segunda-feira, 30 de julho de 2018

Karl Kraus: o sátiro que pôs o jornalismo no banco dos réus.


Pode um jornalista odiar o jornalismo? Pode, e Karl Kraus foi um deles ao perceber como poucos a relação entre os jornais e a disseminação da violência que conduziu à 1ª Guerra Mundial. Reportagem de Joana Emídio Marques, publicada pelo Observador:


Karl Kraus, nome talvez pouco conhecido fora das Faculdades de Jornalismo e dos estudiosos da cultura de língua alemã, viveu naquele período extraordinário da arte e da literatura que foram os anos finais do império Austro-húngaro e as vésperas da 1ª Guerra Mundial. Kraus foi contemporâneo de Freud, de escritores e poetas como Kafka, Rilke, Robert Musil, Hermann Broch, Hugo Hofmannsthal, George Trakl, do músico Mahler, do filósofo Ludwig Wittgenstein, dos pintores Oskar Kokoschka e Klimt, da escola da Bauhaus, de movimentos como o Modernismo, o Expressionismo, o Dadaísmo ou o Futurismo. Viena não era apenas a capital do império, era a incubadora, o casulo do esplendor e do horror do século XX. Mas apesar deste fulgor, nos primeiros anos do século XX parecia que nada acontecia em Viena e o escritor e Nobel da Literatura Elias Canetti descreve Karl Kraus como “a coisa mais viva da cidade”.

Nascido em 1874 numa pequena vila da Boémia junto à fronteira com a Polónia, filho de um abastado industrial do papel, Kraus era um ator falhado, um judeu incompatibilizado com o Judaísmo, um jornalista incompatibilizado com o jornalismo. Com pouco mais de 20 anos já tinha escrito um manifesto contra o círculo dos jovens literatos de Viena e outro contra o Sionismo, já tinha uma vistosa coleção de inimigos e detratores, mas nenhum com a sua verve e a sua “linguagem e a sua língua de morteiro de 42 cm”, a sua “capacidade de perseguir uma causa até à morte”, como escreve o grafólogo e vidente Raphael Schermann, na altura muito célebre em Viena.

Mais tarde, o seu discípulo Elias Canetti há-de descrever o escritor, jornalista e polemista de forma semelhante. Mas Kraus foi muito mais que o chicoteador moral do decadentismo de Viena, um perseguidor incansável do jornalismo e dos jornais nas suas relações com o poder, na sua deturpação da linguagem e da realidade. Kraus foi um visionário do horror que se abateu sobre a Europa desde o assassinato do Arquiduque Francisco Fernando até à bomba de Hiroxima, precursor da crítica dos media que será retomada pelos filósofos T.Adorno e W.Benjamin, autor de uma das obras assumidamente esquizofrénicas da literatura mundial e que, hoje percebemos, precursora do hipertexto.

Essa obra monumental intitulada Os Últimos Dias da Humanidade teve uma saída imperdoavelmente discreta para a importância da obra, há 2 anos numa edição do Teatro Nacional de São João no Porto. Em Março deste ano, a editora Relógio D´Água lançou um volume de textos que Kraus publicou no seu jornal “Die Fackel” (A Tocha) e que leva como título um dos textos mais famosos do autor, publicado e lido em público pouco depois do eclodir da 1ª Guerra Mundial: Nesta Grande Época. Ambas as obras foram traduzidas por António Sousa Ribeiro, a quem já devíamos uns textos incorporados numa coletânea de autores austríacos editada em 1980 pela Europa-América, e uma edição incompleta d’Os Últimos Dias da Humanidade editada pela Antígona em 2003.


Em maio, a nova editora VS fez sair a coletânea Aforismos, traduzidos por Lumir Nahodil, outro dos registos que mostra o virtuosismo de Kraus no domínio da língua. Talvez o século XXI, com a construção de uma nova camada de realidade pelo digital, pelas redes sociais, seja novamente o tempo certo para ler Karl Kraus. Nos últimos anos, com a crise dos media em geral e do jornalismo em particular, tem-se renovado o interesse das universidades americanas por este autor e as suas obras estão novamente a ser traduzidas em vários países.

