Mario Vargas
Llosa analisa o livro de Tony Judt, recentemente falecido, sobre o
lamentável passado da intelectualidade francesa, particularmente
identificada com posições de esquerda. Parece demonstrar certa nostalgia
por essa cultura contaminada pelo totalitarismo marxista, e que
estendeu sua influência negativa pela América Latina. Concordo que Judt
deveria ter incluído Revel, o rebelde liberal, na obra Passado Imperfeito (também
publicada no Brasil pela editora Nova Fronteira, tradução que li há
alguns anos), mas, no geral, acho que sua crítica da intelectualidade do
pós-guerra vai bem. Como também viveu em Paris duante anos, Vargas
Llosa é ambíguo em relação à atmosfera criada por pensadores que, por
seu encarniçamento ideológico, merecem esquecimento - Sartre na linha de
frente. Quanto a Judt, que morreu em Nova York, li outros livros dele e
acho que, no fundo, partilhava a lamntável doutrina politicamente
correta - ausente, porém, na sua crítica aos franceses. Segue o texto
publicado no El País pelo escritor peruano e Prêmio Nobel de Literatura:
Acaba de
ser reeditado nos Estados Unidos um livro de Tony Judt que apareceu pela
primeira vez em 1992 e que eu não conhecia: Past Imperfect: French
Intellectuals, 1944-1956. Impressionou-me muito porque eu vivi na França
por cerca de sete anos, em um período - 1959-1966 - ainda impregnado
pela atmosfera e pelos preconceitos, acrobacias e desvarios ideológicos
que o grande ensaísta britânico descreve em seu ensaio com tanta
severidade e erudição.
O livro
pretende responder a esta pergunta: por que, nos anos do pós-guerra
europeu e até meados da década de setenta, os intelectuais franceses, de
Louis Aragon a Sartre, de Emmanuel Mounier a Paul Éluard, de Julien
Benda a Simone de Beauvoir, de Claude Bourdet a Jean-Marie Doménach, de
Maurice Merleau-Ponty a Pierre Emmanuel etc., foram pró-soviéticos,
marxistas e companheiros de viagem do comunismo? Por que escritores e
pensadores europeus acabaram sendo os últimos a reconhecer a existência
do Gulag, da brutal injustiça dos julgamentos stalinistas em Praga,
Budapeste, Varsóvia e Moscou que mandaram revolucionários comprovados
para o paredão? Houve exceções ilustres, com Albert Camus, Raymond Aron,
François Mauriac e André Breton entre eles, mas foram escassas e pouco
influentes em um meio cultural no qual as opiniões e os posicionamentos
dos primeiros prevaleciam de maneira esmagadora.
Judt
pinta um quadro de grande rigor e leveza do renascer da vida cultural na
França após a libertação, uma época em que o debate político impregna
todo o movimento filosófico, literário e artístico e permeia os meios
acadêmicos, os cafés literários e revistas como Les Temps Modernes,
Esprit, Les Lettres Françaises e Témoignage Chrétien, que passam de mão
em mão e alcançam tiragens notáveis. Comunistas e socialistas,
existencialistas e cristãos de esquerda, seus colaboradores divergem
sobre muitas coisas, mas o denominador comum é um anti-americanismo
sistemático, a convicção de que entre Washington e Moscou a primeira
representa a incultura, a injustiça, o imperialismo e a exploração, e a
última o progresso, a igualdade, o fim da luta de classes e a verdadeira
fraternidade. Não chegam todos aos extremos de um Sartre, que, em 1954,
após sua primeira viagem à União Soviética, afirma, sem o menor pudor:
“O cidadão soviético é completamente livre para criticar o sistema”.
Nem
sempre se trata de uma cegueira involuntária, derivada da ignorância ou
da mera ingenuidade. Tony Judt mostra como ser um aliado dos comunistas
era a melhor maneira de limpar um passado contaminado pela colaboração
com o regime de Vichy. É o caso, por exemplo, do filósofo cristão
Emmanuel Mounier e de alguns de seus colaboradores na Esprit, que, no
início da ocupação, tinham sido seduzidos pela chamada experiência de
nacionalismo cultural Uriage, patrocinado pelo governo, até que,
advertidos de que era manipulada pelas forças nazistas da ocupação, se
distanciaram. E eu me recordo que, no princípio dos anos setenta, diante
de alguns manifestantes universitários que queriam impedi-lo de falar e
citavam Sartre, André Malraux respondeu a eles: “Sartre? Eu o conheço.
Fazia suas peças de teatro serem representadas em Paris, aprovadas pela
censura alemã, enquanto a Gestapo me torturava”.
