O filósofo Roger Scruton analisa no artigo "O Islã e o Ocidente" - publicado inicialmente em Dicta&Contradicta -
as conturbadas relações entre o mundo islâmico e o mundo ocidental. Os
islâmicos, de fato, não escondem seu ressentimento contra a cultura
secular do Ocidente, que precisa defender seus valores e princípios
"sem concessões àqueles
que desejam trocar a cidadania pela submissão, a nacionalidade pela
conformidade religiosa, a lei secular pela shariá, o patrimônio
judaico-cristão pelo Islã, a ironia pela solenidade, a autocrítica pelo
dogmatismo, e o alegre beber por uma abstinência censurante. Devemos
desprezar todos os que exigem tais mudanças e convidá-los a viver onde a
forma política que preferem já esteja estabelecida. E devemos reagir à
sua violência com toda força necessária para contê-la". Segue o texto na
íntegra:
O
Ocidente hoje está envolto num conflito violento e dilatado contra as
forças do radicalismo islâmico. Esta luta é sumamente difícil, tanto
pela dedicação do nosso inimigo à sua causa, como – talvez
principalmente – pela enorme desconjunção cultural por que passaram
Europa e América desde o fim da guerra do Vietnã. Em termos simples, os
cidadãos do Ocidente perderam o seu apetite por guerras estrangeiras;
perderam a esperança de conquistar qualquer vitória que não fosse
temporária; perderam a confiança no seu modo de vida. De fato, não têm
mais certeza sobre as exigências que esse modo de vida lhes faz.
Ao mesmo
tempo, viram-se diante de um novo oponente, um oponente que crê que o
modo de vida ocidental é profundamente defeituoso e que talvez seja
mesmo uma ofensa a Deus. Num “acesso de desatenção”, as sociedades
ocidentais permitiram que esse oponente ganhasse espaço no seu próprio
seio; nalguns casos – como a França, o Reino Unido e a Holanda -, em
guetos que apenas mantêm relações tênues e hostis com a ordem política
que os circunda. E tanto na Europa como na América há um crescente
desejo de apaziguamento: uma contrição pública habitual; uma aceitação,
ainda que pesarosa, dos editos censuradores dos mulás; e um conseqüente
passo em direção ao repúdio do nosso patrimônio religioso e cultural. Há
vinte anos, seria inconcebível que o arcebispo de Canterbury
pronunciasse um discurso em favor da incorporação da lei religiosa
islâmica (a shariá) ao sistema legal inglês. Hoje, contudo, muitas
pessoas julgam essa uma proposta razoável, talvez um avanço rumo a uma
contemporização pacífica.
Tudo isso
indica que nós ocidentais estamos à beira de um perigoso período de
concessão, em que as conquistas legítimas da nossa própria cultura serão
ignoradas ou subestimadas na tentativa de provar as nossas intenções
pacíficas. Demorará um pouco até que se permita à verdade desempenhar o
seu importantíssimo papel de emendar os nossos erros presentes e
preparar caminho para os futuros. Isto quer dizer que nos é mais
necessário que nunca estar familiarizados com a verdade e ter uma
compreensão clara e objetiva daquilo que está em jogo. É meu desejo,
portanto, listar algumas das características-chave do nosso patrimônio
ocidental, que devem ser compreendidas e defendidas no atual confronto.
Cada uma delas está em contraste e, possivelmente, em conflito, com a
visão islâmica tradicional da sociedade, e cada uma delas desempenhou um
papel fundamental na criação do mundo moderno. A beligerância islâmica
brota do fato de a sua cultura não ter lugar seguro nesse mundo e da
conseguinte busca de refúgio em preceitos e valores divergentes do modo
de vida ocidental. Isto não significa que devemos repudiar ou renunciar
aos traços distintivos da nossa civilização, como muitos gostariam que
fizéssemos. Ao contrário, significa que devemos estar ainda mais
vigilantes na sua defesa.
A
primeira das características que tenho em mente é a cidadania. O
consenso entre as nações ocidentais de que a lei é legitimada pelo
consentimento daqueles que a devem acatar. Esse consentimento é dado por
meio de um processo político de que cada cidadão participa, criando e
seguindo a lei. O direito e dever da participação é o que chamamos de
“cidadania”, e a diferença entre as comunidades políticas e as
religiosas resumem-se ao fato de que as primeiras são formadas por
cidadãos, ao passo que as últimas são formadas por indivíduos que “se
submeteram” (e eis o significado principal da palavra islã). Se
quisermos uma definição simples do que é o Ocidente hoje, seria acertado
escolher o conceito de cidadania como o nosso ponto de partida. De
fato, é o que os milhões de migrantes vagando pelo mundo procuram: um
ordenamento que garanta segurança e liberdade em troca de consentimento.
