vem obtendo resultados cada vez
mais rápidos na apuração dos ilícitos, numa sequencia de pequenas
vitórias que servirá para educar a comunidade digital sobre a
responsabilidade de expressão que acompanha o livre exercício do opinar.
Ao
contrário do que acreditam as vozes mais exaltadas dos que representam a
visão clássica de informação, a população vem se educando,
gradativamente, para este mundo em constante transformação. E se tem
algo que a proliferação de fake news lega de importante, é a educação
para o ceticismo e prudência na Sociedade da Informação, inclusive para o
consumo desconfiado da informação vendida pela mídia tradicional, que a
despeito da posição inquisitória, é também culpada dos mesmos pecados
que denuncia genericamente.
O que é
preciso ter claro é que o dito “combate” à epidemia de fake news não
deve ser travado pelo processo legislativo, que envolve inegável risco
de prejuízo à liberdade de expressão. Quem pode e deve encarar a natural
tendência humana de criar mentiras, elaborar ilusões, aumentar um
ponto, é a surpreendente e heroica vontade humana de alcançar o
conhecimento por refutar tudo o que é falso, condenar o que é
superstição, apontar o dedo aos sofismas: um combate que se dá no plano
das palavras, no reino da fala, território da mentira e palco do
restabelecimento da verdade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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