Jornal “Die Fackel”, uma tocha que iluminava e incendiava

Imaginemos hoje um jornalista que passa os dias a ler as redes sociais, os emails, os chats, a ouvir podcasts e youtubers, a ver televisão, a ouvir rádio e a recolher, em todas essas plataformas, citações, frases, tagarelice, selfies, tweets, com os quais compõe os seus textos. Não há interpretação, não há notícia narrativa. Há apenas citações daquilo que, de facto, se disse no espaço público. Esse aglomerado de citações é montado como um filme, frame após frame, e por vezes tem ainda algumas citações literárias.

O texto que resultará daí será um espelho onde cada um pode ver o ridículo, a violência, a superficialidade, o uso e abuso de estereótipos de uma linguagem pobre e cheia de lugares comuns, a deturpação dos factos da realidade. Ora, era isto mesmo que Kraus fazia no jornal que fundou em 1899, o Die Fackel, “A Tocha”, que foi publicado até 1936, ano da morte do escritor, com algumas interrupções nos anos da guerra de 14-18.

A única diferença é que o escritor tinha apenas os jornais, que nesse tempo eram muitos, os cafés e as ruas e a sua extraordinária capacidade de ouvir o mundo ao seu redor. Canetti há-de contar que Kraus “lia as notícias dos jornais como se as ouvisse” e depois reproduzia tudo nos textos jornalísticos, nas leituras públicas que fazia dos mesmos. Estas sessões públicas eram uma espécie de teatro sem aparato cénico, em salas invariavelmente cheias onde uma multidão totalmente fascinada, dominada pelo seu discurso carregado de “um horror bíblico”, comparecia noite pós noite e, embora soubesse que ia ser insultada, moralmente chicoteada, não resistia a submeter-se.

Os seus inimigos, os seus detratores, aqueles que ele ia nomear e apontar o dedo, estavam lá, num exercício de enfrentamento misturado com masoquismo. Kraus tinha como alvos preferenciais o meio literário e jornalístico; com o eclodir da Guerra, os políticos entram em força na sua galeria de personagens. Questões de moral pública versus vícios privados, nomeadamente a condição das mulheres, a prostituição, a instituição do casamento, a crítica à psicanálise, eram temas frequentes. Noutras sessões, Kraus lia os pouquíssimos escritores e poetas que suportava: Goethe, Shakespeare, Nestroy, Claudio, Offenbach. Como desprezava o género romance, os romancistas foram poupados à sua crítica, exceto os que fervorosamente foram apoiantes da Guerra, como Musil, Remarke, Hoffmannsthal.

Quando funda A Tocha, Kraus já passara por vários jornais e tinha sido convidado a trabalhar no mais importante jornal de Viena, o Die Neue Freie Presse. Ora, não só recusou o convite como tornou esta publicação e o seu diretor paradigmas do poder corrupto e corruptor da imprensa, e durante décadas fará dela o alvo dos seus mais contundentes ataques. Logo no primeiro editorial do que também ficou conhecido em Viena como “o jornal da capa vermelha”, KK escreve: “A Tocha quer iluminar o país no qual o Sol jamais de levanta”. Sendo que o país era nesta altura o império Austro-húngaro, o maior estado da Europa e a sua principal potência financeira e tecnológica. O território ia da Áustria à Ucrânia, passando pela Roménia, Sérvia, até Trieste (hoje Itália), passando pela Boémia e Morávia até à Polónia.

A sátira e a polémica aberta com todos, mas em especial os poderosos, será portanto a forma escolhida por KK como linha editorial. Nos primeiros anos tem vários colaboradores mas, em 1911, dispensa-os a todos e, até 1936, fará o jornal sozinho, da primeira à ultima linha. Com a sua habitual ironia escreveu: “Já não tenho colaboradores, tinha inveja deles. Eles afastam-me os leitores de que quero ver-me livre eu próprio”. O êxito da publicação foi fulminante junto do público.

