Porque será que não fiquei surpreendido nem com os negócios imobiliários de Ricardo Robles, nem com as reacções histriónicas das suas companheiras de partido, que começaram a disparar contra tudo e contra todos enovelando-se em artifícios e mentirinhas?
Não, não foi por acreditar nas suas desculpas esfarrapadas e cheias de contradições que não deixarão de o perseguir nos próximos tempos.
Não fiquei
surpreendido por uma razão bem mais simples: porque é da natureza do
Bloco e da ideologia que alimenta o Bloco ser assim e actuar assim. É da
natureza do Bloco porque está-lhe na massa do sangue ver-se a si mesmo
como estando acima dos demais, como sendo a moral do regime. E é da
natureza da sua ideologia porque ela vê-se como moralmente superior às demais.
Reparem na reacção de Catarina Martins.
As críticas a Ricardo Robles não eram políticas – eram interesseiras,
pois apenas visavam defender os interesses das imobiliárias que o Bloco
em bloco, e Robles em particular, tão corajosamente têm atacado. E as
notícias dos jornais não eram inocentes, muito menos fruto de os
jornalistas tratarem de cumprir a sua missão de fiscalização dos
titulares de cargos públicas, antes maquinações venais, peças
encomendadas e conspirações mal disfarçadas.
Há aqui algum
descontrolo emocional que até nos diverte já que, ao menos uma vez na
vida, foram os bloquistas a ser apanhados em evidente contrapé, tão fora
de mão que nem conseguiram beneficiar da habitual benevolência
camaradas de muitas redacções. Contudo esse descontrolo emocional apenas
tornou mais evidente a forma de raciocinar do Bloco e dos seus
dirigentes.
Primeiro que tudo,
Catarina Martins, tal como Ricardo Robles, consideram-se políticos
moralmente superiores aos demais. Não há aqui nada de novo, pelo
contrário: eles apenas estão na linha da tradição dos radicais de
esquerda, dos jacobinos aos comunistas, eles apenas seguem a cartilha de
quem, sem tibiezas nem disfarces, assumiu essa condição de estarem
acima dos demais: nada menos que o próprio Álvaro Cunhal. Sim, porque
foi ele quem escreveu, significativamente em 1974, o ano da revolução,
um pequeno opúsculo intitulado A superioridade moral dos comunistas, um texto que é muito útil revisitar pela sua clareza e um desassombro no limite da arrogância.
Para Cunhal, “os
comunistas não se distinguem apenas pelos seus elevados objectivos e
pela sua acção revolucionária, distinguem-se também pelos seus elevados
princípios morais”. Perguntar-se-á: porque são homens melhor do que os
outros? Não, como Cunhal tem o cuidado de explicar. Eles são superiores
porque “a moral dos comunistas é contrária e superior à moral burguesa”.
Eles até podem ter fraquezas, mas estão do lado certo da história, e é
isso e só isso que conta para os comunistas e seus aparentados (como são
os bloquistas). A superioridade da sua moral deriva de serem, por
definição, agentes do bem e mensageiros de um futuro radioso pois, como
explicava o dirigente histórico do PCP, essa moral identifica-se com a
“natureza, objectivos e missão histórica do proletariado”. O conceito
chave aqui é “missão histórica”: é ele que autoriza tudo e justifica
tudo.
A argumentação deste
livrinho surge-nos numa língua de pau a que já não estamos habituados,
mas a sua lógica mantem-se intacta: os radicais de hoje, como os
radicais de ontem, vêem-se como moralmente superiores porque acham que
lutam por uma sociedade sem classes, porque defendem que “a propriedade é
um roubo” (no sábado os bloquistas que foram ao acampamento de
juventude tinham um painel dedicado a esse tema, mas suponho que o nosso
Robles é capaz de não ter assistido) e entendem que só há uma sociedade
decente, que é aquela onde tudo é de todos e nada é de ninguém (o que
sempre acabou com o partido e o Estado a serem donos de tudo, mas isso
são detalhes).
O paradoxo desta
moral é que ela pressupõe que os radicais sejam desprendidos dos bens
materiais, e eles acham mesmo que são. Ou, para ser mais exacto, acham
que serão no dia em que se realizar a sua utopia. Até lá fazem o que
Lenine lhes ensinou: usam tudo o que as nossas sociedades colocam ao seu
dispor para atingirem os seus objectivos. Fazem-no na acção política,
mas não lhes repugna fazê-lo também nas suas vidas pessoais. Isso não
lhes causa qualquer problema de consciência – não causou a Ricardo
Robles, como não causa a Varoufakis (no seu apartamento com vista para a
Acrópole), como não causa a Pablo Iglesias (feliz na sua vivenda de 650
mil euros), como não causa a todos os políticos do PT brasileiro que
“fizeram como os outros” e enriqueceram.
