Achar gente
para atuar como vigia noturno no cemitério Campo Santo já foi tarefa
difícil, que se refletia na rotatividade de empregados no local. Mas
hoje, tudo mudou, e a turma garante, além de longevidade no posto,
ótimas histórias para contar
Vestidos de
azul celeste e mostrando a luz - das lanternas -, os vigilantes do
Cemitério Campo Santo, na Federação, começam a trabalhar todos os dias
(ou noites), pontualmente, às 19h. Quartetos, em jornadas de 12 horas,
se revezam nas rondas entre mausoléus, campas, sepulturas e até covas
rasas, para garantir a paz eterna no local. Mas diante de tantas
histórias que povoam o imaginário das pessoas, é preciso mesmo muita
coragem para guardar os cerca de 150 mil corpos sepultados ali, ao longo
de 171 anos - é o cemitério mais antigo da cidade.
Fazer
rondas pelos corredores escuros onde centenas de pessoas foram
sepultadas é rotina dos vigias. Refletor do local está com defeito
(Foto: Arisson Marinho)
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A
rotatividade na função era grande, até bem pouco tempo atrás, mas o
time que pernoita no local, atualmente, garante longevidade no cargo. “A
equipe que está agora tem mais tempo. A rotatividade está pequena, mas
já foi grande. Tem gente de um ano, seis anos. O mais novo está aqui há
dois meses”, conta Roberto Oliveira, dono da empresa terceirizada
Qualiservice, que fornece os vigilantes para o Campo Santo.
O administrador do local, Anselmo Menezes, admite
que o serviço é de dar medo. “Cemitério sempre causa aquela impressão de
dia, imagina de noite”, afirma Anselmo, de 43 anos, 20 deles
trabalhando no local. Segundo ele, não foram poucas as histórias
‘cabeludas’ ouvidas dos colegas.
Batismo
Anselmo conta que os vigilantes não perdem a oportunidade de fazer o “batismo” dos novatos. “Quando percebem que o cara é medroso, pregam algumas peças. Dizem que estão vendo gente andando, perguntam se o colega também está vendo”, brinca, com o ar de riso de quem nunca passou uma madrugada no local, mas que jura não ter medo.
Anselmo conta que os vigilantes não perdem a oportunidade de fazer o “batismo” dos novatos. “Quando percebem que o cara é medroso, pregam algumas peças. Dizem que estão vendo gente andando, perguntam se o colega também está vendo”, brinca, com o ar de riso de quem nunca passou uma madrugada no local, mas que jura não ter medo.
Se não há luz do sol, também não existe outra forma
de iluminar o ambiente – e torná-lo menos assustador. Os vigias
trabalham num breu quase absoluto, interrompido apenas por lanternas que
mal conseguem iluminar o chão. Com sorte, uma noite de lua cheia deixa
os túmulos um pouco mais iluminados, mas não menos sombrios.
Até por volta das 21h, um refletor improvisado num
dos muros ilumina bem um espaço pequeno, mas a luz não fica acesa muito
tempo. “Aqui no inverno é terrível. O vento assobia nas árvores e é uma
escuridão que você não enxerga nada”, conta um vigilante, que nem quis
se identificar. A melhoria na iluminação é um pleito antigo dos
trabalhadores. E não é para menos: com a companhia de 150 mil almas, o
mínimo que se deseja é conseguir ver se alguém – vivo ou morto – anda
vagando pela madrugada.
Lanternas
Companhia? “É a gente, a lanterna, os cachorros e Deus”, conta André Luiz Reis, 33. Ele e mais três colegas têm a companhia de cinco cães da raça rottweiler para o plantão que acontece a cada dois dias. Há cinco anos ele assumiu o cargo de vigilante noturno no cemitério. Hoje, André jura que não sente medo, mas nos primeiros dias de trabalho... os cães ferozes que ficam soltos dentro das quadras não faziam diferença alguma.
Companhia? “É a gente, a lanterna, os cachorros e Deus”, conta André Luiz Reis, 33. Ele e mais três colegas têm a companhia de cinco cães da raça rottweiler para o plantão que acontece a cada dois dias. Há cinco anos ele assumiu o cargo de vigilante noturno no cemitério. Hoje, André jura que não sente medo, mas nos primeiros dias de trabalho... os cães ferozes que ficam soltos dentro das quadras não faziam diferença alguma.
“Quando cheguei aqui para trabalhar de noite,
parecia filme de terror. Até uma folha que caía da árvore a gente já se
assustava. Aqui, o pessoal já viu criancinha correndo, gente sair
andando de dentro da igreja. Tem que ter muita coragem”, cita o
vigilante. A prova de que dá para se acostumar é que André Luiz já
encara com naturalidade o fato de passar o Réveillon no local. “É
direto e esse ano eu já estou na escala de novo. Fazer o quê? A gente
vem aqui pra trás, dá para ver a queima de fogos. O jeito é fazer um
vídeo, mandar uma foto pra família e mostrar a vista”, brinca.
Os outros dois colegas de ronda – Ulisses Souza
Andrade, 49, e Ubirajara dos Santos Mendes, 50 – têm menos tempo na
empreitada e, vez ou outra, ainda se impressionam com o ambiente de
trabalho. “Parece que a noite não acaba nunca”, comenta Ubirajara, o
calouro - está há apenas dois meses no cargo.
A experiência do vigilante é o que garante a
tranquilidade. Na prática, vigiar o cemitério durante a noite é uma
tarefa bastante tranquila. Segundo Roberto Oliveira, o chefe da turma,
muitos até preferem trabalhar de noite. “Durante o dia, a gente tem uma
movimentação maior no cemitério. Chega a ter 14, 15 sepultamentos por
dia. É um sol muito forte e dificulta também o trabalho. Chuva também
atrapalha. De noite é tranquilo”, diz.
Conexão com o além
No silêncio da madrugada, dá para falar de tudo (tudo mesmo!) enquanto o tempo passa: relacionamentos amorosos, peças de carro, os crimes da semana, religião, a existência ou não de Deus, os famosos ali enterrados... Graças a uma rede wi-fi, também dá para se distrair um pouco nas redes sociais. Mas quando a bateria do celular acaba e a conexão com a internet vai embora, o jeito é se conectar com o além.
No silêncio da madrugada, dá para falar de tudo (tudo mesmo!) enquanto o tempo passa: relacionamentos amorosos, peças de carro, os crimes da semana, religião, a existência ou não de Deus, os famosos ali enterrados... Graças a uma rede wi-fi, também dá para se distrair um pouco nas redes sociais. Mas quando a bateria do celular acaba e a conexão com a internet vai embora, o jeito é se conectar com o além.
“Lembra aquele dia dos homens andando?”, cita
Ubirajara. É a deixa para a contação de histórias. Verdadeiras ou não, a
escuridão e a lembrança de que, talvez, 150 mil almas vaguem por ali
faz com que os olhares acabem se voltando para as esculturas imensas de
mármore nos mausoléus de famílias abastadas do estado.
“Eu juro por Deus, teve uma vez que eu estava indo
apagar a luz da igreja e vi dois homens saindo do portão. Corri e
perguntei ao outro colega se ele tinha deixado alguém entrar e ele disse
que não. Quando olhei de novo, eles iam andando e desapareceram”, conta
André Luiz.
Um auxiliar de portaria, que não quis ter o nome
revelado, afirmou que é comum ver vultos. “Não vou dizer que a gente vê
todo dia, mas vê. Um dia eu estava indo levar a mangueira para molhar as
plantas lá na igreja e vi uma senhora descendo a escada. Quando chegou
no portão, ela desapareceu. Os animais também sentem muito. A gente vê
cachorro rodando do nada, como se tivesse brincando com alguém. E os
gatos enfrentam as almas”, garante o porteiro.
Ulisses, que trabalha há dois anos e meio como vigia
noturno, diz que ainda sente uma sensação diferente quando passa por
alguns lugares do cemitério. Com medo ou não, a turma faz as rondas
entre os corredores durante toda a noite, sempre juntos. “É um lugar
muito espiritual e causa medo mesmo. Se você ficar olhando, parece que
as estátuas estão olhando pra você. Tem uma estátua ali que não tem quem
diga que não é um homem sentado”, afirma Ulisses.
Na função há oito anos, porteiro diz ter ‘medo é dos
vivos’Apesar de as histórias “do além” serem contadas com entusiasmo
pelos vigias, o auxiliar de portaria Marcos Cajueiro, 33, diz que tudo é
fruto do medo dos colegas. Ele é o quinto da família a trabalhar no
cemitério. “Meu pai trabalhou 36 anos, meu tio também. Quando meu pai se
aposentou, eu assumi o lugar dele e já estou aqui há oito anos. Ele
nunca viu nada aqui, nem eu. Eu tenho medo é dos vivos”, diz Marcos.
Segundo ele, quem trabalha em cemitério tem, sim,
muitas histórias para contar. Mas a maioria acontece nos velórios e são
protagonizadas por quem ainda está neste plano. “O cara está lá morto e
os filhos não esperam nem o corpo esfriar e já estão repartindo a
herança. Tem sempre um que diz: vamos vender”.
Fazer
rondas pelos corredores escuros onde centenas de pessoas foram
sepultadas é rotina dos vigias. Refletor do local está com defeito
(Foto: Arisson Marinho)
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O administrador Anselmo Menezes, 43, também conta que os “barracos” acontecem. Já houve casos em que os funcionários precisaram chamar a polícia para separar brigas praticamente em cima do caixão. “Tem muitas situações inusitadas, casos engraçados. Tem as viúvas que se encontram no enterro e descobrem no velório que o marido tinha amante”, cita.
Vale lembrar, ainda, que nem só mortos assombram um cemitério. Há alguns anos, um vigilante saiu correndo desesperado depois de ver uma senhora andando em sua direção, no início da noite. O rapaz acabou virando piada entre os colegas quando descobriram que a “alma penada” era uma mulher que ajudava na limpeza da igreja e estava vivinha da Silva.
Apesar de as invasões para violação de túmulos não serem mais rotineiras, os seguranças ainda encontram, próximo ao Dia de Finados ou da Sexta-feira da Paixão, grupos de adolescentes góticos que tentam dormir no local. Segundo a administração, os jovens costumavam andar por lá durante o dia, mas depois começaram a tentar pernoitar. “Pediam para os guardar deixarem, diziam que era um sonho de dormir no cemitério”, conta Anselmo Menezes.
Sempre que chegam para trabalhar, os guardas noturnos têm a tarefa de fechar o cemitério e os portões internos. Em seguida, soltam os cinco cães. Mas com os góticos, a tarefa é mais difícil, porque eles se escondem entre os túmulos na tentativa de dormir por lá.
Além de zelar por túmulos, vigias são obrigados a recolher oferenda
Os vigias noturnos do cemitério já trabalhavam antes como vigilantes. Mas o Campo Santo é o primeiro cemitério para onde foram enviados. Eles confessam que ficaram apreensivos no começo, mas acabaram se acostumando. “É um trabalho como outro qualquer. Eu fiquei, assim, pensando, mas depois deixei pra lá. A gente acostuma”, conta Ulisses Andrade, 49, que também tem como atribuição rotineira recolher as oferendas deixadas no atual estacionamento do cemitério, que fica aberto.
Apesar da escuridão, eles conhecem bem o cemitério. Sabem, por exemplo, quem está enterrado em cada área e até visitam alguns túmulos – mesmo que não sejam de pessoas próximas. É o caso do local onde estão enterrados os irmãos Emanuel e Emanuelle Gomes, mortos em outubro de 2013 em um acidente de carro com a médica Kátia Vargas. O túmulo do filho da ex-dançarina do É o Tchan Scheila Carvalho, Brian Carvalho, também é conhecido.
Além disso, eles acabam recebendo outras incumbências, como a de evitar invasões durante a noite para violar sepulturas — muitos mausoléus possuem peças em mármore e bronze. “Antigamente, quando o muro era mais baixo, tinha situações dessas, mas com a grade dificultou a ação”, conta o dono da empresa de segurança Qualiservice, Roberto
Oliveira.
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