Tony Judt
diz que, além da necessidade de fazer esquecer um passado politicamente
impuro, por trás do esquerdismo dogmático desses intelectuais havia um
complexo de inferioridade do meio cultural, pela facilidade com que a
França se rendeu aos nazistas e aceitou o regime fantoche do Marechal
Pétain, e foi libertada de maneira decisiva pelas forças aliadas
lideradas pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Ainda que tenha
existido, sem dúvidas, uma resistência local e uma participação militar
(gaullista e comunista) na luta contra o nazismo, a França jamais teria
conquistado sozinha sua própria libertação. Isso, somado à substancial
ajuda que recebia dos Estados Unidos para seus trabalhos de
reconstrução, através do Plano Marshall, teria disseminado um
ressentimento que pode explicar, segundo Judt, essa doença infantil do
esquerdismo pró-stalinista que marcou sua vida intelectual entre 1945 e
os anos sessenta.
No polo
oposto, destaca-se a figura de Albert Camus. Nos anos cinquenta, não era
necessária apenas lucidez para condenar os campos soviéticos de
extermínio e os julgamentos duvidosos; também era preciso uma grande
coragem para enfrentar uma opinião pública tendenciosa, a demonização de
uma esquerda que tinha o controle da vida cultural e uma ruptura com
seus antigos companheiros de resistência. Mas o autor de O Homem
Revoltado não hesitou, afirmando, contra tudo e contra todos, que
dissociar a moral da ideologia, como fazia Sartre, era abrir as portas
da vida política ao crime e às piores injustiças. O tempo lhe deu razão e
por isso as novas gerações continuam lendo suas obras, enquanto a maior
parte dos que então eram os mestres da vida intelectual francesa foi
engolida pelo esquecimento.
Um caso
muito interessante, que Tony Judt analisa detalhadamente, é o de
François Mauriac. Resistente desde o primeiro momento contra os nazistas
e Vichy, suas credenciais democráticas eram impecáveis na época da
libertação. Isso o permitiu enfrentar, com argumentos sólidos, a maré
pró-stalinista e, sobretudo, como católico, os progressistas da Esprit e
daTémoignage Chrétien, que em muitas ocasiões, como durante as
polêmicas sobre o Gulag desatadas pelos testemunhos de Viktor Kravchenko
e de David Rousset, serviram de meros porta-vozes das mentiras
inventadas pelo Partido Comunista francês. Por outro lado, tanto em suas
memórias quanto em seus ensaios e colunas jornalísticas, ele se
adiantou a todos os seus colegas ao iniciar uma profunda autocrítica dos
delírios de grandeza da cultura francesa, em uma época na qual – ainda
que muitos poucos além dele tenham percebido na ocasião – ela entrava
justamente em um declínio do qual até hoje não conseguiu sair. Nunca
gostei dos romances de Mauriac e por isso descartei seus ensaios; mas
este livro Past Imperfect de Judt me convenceu de que cometi um erro.
No
entanto, nem tudo é convincente no livro. É imperdoável que, além de
Camus, Aron e outros, a obra não faça menção a Jean-François Revel, que,
desde o fim dos anos cinquenta, travava também uma batalha bastante
intensa contra os símbolos do stalinismo. Ou que não ressalte
suficientemente a denúncia do colonialismo e o apoio às lutas do
Terceiro Mundo para se livrar das ditaduras e da exploração imperial,
que foi um dos cavalos de batalha e talvez o aporte mais positivo de
Sartre e de muitos de seus seguidores na época.
Por outro
lado, ainda que a dura crítica de Tony Judt ao que chama de “anestesia
moral coletiva” dos intelectuais franceses seja, feitos os cálculos,
justa, ele omite algo que nós que de alguma maneira vivemos aqueles anos
dificilmente poderemos esquecer: a vigência das ideias, a crença – por
vezes exagerada – de que a cultura em geral, e a literatura em
particular, desempenhariam um papel de primeiro plano na construção
daquela futura sociedade na qual a liberdade e a justiça finalmente se
uniriam de maneira indissolúvel. As polêmicas, as conferências, as mesas
redondas no auditório lotado da Mutualité, o público ávido,
principalmente de jovens, que acompanhava tudo aquilo com fervor e
prolongava os debates nos bistrôs do Quartier Latin e de Saint Germain:
impossível lembrar-se de tudo isso sem nostalgia. Mas é verdade que foi
bastante efêmero, menos relevante do que acreditávamos, e que o que
então nos pareciam ser os grandes anais da inteligência eram mais os
estertores da figura do intelectual e os últimos instantes de uma
cultura de ideias e palavras, não limitada aos seminários do meio
acadêmico, mas sim derramada sobre os homens e as mulheres das ruas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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