Kraus propõe um jornal que tem uma extensão teatral materializada na sua leitura em público, um jornal que é de uma intransigência absoluta, nunca recuando perante nada e atraindo o ódio sem limites dos que o rodeavam. Die Fackel é uma tribuna e Kraus o executor de sentenças. As suas denúncias são pormenorizadas, incluem nomes, factos sérios ou banais e o tom duro e apocalíptico vai subindo de tom ao longo dos anos. Chega a ser estranho como é que o escritor e jornalista nunca foi preso, acusado, assassinado, tal era a ousadia das suas acusações, naquele tempo perigoso para os homens sombrios.

Tal como hoje está a acontecer em relação às redes sociais na disseminação da violência, na deturpação do Real, na circulação de notícias falsas, na criação de uma falsa ideia de opinião pública, no empobrecimento veloz da linguagem, na leitura da realidade feita de chavões, incendiária e irresponsável, Karl Kraus percebeu tudo isso nos jornais da sua época. Mais: Kraus atacou a normalidade com que esta nova realidade, que ele dizia ser uma invenção dos jornais, se ia impondo como a única e verdadeira realidade sem que ninguém questionasse. Bertolt Brecht resumirá assim KK e a sua obra: “Quando a época levantou a mão contra si própria ele foi essa mão.”

Com KK compreendemos que o jornalismo, hoje apresentado como o instrumento da liberdade de expressão, tem muitas zonas de sombra que pioram ou melhoram consoante a época e as circunstâncias culturais e políticas. A preocupação com a qual lemos hoje as redes sociais e a forma como elas estão a normalizar um conjunto de práticas perigosas para a sociedade em geral e o jornalismo em particular, não deixa de ter muitos pontos em comum com a análise e a crítica que este autor fazia ao jornais no princípio do século XX.

O popular escritor Jonathan Franzen traduziu recentemente alguns ensaios de KK, um livro intitulado The Kraus Project, que tem levado muitos americanos a descobrirem a obra deste austríaco com fama de rezingão. Foi publicado um ensaio pela Universidade de Chicago que reflete sobre a cobertura jornalística da chamada “Primavera Árabe” feita no programa 60 Minutos, da cadeia televisiva CNN, mostrando como Kraus continua actual.
Em 2011, na cobertura da revolução no Egito, o jornalista Anderson Cooper não se coíbe de dizer maravilhas da ‘Primavera árabe’ ou da ‘Revolução Facebook’. Dois anos depois, já com vários destes países mergulhados no caos, a economia em frangalhos e o presidente eleito, Mohamed Morsi, colocado em prisão domiciliária, Cooper volta ao Egito e as suas reportagens ou ignoram a situação (sem mencionar a Síria) ou relatam incidentes específicos, como se a CNN nunca tivesse aplaudido a revolução e sempre tivesse sabido que esta não podia funcionar. Como a informação é disseminada num mundo onde a verdade está sujeita ao ciclo de notícias diárias, é um tremendo problema social – um problema enfrentado por Kraus com uma estranha presciência”, escreve Marjorie Perloff neste ensaio.
Mas, provavelmente, a crítica mais constante que Kraus fazia aos jornais era a de deturparem a realidade através da corrupção da linguagem; o abuso de estereótipos é para ele o pecado capital, pois assim se nivela a realidade e se transforma a humanidade numa massa de consumidores passivos, escravos de um progresso que em vez de contribuir para a libertação do Homem consumou a sua desumanização. É esta desumanização crescente e a sua incrível semelhança com estes anos do século XXI que tornam a leitura dos textos reunidos no volume Nesta Grande Época, tão inquietante. Como escreve António Sousa Ribeiro no prefácio, o jornalismo satírico de KK define-se “pela sua capacidade sismográfica de entender como o aparentemente inócuo, o que escapa à perceção moral, à doxa corrente, pode constituir um indicador relevante de um estado de coisas e torna-se um dos aspetos fundamentais da crítica à normalidade”. Já Elias Canetti vai perceber que a sátira de KK está cheia de horror e de incredulidade com o presente. Em suma, ele não se limita a fazer humor, ele quer sobretudo fazer passar o seu horror, arrancando as máscaras à realidade de fachada construída pelos jornais.