A
sociedade islâmica tradicional, em contrapartida, vê a lei como um
sistema de mandamentos e recomendações estabelecidos por Deus. Esses
editos não podem sofrer emendas ainda que a sua aplicação em casos
particulares possa envolver uma argumentação baseada na jurisprudência. A
lei, conforme o Islã a entende, exige a nossa obediência e o seu autor é
Deus. O que é o oposto do conceito de lei que nós ocidentais herdamos. A
lei é para nós uma garantia das nossas liberdades. Não é feita por
Deus, mas pelo homem, segundo o instinto de justiça inerente à condição
humana. Não é um sistema de mandamentos divinos, mas o resíduo de
acordos humanos.
Isso é
particularmente claro para os cidadãos britânicos e americanos, que
desfrutam do benefício inestimável dacommon law – um sistema que não foi
imposto por algum poder soberano, mas construído nas cortes, que
tentavam fazer justiça em litígios individuais. A lei do Ocidente é,
portanto, um sistema construído de baixo para cima, que fala ao soberano
com o mesmo tom de voz com que fala ao cidadão. Enfatiza que é a
justiça, e não o poder, que prevalecerá. Daí o porquê de ser evidente
desde a Idade Média que a lei, ainda que dependa do soberano para ser
implementada, pode depor o mesmo soberano caso ele tente desafiá-la.
À medida
que a nossa lei desenvolveu-se, permitiu a privatização da religião de
grande parte da moral. Para nós, por exemplo, uma lei que castigue o
adultério não é apenas absurda, mas também opressiva. Desaprovamos o
adultério, mas também pensamos não ser assunto da lei punir um pecado
simplesmente por ele ser pecado. Na shariá, porém, não há distinção
entre moral e lei. Ambas vêm de Deus, e são impostas por autoridades
religiosas obedientes à vontade revelada dEle. A dureza da situação é em
certa medida mitigada pela tradição que prevê tanto as recomendações
como as obrigações dentro da lei sagrada. Todavia, a shariá não comporta
a privatização da moral e, menos ainda, dos aspectos religiosos da
vida.
Claro, a
maioria dos muçulmanos não vive sobre a shariá. Apenas alguns locais
isolados – Irã, Arábia Saudita e Afeganistão, por exemplo – tentam
fazê-la valer à força. Noutros lugares, foram adotados códigos civis e
penais do Ocidente, na esteira de uma tradição iniciada nos começos do
século XIX pelos otomanos. Mas essa aceitação da civilização ocidental
pelos estados muçulmanos tem os seus perigos. Ela desperta
inevitavelmente o pensamento de que a lei dos poderes seculares não
seria uma lei real; de que, de fato, tal lei não teria qualquer
autoridade real e seria mesmo um tipo de blasfêmia. Sayyid Qutb, antigo
líder da Fraternidade Muçulmana, defendia exatamente esta idéia na sua
obra seminal, Milestones. De fato, é fácil justificar rebeliões contra
os poderes seculares quando a lei é vista como uma usurpação da
autoridade divina.
Assim,
desde as suas origens o Islã encontrou dificuldades para aceitar que a
humanidade necessita de qualquer lei ou qualquer governo que não os
revelados no Corão. Daí o grande cisma que seguiu à morte de Maomé,
separando os xiitas dos sunitas. Do ponto de vista do governo secular,
as questões acerca da sucessão ao poder, tais como a que dividiu esses
dois grupos, são resolvidas pela mesma constituição que governa o
funcionamento diário da lei. Noutras palavras, são em última análise uma
questão de acordo humano. Mas uma comunidade que crê ser governada por
Deus, de acordo com os termos postos pelo seu profeta, vê-se diante de
um problema real quando o mensageiro morre: quem assume o poder e como? O
fato de os governantes das comunidades islâmicas correrem um risco de
assassinato acima da média não é alheio a essa questão. Os sultões de
Istambul, por exemplo, cercavam-se de uma guarda pessoal composta de
janízaros selecionados dentre os seus súditos cristãos precisamente
porque não confiavam em que algum muçulmano fosse perder a oportunidade
de retificar qualquer insulto a Deus representado pela pessoa de um
reles governante mortal. O próprio Corão toca esse ponto, na Sura 3,
versículo 64, ordenando judeus e cristãos a não aceitar quaisquer deuses
que não o único Deus e também a não aceitar qualquer senhor (ârbâbân)
dentre os seus iguais.
