sábado, 28 de março de 2015

Cenário econômico deveria motivar mudanças na alimentação

A alta do dólar e a inflação já pressionada podem provocar mudanças nas escolhas alimentares dos brasileiros e também nos insumos usados por fabricantes do setor. O trigo, que o país ainda precisa importar e é usado em grande parte dos alimentos, pode ser uma das motivações. Especialistas da área já vinham alertando para a necessidade de alterar hábitos para lidar com a ascensão dos preços e ainda garantir refeições mais saudáveis. Alternativas não faltam, resta saber se elas são interessantes a esta indústria ou ao consumidor, que poderia ver neste cenário a oportunidade de reavaliar as ofertas do mercado.
O dólar encerrou a semana em alta, cotado a R$ 3,24. O Brasil importa bastante farinha de trigo dos Estados Unidos para fabricar pães, biscoitos e outros alimentos. Os EUA foram o principal fornecedor em 2013 e também no acumulado de 2014 até setembro. Neste ano, a balança comercial acumula um déficit de US$ 6,288 bilhões.
O pão francês pode subir até 12% a partir do mês que vem, devido principalmente à alta do dólar e à energia elétrica, de acordo com associações de fabricantes. Poderia ficar mais barato, contudo, se usasse outro tipo de farinha que não a de trigo, que representa mais de 30% dos custos, mais que o dobro dos gastos com energia elétrica.
O biscoito, por sua vez, que também usa a farinha de trigo em sua fabricação e tem os brasileiros entre seus maiores consumidores, poderia ser trocado pelo consumidor por algo com valor nutricional, como a tapioca. O Brasil está entre os maiores consumidores de biscoito do mundo. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados, no ano passado, o país ficou em terceiro lugar na venda de biscoitos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
O professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) Carlos Augusto Monteiro, foi coordenador técnico do novo Guia alimentar para a população brasileira, que criou uma classificação para os alimentos com base no grau de processamento. O biscoito entrou na quarta categoria, a que deve ser evitada, correspondente aos ultraprocessados, junto com os refrigerantes e salgadinhos de pacote.
Em entrevista à Fapesp, ele explicou os perigos dos ultraprocessados: "Esses produtos são formulações criadas pela moderna indústria de alimentos, com pouco ou nenhum alimento verdadeiro e grandes quantidades de óleo, sal e açúcar, além de muitas outras substâncias. Essas substâncias são derivadas de constituintes de alimentos ou de outras matérias orgânicas e incluem amidos modificados, isolados de proteínas, soro de leite, gordura hidrogenada e todo o grupo dos aditivos químicos. Os aditivos usados na manufatura de alimentos ultraprocessados têm como função prolongar quase indefinidamente a duração dos produtos e torná-los tão ou mais atraentes do que os alimentos verdadeiros."
Padrão alimentar dos brasileiros seguiu uma direção questionável, e tem feito o país crescer em indicadores de obesidade, destaca especialista do Consea
Padrão alimentar dos brasileiros seguiu uma direção questionável, e tem feito o país crescer em indicadores de obesidade, destaca especialista do Consea
Renato S. Maluf, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em conversa com o JB por telefone, destaca que se, por acaso, o encarecimento dos derivados de trigo funcionarem como estimulo à volta de alguns produtos que o país é mais capaz de produzir, seria algo muito positivo, "sem dúvida". Renato é professor da UFRRJ, integrante do Painel de Altos Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional (vinculado à FAO/ONU) e uma das principais referências em segurança alimentar.
O padrão alimentar brasileiro, ele explica, mais ou menos como em toda parte do mundo, tem caminhado em uma direção não saudável, questionável, que tem feito o Brasil crescer nos indicadores de obesidade. Relacionada a esta questão, está a maneira como o país organiza o sistema alimentar. O chamado agronegócio brasileiro é o tipo de agricultura que corresponde a uma dieta mais monótona, influenciando a alimentação dos brasileiros, além dos seus impactos sociais, como a concentração da propriedade da terra, e os ambientais, como o uso de agrotóxicos. O maior mercado mundial de agrotóxicos é o Brasil, alerta Renato S. Maluf.
"São dois fenômenos que caminham juntos, mas não são a mesma coisa. O que temos defendido, pesquisadores da área, o Consea, é que sejam promovidos dinâmicas que vão numa direção diferente, quase contrária, dinâmicas baseadas em uma gricultura familiar diversificada, com métodos agroecológicos. A ideia principal é reaproximar produção de consumo, abrir espaço e valorizar uso de alimentos mais frescos, com a condenação dos alimentos ultraprocessados. Desta maneira, se imagina estar promovendo uma alimentação mais adequada e saudável, e não é assim que o sistema se organiza e não é assim que o Brasil tem participado do sistema", explica o professor.
Ele acredita que a inflação dos alimentos tem uma repercussão mais indireta no sistema alimentar como um todo, mas concorda que em relação ao trigo trata-se de um impacto importante. Se o insumo viria a ser substituído por derivados da mandioca ou de milho, entretanto, o professor também tem dúvidas.
José Graziano da Silva, diretor-geral da agência da ONU para agricultura e segurança alimentar (FAO), em entrevista à BBC Brasil no mês passado, alertava sobre a necessidade de o Brasil ampliar estoques de alimentos e privilegiar culturas mais resistentes a secas, devido à estiagem que deveria afetar o preço dos alimentos. "O Brasil tem alguns estoques bons, como o de milho, fruto da boa colheita do ano passado, mas não tem em outras áreas. Precisa até importar trigo."
Alertava, também, para a necessidade de substituir culturas. "Estamos promovendo a substituição do trigo nas regiões tropicais e a recuperação de produtos tradicionais. A mandioca, por exemplo, que tinha sido abandonada, hoje está em alta no Caribe, onde está sendo adicionada à confecção do pão para reduzir a dependência da importação do trigo. Outra possibilidade é expandir a irrigação para evitar crises de abastecimento."

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