Obra de Ottmar Hörl, com 800 imagens de Lutero, exposta em Wittenberg. |
Por sugestão de meu amigo Paulo Roberto de Almeida, do blog Diplomatizzando, publico aqui artigo escrito pela estudiosa espanhola María Elvira Rocha Barea, filóloga e autora de Imperiofobia e lenda negra (Siruela),
que aborda o quinto centenário de Martinho Lutero, o pai do
protestantismo. O manto religioso esconde um conflito político e
nacionalista, diz a autora. De fato, há mais sombras do que luzes na
vida do monge agostiniano que rompeu com a Igreja Católica:
Diz a lenda que, em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546), escandalizado com o vergonhoso espetáculo que a Igreja Católica
oferecia e indignado com a venda de indulgências, pregou nas portas da
igreja de Wittenberg as 95 teses que desafiavam o poder de Roma. O
aniversário de 500 anos desse gesto está sendo celebrado com pompa na
Alemanha. Merkele Obama
prestaram homenagem a Lutero em 25 de maio no Portão de Brandemburgo e,
por volta da mesma data, foi inaugurada uma espetacular exposição em
Wittenberg. Esses são só alguns dos eventos mais destacados. Desde o fim
da Segunda Guerra Mundial,
os aniversários luteranos (nascimento, morte, 95 teses, iluminação
divina durante a tempestade de 1505…) quase não tinham relevância. Mas
agora isso mudou. Por quê?=
O gesto
descrito às portas da igreja de Wittenberg é a representação mítica e
ritual do significado de Martinho Lutero para o chamado Sacro Império Romano-Germânico.
Há muito se duvida que ele tenha mesmo pregado suas teses; as menções
ao ato desafiador aparecem muito depois, conforme se vai adornando e
mitificando a personagem Lutero e o cisma que ele trouxe consigo. Mas,
se non è vero, è ben trovato (ainda que não seja verdade, é bem
possível). Seria muito menos heroico mandar o texto de protesto pelo
correio – que é o que provavelmente aconteceu – ao bispo de Mogúncia
(Mainz). O gesto simbólico conserva hoje toda sua aura teatral, mas era
muito mais épico naquele tempo, porque o homem do século XVI sabia que
essa era a maneira de divulgar os chamados cartazes de desafio, em que
um cavalheiro insultava publicamente outro e o desafiava a um duelo. E
era preciso responder, quem não o fazia ficava desonrado para sempre.
Há, na figura de Lutero, um componente de heroísmo a posteriori muito
interessante para compreender seu significado na história da Alemanha e também, não se surpreenda o leitor, na da Espanha.
O cisma
luterano é a manifestação de um problema político, mas o contexto
religioso em que foi mantido turva completamente sua compreensão.
Através dele se expressa o nacionalismo germânico primordial e, por
isso, Martinho Lutero é celebrado e exaltado na Alemanha cada vez que
esse nacionalismo ganha força. Desde a Segunda Guerra Mundial não se
comemorava de maneira significativa nenhuma efeméride luterana. Em 1983
passou em branco na Alemanha Ocidental o quinto centenário do nascimento
de Martinho Lutero, tão festejado nos tempos de Bismarck. Em 10 de novembro de 1883, por exemplo, o imperador Guilherme I liderou o desfile do quarto centenário de nascimento de Lutero em Eisleben.
Em
Historia del año 1883 o intelectual e político espanhol Emilio Castelar
escreve: “Os povos protestantes celebraram o quarto centenário de Lutero
com júbilo universal” e ainda, embora “os católicos e os protestantes
da Alemanha não tenham concordado em homenagear o religioso,
concordaram em homenagear o patriota”. Mas o mais interessante é o
expediente: “Nós, que não pertencemos à religião luterana
nem à raça germânica, espanhóis e católicos de nascimento, podemos
celebrar sem receio aquele que, iniciando as liberdades de pensamento e
de exame, iniciou as revoluções modernas, por cuja virtude rompemos
nossos grilhões de servos e proclamamos a universalidade da justiça e do
direito”. Não precisamos, portanto, ir a Wittenberg para ler os textos
que comentam a espetacular exposição. O que ali se conta é exatamente o
mesmo que Castelar nos diz: Lutero, o pai da liberdade religiosa na Europa; Lutero, o herói por cujo esforço ímpar este continente se livrou das trevas e da escravidão.
Castelar diz que “rompemos nossos grilhões”. A Lutero devemos nada
menos que “a justiça e o direito”, porque é evidente que os espanhóis
não tínhamos isso.
