"Nos anos 50, as
mulheres eram vítimas de homens que não as queriam ouvir; hoje, são
vítimas de mulheres que também não as querem ouvir. Tal como acontecia
com os velhos moralistas, as novas ativistas do feminismo não pretendem
escutar as mulheres — pretendem mudá-las, moldá-las, reeducá-las. A bem
ou, se necessário, a mal". De fato, há muitas semelhanças entre o
moralismo e o feminismo, escreve Miguel Pinheiro no Observador:
Isabel Moreira devia
conhecer esta história. Na década de 50, Fanny Rosenow e Teresa Lasser
tiveram cancro da mama e, depois de serem submetidas a “mastectomias
radicais”, sobreviveram. Durante esse doloroso processo, trocaram
confissões e receios e perceberam que havia algo de terrivelmente
errado: as mulheres que estavam na mesma situação que elas não tinham
apoio, nem ajuda — perdidas entre o choque e a confusão da doença,
ninguém as guiava, ou informava, ou consolava. Em vez de seguirem em
frente, Fanny Rosenow e Teresa Lasser voltaram atrás, para ajudarem quem
veio depois: criaram um grupo de apoio para mulheres com cancro da
mama, que se tornaria numa das principais instituições na sua área. E
perceberam imediatamente que o primeiro passo para quebrar o vazio era
mostrarem que existiam. Por isso, decidiram colocar um anúncio no The
New York Times, o jornal mais lido e respeitado dos Estados Unidos.
Quando Fanny telefonou para o departamento comercial, já com o cheque
pronto para ser assinado, transferiram misteriosamente a chamada para um
editor de Sociedade. Ao fim de uns segundos, ele explicou-lhe o que se
passava: “Lamento, senhora Rosenow, mas o Times não pode publicar nas
suas páginas a palavra ‘mama’ nem a palavra ‘cancro’. Talvez possa pôr
no anúncio que se trata de um encontro sobre doenças da parede
torácica”.
E assim Fanny
percebeu como um misto de moralismo e paternalismo criara um denso
silêncio que contribuiu para o sofrimento e morte de muitas mulheres. O
raciocínio de quem decidia o que podia ou não ser publicado num jornal
era simples e implacável: não era aceitável escrever a palavra “mama”
porque ela remetia para a sexualidade; e as mulheres sérias, nos anos
50, não podiam ser vistas como estando associadas a desejos sexuais. Por
isso, em vez de se falar abertamente de uma doença que por acaso era
designada pela palavra “mama”, e assim ajudar e salvar milhões de
mulheres, preferia-se esconder a palavra — e, escondendo a palavra,
esconder a doença também.
De forma
involuntária, a sociedade dos anos 50 criara um beco sem saída: os
homens, que dominavam a linguagem, não se queixavam porque não sofriam
da doença; e as mulheres, que sofriam da doença, não se podiam queixar
porque não dominavam a linguagem.
Hoje, a palavra
“mama” é tão comum que pode aparecer em qualquer jornal de paróquia sem
provocar escândalo ou repulsa. E as mulheres, felizmente, já partilham
com os homens o domínio da linguagem. Mas continua a haver palavras que
não se podem escrever, nem dizer. Nem, aliás, pensar. Por exemplo:
“princesa”.
De certeza que já
perceberam onde é que eu quero chegar. O Bloco de Esquerda, a deputada
do PS Isabel Moreira e vários grupos feministas ficaram chocadíssimos
com a utilização da palavra “princesa” na campanha do Governo que
pretende combater o aumento de consumo de tabaco entre as mulheres, um
dos grandes problemas de saúde pública da atualidade. Segundo parece, a
filha da fumadora que aparece no filme publicitário é vítima de um
terrível estereótipo, “uma vez que a menina é vista como uma princesa”.
É uma mudança
tristemente irónica. Nos anos 50, os americanos não conseguiam ser
suficientemente literais: para eles, uma “mama” era um apelo à
pornografia, não era só uma parte do corpo. Em 2018, as novas activistas
do feminismo são excessivamente literais: para elas, uma “princesa” é
apenas a mulher que casou com um príncipe.
Na realidade, como
todos sabemos, uma “princesa” não é apenas e só isso — aliás, no dia a
dia dos portugueses, não é mesmo nada disso. Quando uma mãe trata a
filha por “princesa” não está a dizer: “Tens de casar com um homem que
tenha uma coroa e que te sustente até ao fim da tua vida”. O que ela
está a dizer é: “Tu és capaz de ser tudo o que quiseres e não há ninguém
superior a ti, nem mesmo as princesas, porque tu já és uma princesa”.
Uma pessoa escreve
isto e cora de vergonha porque percebe que chegámos a um ponto em que é
preciso explicar o óbvio. Não por uma questão de burrice: as novas
activistas do feminismo sabem muito bem o que quer dizer a palavra
“princesa” para as mães portuguesas. Simplesmente, isso não lhes importa
porque a política está à frente de tudo. Um dos seus nichos eleitorais é
a igualdade de género e, portanto, vão descobrir problemas de igualdade
de género em todo o lado — mesmo onde eles não existem.
As novas activistas
do feminismo estão a usar uma velha táctica totalitária que sempre
serviu para acelerar rupturas de comportamento nas sociedades. Basta ler
o “1984”, de George Orwell. Primeiro, elas apropriam-se das palavras;
depois, dão a si próprias o poder de decidir o que essas palavras querem
dizer; por fim, decretam quais são as palavras aceitáveis e quais são
as palavras que devem levar ao exílio social quem tiver a ousadia de as
usar. Nunca nos devemos esquecer: quem domina as palavras, domina a
política; e quem domina o discurso público, domina as pessoas.
Numa fase inicial,
algumas dessas pessoas questionam e argumentam, tentando contrariar o
exercício de distorção da linguagem, como eu estou a fazer aqui. Mas, ao
fim de algum tempo, cedem e conformam-se, para não arranjarem problemas
ou chatices.
Nos anos 50, as
mulheres eram vítimas de homens que não as queriam ouvir; hoje, são
vítimas de mulheres que também não as querem ouvir. Tal como acontecia
com os velhos moralistas, as novas activistas do feminismo não pretendem
escutar as mulheres — pretendem mudá-las, moldá-las, reeducá-las. A bem
ou, se necessário, a mal.
P.S.: A história de
Fanny Rosenow está contada no livro “The Emperor of All Maladies — A
Biography of Cancer”, de Siddharta Mukherjee.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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