“É preciso drenar o vasto pântano dos lugares comuns” ou “é preciso ver abismo onde o que há são lugares-comuns” são dois reptos de KK contra a imprensa que se tornaram famosos. Daí que Die Fackel fosse também um laboratório de escrita experimental e nunca tenha cedido à linguagem nem aos géneros jornalísticos tal como eles se consolidaram ao longo do século XX. Considerado um pré-expressionista, a obra deste autor foi sentida como “excessiva” até pelos modernistas e, provavelmente, só algumas gerações depois a Áustria (e o mundo) terá um autor ao nível de Kraus: Thomas Bernhard.
A redução da capacidade de experiência, de imaginação e de criatividade operada pelos jornais e a consequente cultura da violência que daí advém, são outras das críticas de Kraus e tornam-se especialmente evidentes nas vésperas da 1ª Guerra Mundial, quando uma onda de nacionalismo e de entusiasmo com a guerra era diariamente alimentada pelos jornais da época, os jornalistas que iam reportar na frente passaram a ser representados como heróis com mais facilidade que os soldados nas trincheiras, as suas “aventuras” na frente, onde morriam centenas de milhar de homens, chegavam a ter mais destaque nas reportagens do que a guerra em si. Tudo isto Kraus vai recolher mostrando o jornalismo a partir de um ângulo que ainda hoje só nos pode envergonhar.

Die Fackel era o grande fenómeno jornalístico num império com centenas de jornais, ainda que o seu editor se movesse numa solidão cada vez mais acentuada, o que não parecia atormentá-lo, pelo contrário. É que, como frisa António Sousa Ribeiro, KK “não interroga apenas o mundo, interroga-se constantemente enquanto sujeito desse mundo”, e tudo aquilo que escreve nasce das suas preocupações pessoais e emocionais profundas, como pode ser compreendido nas cartas trocadas durante anos com a baronesa Sidonie von Nádhérny, com quem teve uma longa e atribulada relação amorosa.

Ainda hoje ninguém sabe muito bem como classificar o Die Fackel, tal como ninguém sabe bem como classificar Kraus. Chamam-lhe polemista, satirista, alguns mais temerários chamam-lhe jornalista, embora ele certamente desdenhasse este epíteto. A prova é que o próprio designava os jornalistas pelo neologismo “journaille” (do alemão “journalist” e do francês “canaille”). Este termo ofensivo, que ele não inventou mas celebrizou, será retomado em força por Hitler para atacar a imprensa. O que só mostra que o aviso obsessivo de Kraus sobre o perigo da transformação de palavras em chavões, da repetição que gera sempre deturpação do significado e da força original das palavras pelos mecanismos de poder e que só pode ter como consequência a utilização da palavra ao serviço da barbárie e da injustiça. Veja-se como recentemente os média ajudaram a disseminar termos como TINA (there is no alternative), etc.
A submissão da humanidade à economia só lhe deixou a liberdade de ter inimigos, e, se o progresso lhe acerou as armas, criou-lhe também a mais assassina de todas, uma arma que lhe tirou, para além da sua necessidade sagrada, mesmo a última preocupação com a salvação espiritual terrena: a imprensa (…) torna-se-me claro que a vida não passa de uma cópia da imprensa. Se, nesta era de progresso, aprendi a subestimar a vida, fui forçado por outro lado a sobrestimar a imprensa. O que é ela? Um simples mensageiro? Alguém que nos incomoda com as suas opiniões? (…) que arrasta atrás de si um séquito de personalidades informadas, a par dos acontecimentos, iniciadas e notáveis, que têm por função dar-lhe o aval, dar-lhe razão, parasitas importantes do supérfluo (…) mas um dia as pessoas poderiam dar-se conta de como uma guerra mundial como esta foi uma coisa insignificante comparada com a auto-mutilação espiritual da humanidade através da sua imprensa (…) hoje em dia, as relações entre as catástrofes e as redações são muito mais profundas e portanto muito menos claras…” (Karl Kraus, Nesta Grande Época)
Este texto que Kraus escreve em 1915, depois de vários meses de silêncio total em que interrompe a publicação do jornal, será certamente um dos libelos mais contundentes escrito contra os jornais. Hoje, uma análise dos media, e não apenas dos tabloides, mostra como esta relação entre a violência, o empobrecimento da experiência e o entorpecimento do espírito crítico continuam presentes em muitos media.