E, claro, se Lutero rompe os grilhões
é porque havia grilhões a romper e alguém os tinha colocado. Se traz a
liberdade de pensamento é porque isso não existia, e quem impedia? Nem é
preciso dizer com todas as letras, mas está aí, constantemente
presente: o sombrio e sinistro Império espanhol e católico. Para que o
herói Lutero exista é preciso haver um monstro que o antagonize. Sem
monstro, não há herói. Quem visita Wittenberg ou qualquer das muitas
exposições e celebrações na Alemanha hoje, mesmo sendo espanhol e
católico – e especialmente se for espanhol e católico – não vê o cenário
que torna possível o brilho germânico. Quando digo católico não quero
dizer religioso. A fé é irrelevante neste contexto. Refiro-me a quem
nasceu em um país de cultura católica.
Porque esse fulgor germânico precisou, século após século, como
condição sine qua non para sua exaltação, que o sul mediterrâneo fosse
obscuro e atrasado, imoral e decadente, indolente e pouco confiável. Foi
em tempos de Lutero que o adjetivo welsch – uma denominação geográfica
pouco precisa para referir-se ao sul – passou a significar latino ou
românico, e malvado e imoral ao mesmo tempo.
A
“liberdade luterana” não resiste a um olhar próximo e livre de
preconceitos. Começou provocando uma guerra espantosa que se chamou Guerra dos Camponeses
e deixou mais de 100.000 mortos nos campos do Sacro Império. Porque os
camponeses acreditaram de verdade naquelas exaltadas pregações da boca
de Lutero e de outros que clamavam contra as riquezas acumuladas pelos
poderosos da terra com Roma como fiadora de tais injustiças. Isso provocou uma convulsão social como nenhuma outra na Europa até a Revolução Francesa.
Os príncipes alemães, cujo propósito era basicamente opor-se ao
imperador, não pensaram que incentivar aquela efervescência antissistema
(Carlos V e o catolicismo) poderia se voltar contra eles, mas tiveram
que enfrentar uma revolta de proporções gigantescas. Alguns clérigos
revolucionários como Müntzer,
conhecido como o teólogo da revolução, mantiveram-se fiéis a seus
princípios até o final e foram executados, mas Lutero decidiu
sobreviver. Desde o início de 1525, depois da morte de Hutten
e Sickingen, os dois líderes revolucionários que o tinham protegido,
Lutero fica serviço dos príncipes alemães e incentiva a violência brutal
com que os grandes senhores germânicos sufocaram as rebeliões
campesinas: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena
em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados,
apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães
raivosos”.
A partir de então Lutero passa a ser o grande defensor das oligarquiassenhoriais, o arrimo teológico de um feudalismo tardio
que manteve a Alemanha em um estado de pobreza e atraso já superado na
Espanha e na maior parte do sul. A estagnação dessas oligarquias pela
via religiosa impediu a unificação da Alemanha e possibilitou uma
sobrevivência anômala do sistema feudal nessa parte da Europa. Quase
todo mundo sabe que a servidão na Rússia
durou até o século XIX, mas se ignora que na Alemanha também, sobretudo
nas regiões protestantes. Um dos primeiros estados a abolir as leis de
servidão foi a católica Bavária em 1808, mas, na região oriental, o
processo só foi concluído em meados do século. Bem. Isso no que diz
respeito a Lutero como libertador social. Vejamos agora Lutero como
libertador do pensamento.
Liberdade religiosa
e livre exame são dois ícones linguísticos cunhados por Lutero que
nunca tiveram um reflexo na realidade, como demonstram primeiro a lógica
e depois a história.
Supostamente
o livre exame significa que o cristão deve se entender diretamente com
Deus através dos textos sagrados, sem intermediários onerosos e imorais
como “os romanos” (assim Lutero chamava o clero católico, embora fossem
tão alemães como ele). Se for assim, há uma consequência imediata: o
desaparecimento do clero, por desnecessário. Os fatos demonstram que
isto jamais aconteceu, porque Lutero não operou a destruição das
igrejas, apenas criou outra. Nem Lutero deixou de ser clérigo, nem o
número deles no Sacro Império diminuiu. Simplesmente se formou um novo
corpo sacerdotal que também guiou o rebanho aonde deveria ir. Só que
agora esse corpo de pastores serve unicamente ao senhor do território (e
não a um Papa estrangeiro e a um imperador aliado com o mundo welsch),
que é quem lhe dá de comer. Se lhe servir bem, como fez Lutero, viverá
bem. Viverá inclusive melhor que com os “romanos”, e assim Lutero
recebeu do príncipe da Saxônia, como primeira prova de gratidão, aquele
que havia sido o seu antigo convento em Wittenberg. É um belíssimo
palácio, onde se instalou com sua nova esposa, seus parentes e seus
criados. Tinha nascido no seio de uma família muito humilde e, como
monge agostiniano, jamais teria podido se permitir esses luxos. E aqui
não tocaremos mais no assunto das críticas ferozes aos luxos do clero
“romano”.