Por isso, repito,
nada disto nos devia surpreender. É uma tradição antiga, com raízes na
Revolução Francesa e nos jacobinos de 1793, de quem, como escreveu
François Furet, o grande historiador desse período, “se esperava que
abrissem o caminho à burguesia, mas que nos deram o primeiro exemplo de
burgueses que detestam os burgueses em nome de princípios burgueses”.
Foi apenas o primeiro exemplo, pois muitos outros se seguiram, como
recordou e elencou no seu magistral estudo O Passado de uma Ilusão – Ensaio Sobre a Ideia Comunista no Século XX.
Será possível
encontrar melhor encarnação dessa imagem de um burguês que detesta os
burgueses do que Ricardo Robles? É difícil, porque na verdade o vereador
bloquista se atreveu a ir longe demais no exercício da hipocrisia.
Mas, de novo, temos de reconhecer que as evidentes contradições entre o
que diz e o que faz possuem antecedentes famosos e, sobretudo,
reveladores da doença congénita do radicalismo moralista.
Regresso à Revolução
Francesa pois volta a ser nela, e na forma trágica como evoluiu de uma
libertação para uma opressão, e desta para o Terror, que encontramos
alguns dos males que hoje detectamos no radicalismo “moralmente
superior”. Edmund Burke, porventura o mais lúcido crítico dos excessos
franceses, não pode por exemplo deixar de notar, na crítica que fez a um
dos filósofos que inspirou os radicalismos revolucionários,
Jean-Jacques Rousseau, que se tratava de alguém que, ao mesmo tempo que
se proclamava ao serviço da Humanidade não tivera sequer a humanidade
suficiente para não entregar os seus seis filhos a um orfanato, tendo
uma conduta pessoal deplorável. “A lover of his kind, but a hater of his
kindred”, escreveu de forma ácida mas certeira, interrogando-se sobre
se os homens deveriam ser julgados pelos seus comportamentos reais ou
pelas suas grandiosas, e “generosas”, proclamações. Ou seja, identificou
um mal que ainda hoje detectamos nos muitos “filhos de Rousseau” que
por aí andam – pois é isso que são, mesmo que gostem mais de se ver como
“filhos de Marx”.
Na nossa esquerda
chique, muito bem representada nas fileiras do Bloco, esta condição é
especialmente evidente. O amor que proclamam pela causa dos pobres, ou
dos idosos, ou dos doentes do SNS, é sempre um amor tão absoluto e
radical que só pode ser um amor “abstracto”. É um amor que por isso
mesmo nunca ou quase nunca se traduz em acções desinteressadas de
voluntariado, em gestos simples de solidariedade como darem apoio a
doentes em cuidados paliativos ou andarem pela cidade a distribuir
comida aos sem abrigo. Isso seria corromper o seu amor absoluto porque
isso seria “caridadezinha” – para além de que iriam misturar-se com as
organizações cristãs de solidariedade social, que abominam.
A nossa esquerda
chique está cheia deste tipo de figuras – a que Burke também chamou
“filósofos da vaidade” –, mas imagino que nesta fase do meu texto muitos
pensem que exagero. Afinal nem todos são como Ricardo Robles, nem todos
fizeram, ou tentaram fazer, os negócios em que este se meteu, o que é
uma evidência. Afinal os que no Bloco são mais ortodoxos (como Luís
Fazenda, o único dirigente bloquista a distanciar-se do vereador lisboeta)
sabem que à “superioridade moral dos comunistas” deve corresponder
também um mínimo de esforço para seguir a chamada “moral comunista”, e
que Robles está a milhas dessa preocupação terrena.
Mas eu, que conheci por dentro estas organizações
(por lá andei entre os 15 e os 23 anos, depois curei-me), que li os
livros que os inspiraram e inspiram e participei em muitos convívios (na
época não lhes chamávamos pomposamente “workshops”) de formação de
militantes, identifico nas Catarinas, nas Mortáguas e nos Robles o mesmo
sentimento de “superioridade moral” que sempre se respirou nesses meios
e que Álvaro Cunhal tão orgulhosamente reivindicou. A diferença é que
hoje já se abandonaram palavras como “proletariado” e “luta de classes”,
trocando-as por temas mais “urbanos” e preferindo os corredores das
universidades às cantinas das fábricas para difundirem a sua doutrina
(nisso são muito mais gramscianos do que leninistas). A diferença é que a
esquerda chique é mesmo só ideologia e complexo de culpa (pela sua
condição burguesa), o que a torna ainda muito mais amoral.
Se não fosse este o ar que o Bloco respira não se tinham unido todos e todas da forma como uniram na defesa do indefensável.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário