Cena grotesca na USP |
Artigo do editor Carlos Andreazza, publicado no jornal O Globo,
critica a cultura da ocupação de escolas e universidades, onde grupos
de militantes disfarçados de estudantes perturbam professores e alunos:
O
professor está em sala de aula. Tenta dar aula. A seu lado, malemolente,
um jovem dança, sensualiza. Tem a expressão do descompromisso a
serviço. É o invasor. Há música. Alta. Ainda assim, o professor insiste.
É firme. Mantém a calma. Escreve no quadro-negro. Tenta trabalhar.
Outros dois sujeitos aparecem. Invasores também. Tendo-se decerto na
conta de heróis, apagam o que fora escrito, rabiscam palavras de ordem. O
professor, porém, continua. Num canto, apresenta uma equação
matemática. Que o jovem dançante, na segunda tentativa, afinal apaga.
Aula encerrada.
Descrevi
acima o vídeo recente em que o professor Serguei Popov, da Unicamp,
vê-se impedido de lecionar pela performance de jovens marionetes. (Ao
menos um deles, o dançarino indolente, que cursa licenciatura em
Geografia, em breve será professor de seus filhos e netos, leitor; e não
é exceção.) É preciso, pois, explicar as coisas à luz do que são: a
inconsequência dos manipulados não os exime de responsabilidade sobre a
violência que praticam. É preciso também, portanto, pesar-prezar
valores: não interessa qual seja a reivindicação dos agressores; esta
cultura da ocupação — a interdição dos espaços públicos para impor a
agenda de grupos de pressão — é das mais nefastas manifestações da
doença terminal brasileira, e tudo invalida. Tudo.
Protestar
no Brasil, hoje, é ocupar — um eufemismo para invadir, tomar,
interditar. O diálogo e o respeito ao próximo são ignorados no ato, mas
se travestem de democratas os atores, de guardiões da liberdade. E não
importa se — na sala do professor Popov, por exemplo — ao menos um aluno
estivesse disposto a estudar. Não importa. Os democratas estão acima
dessa coisa ultrapassada de indivíduo. São corajosos também, incensados
como novidade, manifestantes românticos e radicais de uma nobre causa —
contra a qual, aliás, não há quem esteja. (Ou alguém se opõe a melhores
condições para o exercício da docência e da discência?)
Não é por
acaso que a cultura da ocupação encontra sua mais influente aplicação
em colégios e universidades. A ideia romântica radicalizada — a do
estudante não apenas consciente, mas que lidera (pensa liderar), que
bota a cara e interdita a escola (na verdade, somente empresta seu corpo
ao projeto do partido, que, por sua vez, não reclamaria de ter um
corpo, um jovem morto, para fazer de mártir) — é elemento-chave aqui. Há
método, pedagogia, nessa opressão contra os interesses da maioria.
O
cerceamento aos que querem produzir resultou na barbaridade de que
estudantes, os que desejam estudar, tenham de marcar aulas secretas. A
manipulação da juventude modelou até um coletivo surrealista, o dos
estudantes grevistas. Eles tomam o colégio para si (ninguém entra, salvo
se autorizarem), acampam em suas dependências (espécie de colônia de
férias politizada), cozinham para si (ocasião em que mostram avançadas
técnicas de cooperação) e tocam violão como expressão de que podem. (Os
maiores tocadores de violão do país, aliás, estão fechados com eles.)
Muito bem assessorados juridicamente, agem com autoritarismo, afrontam a
vontade — da maioria, repita-se — de estudar, de trabalhar, desconhecem
os deveres inerentes à liberdade, mas são reverenciados como defensores
de direitos ameaçados (só têm direitos), bravos representantes de uma
geração que finalmente assumirá as rédeas do próprio futuro.
Esta é a
medida da falência política e educacional do país. Perdemos de todo a
noção de individualidade — logo, de responsabilidade. Funcionamos sob a
lógica do bando. Acomodamo-nos desta forma, tratando por peças
respeitáveis no tabuleiro do jogo político aqueles que nos assaltam o
direito de ir e vir. Tomam-se ruas, escolas, repartições e empresas tal e
qual elevado exercício da liberdade de expressão — como se assim, num
só golpe, não se sustasse igualmente o debate público. Lembremo-nos: a
ocupação das ideias — o sequestro da palavra, da linguagem — sempre
precede. O Brasil, faz tempo, é gerido pelo norte ideológico da guilda,
pelos interesses de classe, pelo modelo black bloc de negociação — e
esses gestores tomaram e corromperam também o sentido do que seja
direito, liberdade, democracia.
Não
gostou de algo, senhor taxista? Ora, tranque a cidade. Obstrua as
principais vias. Impeça o cidadão de circular. Intimide a população.
Terá o endosso do poder público, o exemplo esclarecido de
professores-doutrinadores e estudantes profissionais. Terá também a
chancela da intelectualidade neste Brasil dos abaixo-assinados de
patota, sempre democráticos, mas de que não se pode querer ficar de
fora; país em que a discordância individual — a intenção de não
subscrever um manifesto (sempre pela liberdade) — transforma em pária e
aproxima o degredo.
Num
futuro não distante, todo mundo será manifestante — se quiser prosperar.
Será abaixo-assinado — se quiser pertencer. Terá de ser militante — se
quiser ter existência reconhecida.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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