A
liberdade religiosa é provavelmente o totem linguístico mais afortunado
de Martinho Lutero. Foi e é ininterruptamente debatido diante das trevas
do catolicismo e da sua nação defensora por princípio, a Espanha. Nem é
preciso pensar muito para ver aonde vai parar a liberdade luterana. Se
ela tivesse existido alguma vez, mesmo que teoricamente, também os
católicos e outras facções protestantes teriam tido direito a ela. Se o
cristão é livre para interpretar os textos sagrados, então também a
interpretação católica é possível e deve ser aceita. E deveria ter sido
respeitada em consonância com a “liberdade religiosa”que
Lutero e seus diáconos pregavam. Se a lógica humana não é um engodo
desde a sua própria raiz, é porque é assim mesmo. Mas o fato é que o
novo clero criou uma versão do cristianismo que foi a única aceitável, e
todas as demais foram proscritas e perseguidas; a católica, obviamente,
mas também os anabatistas, calvinistas, menonitas etcétera.
Entretanto,
século após século, Lutero passeou pela história da Europa imune à
verdade, aos fatos e à lógica. Basta o leitor digitar a sequência “Lutero liberdade religiosa”
em algum buscador da Internet e verá. Se escrever em inglês e alemão,
ficará pasmado. Poderíamos levar um pouco adiante este perverso jogo com
as palavras e exasperar os argumentos históricos habitualmente aceitos.
Porque aplicar a “liberdade religiosa” em sentido luterano é o que
fizeram os Reis Católicos na Espanha,
ou seja, que todos os súditos devem ter a mesma religião que seu senhor
terreno. Este é o princípio conhecido como cuius regio, eius religio, e
deu cobertura legal aos príncipes alemães para obrigarem as populações
de seus territórios a se tornarem protestantes, quisessem ou não, e nem
sempre graças a sermões persuasivos e pacíficos. Mas é evidente que os
Reis Católicos não podem ser os pais da liberdade religiosa, embora
tenham feito exatamente o mesmo, porque, como diz Castelar, nós não
somos luteranos nem pertencemos à raça germânica.
A esta altura você já estará se perguntando: mas por que os príncipes alemãestinham
tanto empenho em se tornarem protestantes? Não é difícil de explicar,
mas para isso, como apontamos acima, é preciso sair do terreno
religioso, da superioridade moral e das palavras totêmicas, onde todo o
protestantismo diligentemente insistiu em situar aquele sangrento
conflito. Quase uma quarta parte dos bens imóveis do Sacro Império
mudaram de mãos, entre confiscos de propriedades eclesiásticas e de
pessoas que abandonaram os territórios protestantes por se negarem a
acatar a conversão forçosa. Até a Revolução Russa,
não houve latrocínio comparável no Ocidente. Mas, claro, não chamamos
assim, porque um tinha uma cobertura teológica, e o outro, uma cobertura
ideológica. Definitivamente: uma justificativa moral. Isto naturalmente
não será contado ao visitante na magna exposição de Wittenberg.
Lutero foi não somente antilatino, mas também furiosamente antissemita. O filósofo alemão Karl Jaspers escreveu que o programa nazista está prefigurado em Martinho Lutero, que dedicou parágrafos horripilantes aos judeus:
“Devemos primeiro atear fogo às suas sinagogas e escolas, sepultar e
cobrir com lixo o que não incendiarmos, para que nenhum homem volte a
ver deles pedra ou cinza”. O primeiro grande pogrom de 1938, a Noite dos
Cristais, foi justificado como uma operação piedosa em homenagem a
Martinho Lutero por seus 450 anos. Hitler
disputou as eleições de 1933 com um soberbo cartaz no qual a imagem de
Lutero e a cruz gamada aparecem juntas. As celebrações luteranas dos
nazistas eram espetaculares. Com idêntica ferocidade Lutero estimulou e
justificou a queima de bruxas, que deixou nada menos do que 25.000
vítimas na Alemanha, segundo Henningsen. Acumulamos tantos milhares,
milhões de mortos com este assunto que é melhor nem fazer contas.
Mas não
há do que se envergonhar. A Alemanha celebra ostensivamente Martinho
Lutero porque se sente bem, porque Lutero é o pai do nacionalismo alemão
e de sua Igreja, e tem, portanto… indulgência teológica. Desde a
reunificação, e depois com a chegada do euro como elixir mágico, a
Alemanha está em um tempo novo e encara às claras uma hegemonia europeia
inconteste. A Grã-Bretanha desertou do barco da União, e a França não está em condições de confrontar a indiscutível supremacia germânica. Nem a Espanha nem a Itália parecem
perceber muito bem como são necessárias para compensar esta hegemonia e
como andam perdidas, sem conseguir superar o complexo de inferioridade
que assumiram há séculos. Porque, com tudo isto, chegamos ao grande
assunto do qual se trata aqui: o da superioridade moral frente ao
suínomundo não protestante no qual vivemos, a qual foi tão absolutamente
assumida que muitos de nossos jornais, como nos tempos de Castelar, se
somaram contentes à celebração luterana, tão cegos e tão perdidos hoje
no labirinto da sua própria inferioridade como estavam há 100 anos. (El
País).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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