Em poucas
palavras, a cidadania e a lei secular caminham de mãos dadas. Somos
todos participantes do processo de criação das leis; por isso podemos
ver uns aos outros como cidadãos livres, cujos direitos devem ser
respeitados e cuja vida privada é da nossa própria conta. O que
possibilitou a privatização da religião nas sociedades ocidentais e o
desenvolvimento de ordens políticas nas quais os deveres do cidadão
predominam sobre os escrúpulos religiosos. Explicar como isso é possível
mostra-se uma questão profunda e difícil de teoria política; o fato de
isso ser possível é provado pelo testemunho inapelável da civilização
ocidental.
* * *
Isso me
leva à segunda característica que julgo ser central na identidade da
civilização européia: a nacionalidade. Nenhum ordenamento político pode
atingir a estabilidade se não convocar uma lealdade compartilhada, uma
“primeira pessoa do plural” que distinga aqueles que compartilham os
benefícios e as cargas da cidadania daqueles que estão fora do aprisco. A
necessidade dessa lealdade compartilhada fica evidente nos tempos de
guerra, mas é igualmente necessária nos tempos de paz, caso as pessoas
queiram que a sua cidadania defina as obrigações públicas. A lealdade à
nação põe de lado a lealdade à família, ao clã e à fé; põe o foco do
sentimento patriótico do cidadão não numa pessoa ou num grupo, mas em um
país. Esse país é definido por um território, e também por uma
história, por uma cultura e uma lei que tornaram o território nosso. A
nacionalidade consiste em terra mais a narrativa da sua posse.
Foi esta
forma de lealdade territorial que permitiu às pessoas nas sociedades
ocidentais existir lado a lado, respeitando mutuamente os seus direitos
de cidadão apesar das diferenças radicais de fé e da ausência de laços
familiares, afetivos ou de qualquer costume local de longa data que
sustentasse a solidariedade entre elas.
A
lealdade à nação é desconhecida em muitas partes do globo e,
especialmente, nos lugares onde o islamismo arraigou-se. Às vezes, por
exemplo, a Somália é definida como um “estado que falhou” por não
possuir um governo central capaz de tomar decisões em nome de todo o seu
povo ou de impor qualquer tipo de ordenamento legal. O verdadeiro
problema da Somália, no entanto, não é ser um estado que falhou, mas
sim uma nação que falhou. Nunca desenvolveu o tipo de ordenamento
secular, territorial e baseado na lei que possibilita que um país se
estabeleça como estado-nação, não meramente uma assembléia de tribos e
famílias em competição.
O mesmo
vale para muitos outros lugares onde nascem islamitas. Mesmo quando,
como no caso do Paquistão, tais países funcionam como estados, sempre
subsistem neles falhas como nação. Não obtiveram sucesso em criar o tipo
de lealdade que permite a pessoas de diferentes credos, afinidades e
clãs viver pacificamente lado a lado e, também, lutar lado a lado por
sua terra natal. A história recente desses países leva-nos a perguntar
se não há um autêntico e profundo conflito entre a concepção islâmica de
comunidade e as concepções que nos conduziram até a nossa idéia de
governo nacional. Talvez a idéia de estado-nação seja de fato uma idéia
anti-islâmica.
Esta
observação, claro, tem muito a ver com a situação do Oriente Médio hoje,
em que vemos os resquícios de um grande império islâmico divididos em
estados-nação. Com poucas exceções, essa divisão é resultado da
demarcação de fronteiras por potências do Ocidente, especialmente França
e Grã-Bretanha por meio do acordo Sykes-Picot de 1916. Não devíamos
ficar surpresos, portanto, com o fato de o Iraque possuir uma história
tão artificial para um estado-nação, dado que só esporadicamente é que
foi um estado e que nunca foi uma nação. Pode até ser que curdos,
sunitas e xiitas cheguem a reconhecer-se mutuamente como iraquianos. Mas
essa identidade nacional seria frágil e gretada; no primeiro conflito
que surgisse, os três grupos iriam definir-se como contrários uns aos
outros. Somente os curdos parecem ter desenvolvido uma autêntica
identidade nacional, que é oposta ao estado em que estão inseridos. Os
xiitas, por sua vez, prestam lealdade inicialmente à religião e, nos
momentos de turbulência, vêem a terra natal do xiismo – o Irã – como
modelo.
* * *
É verdade
que nem todos os estados nacionais formados a partir dos restos do
Império Otomano são tão arbitrários quanto o Iraque. A Turquia, o filé
mignon do Império, teve sucesso em recriar-se como um autêntico
estado-nação – não sem antes massacrar ou expulsar as suas minorias não
turcas. Desde meados do século XIX, o Líbano e o Egito gozam de uma
espécie de semi-identidade nacional sob a proteção do Ocidente. E,
claro, Israel estabeleceu-se com uma forma de governo nacional
inteiramente ocidental sobre um território que é alvo de disputas
precisamente por isso. Estes exemplos, contudo, não são suficientes para
diminuir a suspeita de que o Islã não vê com bons olhos a idéia de
lealdade à nação e muito menos a idéia de que, em momentos de crise, são
os vínculos nacionais, não os espirituais, que devem prevalecer.
Vejamos o
caso da Turquia. Atatürk criou o estado nacional turco pela imposição
de uma constituição secular; pela adoção de um sistema legal baseado nos
modelos francês e belga; proibindo as vestes muçulmanas; expulsando os
tradicionais mestres da lei islâmica (“ulemá”) dos cargos públicos;
tirando as palavras de origem árabe do turco e adotando o alfabeto
ocidental, de maneira a arrancar a língua dos seus antecedentes
culturais. Conseqüência dessas mudanças revolucionárias foi o sucesso em
lançar para segundo plano o conflito entre o islã e o estado secular. E
por muito tempo parece que houve uma tolerância estável de um para com o
outro. Hoje, porém, o conflito irrompe novamente por toda a parte: os
secularistas tentaram invalidar o governo do partido islâmico (o AKP)
que ganhou as eleições com uma votação massiva. Já o governo tentou
processar os secularistas por terrorismo num julgamento de legalidade
bastante duvidosa.
O Líbano,
para darmos outro exemplo, deve a sua condição única no mundo árabe a
uma antiga maioria cristã e à duradoura aliança entre maronitas e drusos
contra o sultão otomano. A sua atual fragilidade é em grande medida
culpa dos islamitas do hezbollah, que se uniram à Síria e ao Irã e que
rejeitam o Líbano como uma entidade nacional a que se deva qualquer
lealdade. Também o Egito apenas sobreviveu como estado-nação por ter
tomado medidas radicais contra a Fraternidade Muçulmana e por ter levado
à frente uma herança política e legal que provavelmente seria rejeitada
por sua população muçulmana – mas não pela minoria cristã copta – em
qualquer plebiscito. Já Israel foi condenado por seus vizinhos a viver
num permanente estado de sítio.
* * *
A
terceira característica central da civilização ocidental é o
cristianismo. Não tenho qualquer dúvida de que os muitos séculos de
predomínio cristão na Europa lançaram as bases da lealdade à nação como
um tipo de lealdade acima da que é devida ao credo e à família e sobre a
qual pôde erguer-se um ordenamento de cidadania. Pode parecer paradoxal
apontar a religião como a maior força por trás de um governo secular,
mas devemos lembrar as circunstâncias peculiares pelas quais o
cristianismo entrou no mundo. Os judeus da Judéia do século I eram uma
comunidade fechada, unida por uma apertada teia de legalismos
religiosos, mas governada desde Roma por uma lei que não fazia
referência a qualquer Deus e que oferecia um ideal de cidadania a que
todo o súdito livre do Império poderia aspirar.
Jesus
viu-se em conflito com o legalismo dos seus colegas judeus e simpatizou
com a idéia de um governo secular. Daí a famosa frase na parábola sobre o
dinheiro dos impostos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é
de Deus”. Depois da sua morte, a fé cristã foi moldada por Paulo tendo
em vista comunidades dentro do Império Romano que buscavam apenas
liberdade de culto, sem intenções de desafiar o poder secular. Essa
idéia de dupla lealdade continuou após Constantino e foi endossada no
século V pelo Papa Gelásio na doutrina das duas espadas dadas à
humanidade para o seu governo: uma que guarda o corpo político e outra
que guarda a alma individual. Essa ratificação da lei secular pela
Igreja primitiva foi responsável pelos desenvolvimentos seguintes na
Europa, desde a Reforma e o Iluminismo até a lei puramente territorial
que predomina no Ocidente hoje.
Durante
os primeiros séculos do islamismo, vários filósofos tentaram desenvolver
a teoria do estado perfeito, mas a religião era sempre o seu ponto
central. Al-Fârâbî, um sábio do século X, chegou mesmo a tentar
reformular a República de Platão de acordo com o pensamento islâmico,
sendo o profeta o rei-filósofo. Quando tal discussão cessou, no tempo de
Ibn Taymiyya no século XIV, estava evidente que o Islã voltara as
costas ao governo secular e tornara-se então incapaz de desenvolver
qualquer coisa remotamente similar a um vínculo nacional oposto ao
religioso. De fato, o mais importante advogado do nacionalismo árabe dos
últimos tempos, Michel Aflaq, não era muçulmano, mas um cristão
ortodoxo nascido na Síria, educado na França e falecido no Iraque,
desiludido com o Baath, partido que ajudara a fundar. Se a lealdade à
nação surgiu no mundo muçulmano ultimamente, foi apesar do Islã que
surgiu – e não por causa dele. E não deveria causar espanto o fato de
essas lealdades serem particularmente frágeis e rebeldes, como nos casos
das tentativas palestinas de ganhar coesão nacional e da complicada
história do Paquistão.