Como é que um jornalista lê hoje Karl Kraus?

Falámos com o jornalista da RTP e professor Jacinto Godinho, autor de documentários como “A PIDE antes da PIDE”, “Quando a tropa mandava na RTP” e, por estes dias, “Maio de 68: Laboratório de Revoluções”, que conheceu a figura de Karl Kraus e alguns dos seus textos por via do docente e ensaísta José Bragança de Miranda, quando era estudante de jornalismo na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Recorda que, por causa dele, acabou o curso “muito chateado com o jornalismo”.

Seja no jornal, nos aforismos ou no drama Os Últimos Dias da Humanidade (onde a personagem do jornalista corrupto e irresponsável é recorrente), é impossível não ficar atordoado, “ele tinha muito vincada a ideia de que essa coisa do ‘público’ era uma construção dos jornalistas para manipular as consciências. Percebe que a forma como estes interpretam o tempo e os acontecimentos é muito polarizada, logo muito apetecível para as pessoas, que, assim, sentem que compreendem a realidade, dividindo tudo entre o Eu e o Outro sem nunca abrir uma terceira via de interpretação. Ora, Karl Kraus era mais que uma terceira via, ele era a esquizofrenia: um jornalista mais anti-jornalismo cuja intervenção pública se fez maioritariamente dentro do campo do jornalismo. Porque ele não estava no campo das artes ou da política”, afirma Jacinto Godinho.

Mas como jornalista e editor, KK estava sempre a alimentar polémicas. Ele polemizava com todos, em especial com os poderosos, quer na escrita quer nas leituras públicas, polemizava até com o seu público. O corolário do seu talento eram as frases. Os seus textos podem ser decompostos em frases que são, todas elas, perfeitas, não têm qualquer brecha onde o inimigo possa penetrar para o atingir. Mas a sua sofisticação linguística era também uma reação contra a linguagem dos jornais que ele tanto criticava.

Elias Canetti recorda que KK incutia nos que o liam “um sentimento de responsabilidade” que é o contrário do que nos pede hoje “o empenhamento”. Esse empenhamento, continua Canetti, “é uma débil palavra que nasceu para a banalidade (…) a responsabilidade é 100 graus mais difícil”.Por isso, diz Jacinto Godinho “muito do mundo que nos surge hoje mediado pelo jornalismo é cada vez menos jornalismo. É apenas circulação de informação e de palavras, mas isso não é jornalismo. A mediação dos jornalistas entre as pessoas e o ‘Acontecimento’, fazendo com que este seja uma via para a abertura do pensamento, do espírito crítico, da intervenção, já quase não existe e, hoje se calhar encontramos mais facilmente o verdadeiro jornalismo no cinema ou no teatro do que nos jornais e televisões.”

Outra das coisas que manifestamente desapareceu dos media foram as polémicas que celebrizaram por exemplo Aquilino Ribeiro, António Sardinha, Raul Leal. Muitas acabavam à bengalada nos café e livrarias do Chiado. “Kraus”, escreve Elias Canetti, “literalmente sozinho, confrontava, escutava, sondava, atacava e chicoteava o mundo (…) era portanto o mais anti-tipo de todos os escritores, que passam mel pelos lábios das pessoas a fim de serem louvados por elas”. Jacinto Godinho defende que “as polémicas desapareceram enterradas no excesso de polémicas sobre coisa nenhuma que os media parecem querer levantar, outras que todos os dias nascem e morrem nas redes sociais sem qualquer consequência. A última proposta de polémica que me pareceu poder ser interessante foi alimentada no jornal Público sobre a escravatura, mas aquilo era tão alinhado pelo politicamente correto que acabou por não resultar. Temos um bom polemista que é Vasco Pulido Valente, mas que na verdade nunca teve ninguém à sua altura para polemizar.”

Outro dos grandes problemas do jornalismo atual, afirma o repórter da RTP, “é que o jornalismo foi quase totalmente tomado pelo ‘comentarismo’ e colonizado por discursos de campos paralelos como a publicidade, o marketing, o que mostra uma fraqueza do campo jornalístico que não consegue bater-se contra isto e vai lentamente sufocando. Um exemplo disso é a forma como importa para o seu discurso palavras vindas destes campos, quase sempre em inglês, não procurando sequer, dentro da língua portuguesa, uma nova forma de nomear as coisas. Bem recentemente lá criaram a ‘geringonça’, que é boa, funciona, mas já raramente fazem isto.Ora ter boas palavras é fundamental no jornalismo.”

“Hoje em dia também já quase não há escrita sobre o acontecimento, passa-se logo para a interpretação, antes que a notícia, a história no seu estado puro, chegue ao público e ele tenha que construir a sua própria opinião, a sua posição. Ela já está interpretada, comentada, arrumada. Por outro lado, os inúmeros comentários que povoam o espaço jornalístico raramente têm verdadeiramente novas propostas de interpretar os factos. Neste ritmo, que na televisão talvez ainda seja mais notório que nos jornais, o que estes comentadores fazem não é sequer comentário, é pura especulação. Só usam lugares comuns, chavões, não apresentam nenhuma visão relevante do acontecimento. Por exemplo, quando há um atentado, nunca há uma proposta de interpretação que não passe pelo ‘Daesh’ ou pela’ radicalização dos nacionalismos’, não passa disto. Mas torna-se cada vez mais difícil para o público fazer a sua própria interpretação sem ficar refém do discurso dos comentadores.”

“Graças a ele [Karl Kraus] comecei a perceber que cada ser humano tem uma forma linguística pela qual se distingue dos outros, e que não há maior ilusão de que a linguagem é um meio de comunicação entre as pessoas”, refere ainda Canetti no ensaio Karl Kraus: Escola de Resistência*. Esta impossibilidade de comunicar num tempo que erigiu as suas fundações sociais, políticas e até afetivas sobre instrumentos de comunicação não deixa de ser visível na forma como os jornalistas estão cada vez mais tempo nas redações em frente a computadores e cada vez menos fora das redações e no meio das pessoas a ouvi-las, da mais importante à mais insignificante, como fazia Kraus.

“Essa capacidade de ‘ouvir todas as vozes’ parece estar a desaparecer”, diz ainda Jacinto Godinho. “As entrevistas fazem-se por email, as pessoas não se encontram fisicamente, as conversas não se desenrolam, ninguém quer abdicar do controle. Uma entrevista por email não é uma entrevista, uma série de perguntas e respostas não corresponde a uma entrevista, que tem na sua génese uma conversa. As pessoas acantonaram-se, distanciaram-se, parecem ter receio de enfrentar os outros sem ser via digital e de forma impessoal. Ora isto vai minando a experiência que é fundamental ao jornalista, porque o conflito é parte essencial da nossa relação com os outros e com o mundo. Um conflito pode ser duro, mas o que ganhamos com ele em termos de experiência viva é de um valor incalculável: os gestos que não se previram, as palavras que não se pensou dizer, tudo isto faz parte das relações humanas que são a génese do jornalismo. O jornalismo só acontece frente a frente”.

Entre 1899 e 1936 publicaram-se 922 números do Die Fackel e Kraus fez mais de 700 leituras públicas. Em 1909 publica o primeiro livro de Aforismos. Em 1922 sai a primeira versão do drama Os Últimos Dias da Humanidade, com cerca de 800 páginas e que termina com a frase: “Não, a alma não fica com cicatrizes. A bala há-de ter entrado na humanidade por um ouvido e saído por outro”.

* Os ensaios “Karl Kraus: uma escola de Resistência” e “O Novo Karl Kraus” pertencem ao livro de Elias Canetti “A Consciência das Palavras”, Cavalo de Ferro
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