Bolsonaro joga esse
jogo. Mapeou as duas principais sensibilidades do brasileiro médio — o
desprezo pelo establishment político (vide o modo como tentou
capitalizar a mobilização de caminhoneiros) e a demanda por segurança
pública — e, sobretudo no caso da segurança, estabeleceu-se como o
senhor do assunto, o único que verdadeiramente se sensibiliza com o
problema, e o único que o enfrenta com a prioridade exigida pela
população. Artigo semanal do editor de livros Carlos Andreazza, via O
Globo:
Só muito raramente
escrevo sobre livros que edito. Esta é uma exceção. Impõe-se. O motivo é
simples: a obra ajuda a empreitada daqueles que tentam — a sério, sem
lhe subestimar a inteligência — compreender Jair Bolsonaro; ou melhor,
oferece instrumentos aos que lhe querem decodificar o discurso.
Refiro-me a Ganhar de lavada, trabalho em que Scott Adams disseca as
técnicas de persuasão por meio das quais Donald Trump não apenas venceu a
eleição presidencial americana, mas também reinventou o Partido
Republicano, dinamitou o Democrata e minou, como sem precedentes, a
credibilidade da imprensa tradicional.
Não se iluda, leitor:
Trump ganhou — fez tudo isso — no discurso. Ele identificou os anseios
fundamentais do público para o qual poderia falar, aquele que o queria
ouvir e que lhe bastaria para vencer, e investiu todas as fichas na
percepção de que as pessoas não tomam decisões com base em fatos, e que
estão facilmente propensas a ignorar detalhes se atraídas por uma
palavra hábil capaz de corresponder a suas prioridades e a seu estado
emocional. Mais do que querer as mesmas coisas que o eleitor que
cortejava, Trump era — tornou-se — as coisas que o eleitor que cortejava
queria; e operou essa complexa justaposição de existências
exclusivamente graças à sua apreensão da realidade e ao modo como se
comportou a partir dessa leitura.
Não sei se Bolsonaro
conhece Adams, se estudou as ferramentas de convencimento do presidente
americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os métodos. Com sucesso
até aqui. Todos se lembram do “muro de Trump”, o paredão que, eleito,
ergueria para separar os EUA do México. Trata-se da hipérbole exemplar, a
âncora a partir da qual o então candidato cravou para si — com ódio de
um lado tanto quanto paixão de outro — uma bandeira objetiva capaz de
mobilizar milhões de eleitores e transformá-lo em protagonista, em
pauteiro-mor, da campanha.
Não há moralidade
quando se emprega tal nível de persuasão. Somente eficácia. Quando Trump
afirmava, espetacular e radicalmente, que deportaria milhões de
imigrantes, inclusive legais, outra coisa não fazia do que se inscrever —
na mente das pessoas — como o único que se preocupava com a porosidade
das fronteiras nacionais e com a imigração ilegal, e o único que faria
algo prático a respeito, daí o muro. Pormenores sobre como implementar o
que prometia? Ora, ele se aprofundaria nas formas de execução quando
empossado, com o auxílio de especialistas. Impossível não pensar em
Paulo Guedes, no caso bolsonarista, como emblema tranquilizador dessa
mensagem postergadora.
Bolsonaro joga esse
jogo. Mapeou as duas principais sensibilidades do brasileiro médio — o
desprezo pelo establishment político (vide o modo como tentou
capitalizar a mobilização de caminhoneiros) e a demanda por segurança
pública — e, sobretudo no caso da segurança, estabeleceu-se como o
senhor do assunto, o único que verdadeiramente se sensibiliza com o
problema, e o único que o enfrenta com a prioridade exigida pela
população. Ele também ergueu seu muro. E aqui falamos de ferramentas de
convencimento, pouco importando a violência da proposta, segundo seus
detratores, tanto quanto sua realização impraticável, segundo o mundo
real. A amarra mental de Bolsonaro — o gatilho de choque por meio do
qual se eleva como dono da pauta da segurança — é a ideia, afirmada e
reafirmada, de armar a população; o tom dessa pregação se intensificará
daqui até outubro.
Quem já o viu falar
sobre segurança pública certamente se espantou com a superficialidade de
seus comentários a respeito. Puro método, no entanto. O deputado pode
passar horas tratando da questão sem mencionar, nem sequer de passagem,
seu cerne, a fragilidade das fronteiras por meio das quais drogas e
armas entram no país, e ainda assim convencer multidões de que é o único
consistentemente preocupado com a insegurança do brasileiro. Uma arma
na mão e uma defesa na cabeça. Aí está. Abordagem genérica com solução
micro: eis o discurso de Bolsonaro. Funciona. Comove. Arrebanha.
Persuade. É chamamento individual; convite à participação de sujeitos
historicamente excluídos; solução compartilhada — não interessa se
estúpida. Bolsonaro, a rigor, não fala de outra coisa senão de proteção à
propriedade privada. E acerta.
Não adianta,
portanto, cobrar-lhe que se aprofunde, que apresente um programa,
tampouco supor que o simplismo exagerado de sua fala sobre segurança
seja falho. Não é. Não para efeito eleitoral. Bolsonaro não é um parvo
no lugar e no momento certos. Há ciência em sua generalidade. Ele é
objetivo. Descarta pormenores próprios à política porque estica seu
verbo no sentimento, o da moda, que repele tudo quanto derive da
política como atividade. Ele foge da minúcia porque constrói seu
discurso numa camada narrativa que prescinde da razão para comunicar e
seduzir – uma faixa, legítima, que é essencialmente emocional, e para a
qual nuance é blá-blá-blá.
Como Trump, Bolsonaro
trabalha para se converter numa ideia, num valor. Ao contrário de
Trump, porém, não vencerá. Como Trump, contudo, já ganhou.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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