* * *
O
cristianismo é algumas vezes descrito como a síntese entre a metafísica
judia e os ideais gregos de liberdade política. Sem dúvida que há
verdade nessa afirmação, dado o contexto histórico do seu surgimento. E
talvez seja a contribuição grega para o cristianismo a responsável pela
quarta característica central que acredito valer a pena enfatizar numa
comparação entre o Ocidente e o Islã: a ironia. Há já umas marcas de
ironia na Bíblia hebraica, marcas essas que são mais fortes no Talmude.
Mas há um novo tipo de ironia nos juízos e nas parábolas de Jesus, uma
ironia que vê o espetáculo da loucura humana e nos mostra uma maneira
“des-torcida” de conviver com ela. Um exemplo significativo é o
veredicto de Jesus no caso da mulher apanhada em adultério. “Aquele que
não tiver pecado”, diz, “que atire a primeira pedra”. Noutras palavras:
“Vamos: vocês não queriam ter feito o que ela fez e já não o fizeram nos
seus corações?” Já sugeriram que esse episódio foi uma interpolação
tardia – uma das muitas que os primeiros cristãos tomaram do estoque de
sabedoria tradicionalmente atribuída a Jesus após a sua morte. Ainda que
isso seja verdade, só prova que a religião cristã fez da ironia parte
central da sua mensagem. Essa ironia é compartilhada por grandes poetas
sufi, especialmente Rumî e Hafiz, mas parece ser largamente desconhecida
pelas escolas islâmicas que formam a alma dos islamitas. A religião que
ensinam é incapaz de se ver a partir de fora e não pode ser criticada e
muito menos alvo de risos – como diversas vezes testemunhamos
recentemente.
Isso fica
ainda mais claro quando lembramos aquilo que estimulou o juízo irônico
de Jesus. A morte por apedrejamento ainda é uma punição para o adultério
comum em muitas partes do mundo. E em muitas comunidades islâmicas as
mulheres são tratadas como prostitutas assim que pisam fora da linha que
os homens traçaram para o seu comportamento. O sexo, um assunto
impossível de ser discutido sem uma medida de ironia, é pois um tema
doloroso entre os muçulmanos, especialmente quando confrontados – e
inevitavelmente são – pela moral laxa e pela confusão libidinosa das
sociedades ocidentais. Os mulás vêem-se incapazes de pensar nas mulheres
como seres sexuais e incapazes também de pensar muito tempo sobre
qualquer outra coisa. O resultado disso é a enorme tensão que emerge nas
comunidades muçulmanas dentro das cidades ocidentais, com os rapazes
desfrutando das liberdades que os envolvem e as moças escondidas e
aterrorizadas, a não ser que façam o mesmo.
O finado Richard Rorty via na ironia um estado de espírito intimamente ligado à visão de mundo pós-moderna [1].
É abrir mão do juízo ao mesmo tempo em que se busca um tipo de
consenso, um acordo comum de não julgar. Parece-me, contudo, que a
ironia, embora afete o nosso estado de espírito, pode ser mais bem
compreendida como uma virtude, uma disposição voltada para a realização
prática e o sucesso moral. Se eu fosse arriscar uma definição para essa
virtude, diria que é o hábito de reconhecer a alteridade em tudo,
inclusive em si mesmo. Não importa quão convencido alguém possa estar da
justiça das suas ações e da verdade das suas idéias: deve olhá-las como
as ações e as idéias de outra pessoa e reformulá-las de acordo com o
que vir. Definida dessa maneira, a ironia mostra-se bastante diferente
do sarcasmo. É um modo de aceitação, não de rejeição, que funciona em
dois sentidos: pela ironia aprendo a aceitar tanto o outro a quem
observo como a mim, o observador. Com todo o respeito a Rorty, a ironia
não está livre de julgamentos. Ela simplesmente admite que aquele que
julga também é julgado e julgado por si mesmo.
* * *
A ironia
está intimamente relacionada com a quinta característica notável da
civilização ocidental: a autocrítica. É quase natural para nós querer
ouvir a voz dos nossos oponentes assim que fazemos uma afirmação. O
método antagônico de deliberação é ratificado pelo nosso sistema legal,
pelas nossas formas de educação e pelos sistemas políticos que
construímos para negociar os nossos interesses e resolver os nossos
conflitos. Pensemos em críticos mordazes da civilização ocidental, como o
falecido Edward Said e o onipresente Noam Chomsky. Said falava de
maneira intransigente e às vezes venenosa em nome do mundo islâmico
contra aquilo que via como a última forma do imperialismo ocidental. E
por isso foi recompensado com uma cátedra numa prestigiosa universidade e
com inúmeras ocasiões de manifestar-se publicamente na América e em
todo o mundo ocidental. As recompensas para Chomsky foram mais ou menos
as mesmas. Penso que esse hábito de recompensar os nossos críticos é
peculiar à civilização ocidental. O único problema é que nas nossas
universidades hoje ele foi levado tão a sério que só há recompensas para
os críticos. Distribuem-se prêmios à esquerda do espectro político para
alimentar a principal emoção daqueles que os conferem, a saber: que a
autocrítica nos trará segurança e que todas as ameaças vêm de nós mesmos
e do nosso desejo de defender as nossas posses.
O hábito
de autocrítica criou outro ponto fulcral da civilização ocidental: a
representação. Nós ocidentais, especialmente os anglófonos, somos
herdeiros do hábito de longa data de associarmo-nos livremente, o que
leva a nos juntarmos em clubes, negócios, movimentos sociais e fundações
educacionais. Esse gênio associativo foi particularmente notado por
Tocqueville durante as suas jornadas pela América e é facilitado por uma
extensão encontrada unicamente na common law – a eqüidade e as leis de
trust – que permite às pessoas juntar recursos e administrá-los sem a
necessidade de pedir permissão a qualquer instância superior.
Esse
hábito associativo caminha de mãos dadas com a tradição de
representação. Quando formamos um clube ou uma sociedade de caráter
público vamos apontar comissários que a representem. As decisões desses
comissários passam, pois, a comprometer todos os membros, que não podem
rejeitá-las sem sair do clube. Assim, um indivíduo isolado é capaz de
falar por todo um grupo e, ao fazê-lo, compromete todo o grupo a aceitar
as decisões feitas em seu nome. Para nós, não há nada de estranho nesse
fenômeno, que afetou e afeta de maneira inestimável as nossas
instituições políticas, educacionais, econômicas e desportivas. Afetou
também o governo das nossas instituições religiosas, católicas e
protestantes. De fato, foram os teólogos protestantes do século XIX os
primeiros a desenvolver plenamente a teoria da corporação como uma idéia
moral. Sabemos que a hierarquia da nossa igreja – batista,
episcopaliana ou católica – tem o poder de tomar decisões em nosso nome e
pode dialogar com instituições de todo o mundo para assegurar o espaço
de que necessitamos para realizar o nosso culto.
Em
contrapartida, as associações assumem uma forma muito diferente nas
sociedades islâmicas tradicionais. Clubes e sociedades entre estranhos
são raros e a unidade social básica não é a associação livre, mas a
família. Sob a lei islâmica, as empresas não gozam de um suporte legal
sofisticado; Malise Ruthven e outros já afirmaram que o conceito de
pessoa jurídica não tem equivalente na shariá [2].
O mesmo vale para outras formas de associação. As entidades
beneficentes, por exemplo, organizam-se de uma forma completamente
distinta da ocidental: não são propriedades possuídas em conjunto para
prestar ajuda aos demais, mas sim uma propriedade que foi “parada”
(waqf) por motivos religiosos. Por isso, todas as entidades públicas,
inclusive escolas e hospitais, são submetidas à mesquita e governadas
por princípios religiosos. Por sua vez, a mesquita não é uma pessoa
jurídica. Também não existe uma entidade que possa ser chamada de “a
mesquita” no mesmo sentido em que nos referimos à igreja: como uma
entidade cujas decisões afetam todos os seus membros, que pode negociar
em nome deles e que pode ser levada a juízo por conta dos seus erros e
abusos.
Como
conseqüência dessa longa tradição de associar-se apenas sob a égide da
mesquita ou da família, as comunidades islâmicas não têm o conceito de
porta-voz [3].
Quando conflitos sérios irrompem entre as minorias islâmicas no
Ocidente e o mundo ao seu redor, é difícil, quando não impossível,
negociar com a comunidade muçulmana, já que não há ninguém que fale por
ela ou que lhe conseguirá impor qualquer decisão. Se por acaso houver
quem dê um passo à frente para falar, os membros da comunidade
sentir-se-ão livres para aceitar ou rejeitar as suas decisões a seu
gosto. O mesmo problema se dá no Afeganistão, no Paquistão e noutros
países compostos de muçulmanos radicais. A pessoa que tenta falar em
nome de um grupo dissidente muitas vezes o faz por iniciativa própria e
sem nenhum procedimento que legitime a sua atuação. Muito provavelmente,
caso ela concorde com a solução para um dado problema, será assassinada
ou, em todo o caso, rejeitada pelos membros radicais do grupo do qual
ele se imagina porta-voz.
Esse
ponto leva-me a refletir mais uma vez sobre a idéia de cidadania. Uma
razão importante para a estabilidade e paz das sociedades baseadas na
cidadania é que os indivíduos em tal sociedade estão completamente
protegidos pelos seus direitos. Estão isolados dos seus vizinhos em
esferas de soberania privada onde tomam decisões sozinhos. E em
conseqüência disso, uma sociedade de cidadãos pode estabelecer boas
relações e criar vínculos entre estranhos. Não é preciso que você
conheça o seu colega cidadão para afirmar os seus direitos diante dele
ou os seus deveres para com ele; além do mais, o fato de ele ser um
estranho não muda a disposição de ambos de morrer pelo território que
abriga os dois e as leis de que gozam. Essa característica marcante dos
estados-nação é sustentada pelos hábitos a que me referi: autocrítica,
representação e vida associativa, hábitos que não são encontrados nas
sociedades islâmicas tradicionais. O que os movimentos islâmicos
prometem aos seus seguidores não é a cidadania, mas a “fraternidade”
–ikhwân -, algo ao mesmo tempo mais cálido, próximo e satisfatório do
ponto de vista metafísico.
No
entanto, quanto mais próxima e cálida é uma relação, menos ela se
espalhará. A fraternidade é seletiva e exclusiva; não pode expandir
muito sem que se exponha à rejeição violenta e repentina. Daí o
provérbio árabe: “Eu e o meu irmão contra o meu primo; eu e o meu primo
contra o mundo”. Uma associação entre irmãos não é uma nova entidade,
não é uma corporação que pode negociar em nome dos seus membros. Ela
subsiste como uma realidade essencialmente plural – de fato, ikhwân é
simplesmente o plural de akh, “irmão” – e denota uma assembléia de
pessoas com as mesmas idéias unidas por um fim comum, não uma
instituição que possa se arrogar qualquer poder sobre elas. Esse fato
possui importantes repercussões políticas. Por exemplo, o sucessor de
Nasser na presidência do Egito, Anwar Sadat, reservou no Parlamento
algumas cadeiras para a Fraternidade Muçulmana. As tais cadeiras foram
ocupadas imediatamente por aqueles que o presidente julgava aptos para
tanto, mas que foram rejeitados pela Fraternidade real, que continuou
com as suas atividades violentas, culminando no assassinato do próprio
Sadat. Em termos simples: irmãos não recebem ordens, mas trabalham
juntos, como uma família, até discutirem e brigarem.
Isso me
traz a última das diferenças vitais entre o Ocidente e o Islã. Vivemos
numa sociedade de estranhos que se associam rapidamente e toleram as
diferenças uns dos outros. Contudo, não temos uma sociedade de
conformidade vigilante. Ela faz as poucas exigências públicas que não
estão contempladas pela lei secular e permite às pessoas moverem-se com
rapidez de um grupo para outro, de um relacionamento para outro, de uma
religião, empresa, maneira de viver, para outra. E tudo com certa
facilidade. Trata-se de uma sociedade com uma criatividade infinita para
formar as instituições e associações que permitam às pessoas conviver
com as diferenças e permanecer em paz umas com as outras, sem a
necessidade de intimidade, fraternidade ou lealdade ao clã. Não quero
dizer que isso é bom, mas é a maneira que as coisas são, e um subproduto
inevitável do conceito de cidadania que descrevi aqui.
O que
torna possível a vida assim? A resposta é simples: a bebida. Aquilo que o
Corão promete no Céu, mas nega na terra é o lubrificante necessário
para o dínamo ocidental. Podemos ver isso claramente nos Estados Unidos,
onde os coquetéis imediatamente quebram o gelo entre estranhos e animam
toda a reunião, estimulando um desejo coletivo para que as pessoas que
instantes atrás eram perfeitas desconhecidas entrem em acordo
rapidamente. Esse costume de ir diretamente ao ponto depende, claro, de
muitos aspectos da nossa cultura além da bebida, mas a bebida é
fundamental e todos aqueles que estudaram o fenômeno persuadiram-se de
que, apesar de todo o custo do alcoolismo, dos acidentes de carro e dos
lares destruídos, é em grande parte por causa da bebida que, no fim das
contas, somos tão bem sucedidos. Evidentemente, as sociedades islâmicas
têm a sua própria maneira de criar associações com rapidez: o narguilé, a
casa de café e a tradicional casa de banho, que Lady Mary Wortley
Montague louvou por criar entre as mulheres uma solidariedade sem
equivalente no mundo cristão. Mas essas formas de associação são também
formas de retirada, um passo para trás com relação aos negócios do
governo numa postura de resignação pacífica. A bebida tem um efeito
diferente: une estranhos num estado de agressão controlado, capazes e
desejosos de falar sobre qualquer assunto que surgir na conversa.
* * *
As
características que elenquei não apenas explicam a especificidade da
civilização ocidental; elas também explicam o seu sucesso em navegar as
enormes mudanças ocasionadas pelo avanço da ciência e da tecnologia, bem
como a estabilidade política e o caráter democrático dos seus
estados-nação. Essas características também distinguem a civilização
ocidental das nações islâmicas que geram terroristas. E ajudam a
explicar o grande ressentimento desses terroristas que não conseguem
superar com os seus recursos morais e religiosos a fácil competência com
que os cidadãos da Europa e da América lidam com o mundo moderno.
Se as
coisas são assim, como poderíamos defender o Ocidente do terrorismo?
Sugerirei uma resposta breve a essa questão. Em primeiro lugar, devemos
ter claro o que estamos e o que não estamos defendendo. Nós não estamos
defendendo a nossa riqueza ou o nosso território; não é isso que está em
jogo. Nós estamos defendendo o nosso patrimônio político e cultural,
composto das sete características que destaquei aqui. Em segundo lugar,
devemos ter claro que não podemos superar o ressentimento sentindo-nos
culpados ou punindo a nós mesmos. A fraqueza instiga, uma vez que alerta
o inimigo para a possibilidade de destruir você. Devemos, portanto,
estar preparados para afirmar as nossas coisas e para expressar a nossa
determinação de nos mantermos apegados a elas. Dito isto, temos de
reconhecer que é o ressentimento, não a inveja, que move o terrorista. A
inveja é o desejo de possuir o que os outros têm; ressentimento é o
desejo de destruí-lo. Como lidar com o ressentimento? Eis a grande
questão que tão poucos líderes da humanidade foram capazes de responder.
Os cristãos, porém, são os felizes herdeiros da maior tentativa de
respondê-la, que foi a de Jesus, apoiado na longa tradição judaica que
remonta à Torá, e que foi expressa em termos similares pelo seu
contemporâneo, o Rabino Hillel. Você supera o ressentimento perdoando-o.
O espírito de perdão não é uma auto-acusação; é fazer um dom ao outro. E
é neste ponto, parece-me, que tomamos a direção errada nas últimas
décadas. A ilusão de que nós somos os culpados, de que nós devemos
confessar as nossas faltas e aderir à causa do nosso inimigo apenas
expõe-nos a um ódio mais intenso. A verdade é que a culpa não é nossa;
que o ódio dos nossos inimigos por nós é completamente injustificado; e
que a inimizade implacável deles não será desarmada por batermos no
peito.
Admitir
essa verdade, porém, acarreta uma desvantagem. Ela nos faz parecer
impotentes. Mas não o somos. Há dois recursos de que podemos nos valer
para a nossa defesa: um é público e outro é privado. Na esfera pública,
podemos decidir proteger as coisas boas que herdamos. Isso significa não
fazer concessões àqueles que desejam trocar a cidadania pela submissão,
a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela shariá,
o patrimônio judaico-cristão pelo Islã, a ironia pela solenidade, a
autocrítica pelo dogmatismo, e o alegre beber por uma abstinência
censurante. Devemos desprezar todos os que exigem tais mudanças e
convidá-los a viver onde a forma política que preferem já esteja
estabelecida. E devemos reagir à sua violência com toda força necessária
para contê-la.
Na esfera
privada, porém, os cristãos devem seguir o caminho que Jesus lhes
apontou: olhar com sobriedade e espírito de perdão para as feridas que
recebemos e mostrar, com o nosso exemplo, que essas feridas não fazem
nada senão desacreditar aquele que as infligiu. Eis a parte difícil da
tarefa: difícil de fazer, difícil de aceitar, difícil de recomendar aos
outros. Contudo, é a que está ao nosso alcance e, numa batalha com
coisas tão grandes em jogo, é uma tarefa em que não podemos falhar.
[1] Richard Rorty, Contingency, Irony, Solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
[2] Malise Ruthven, Islam in the World. Oxford: Oxford University Press, 2000.
[3] Há uma exceção importante para essa regra no ismaelismo, que encontrou um representante e um porta-voz na pessoa de Aga Khan.
Artigo
traduzido da revista Azure, no. 35, 5769/2009. © Roger Scruton, 2009.
Todos os direitos dessa tradução reservados a Dicta&Contradicta.
(Trad. Cristian Clemente).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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