Motoristas de transportes públicos não permitem entrada do cão guia.
Lei garante ao deficiente o direito de ingressar em ambientes com o animal.
“Quando eu estou indo pela primeira vez em um lugar é muito complicado. É difícil até hoje entrar num restaurante que eu nunca entrei, principalmente quando eu estou acompanhada. Às vezes tem um monte de gente e o que deveria ser a maior curtição, acaba dando problema. Na hora de voltar para casa e pegar um táxi é uma dificuldade”, diz Camila, ressaltando que, às vezes, liga para a cooperativa para não ficar na rua esperando um táxi e, mesmo assim, se depara com uma resposta negativa.
Puca está com Camila em todos os momentos (Foto: Arquivo pessoal)
Deficiente visual desde os 15 anos por causa de um problema genético chamado retinose pigmentar, Camila precisou lidar com a perda progressiva da visão durante toda a infância. Nascida em uma cidade do interior de Minas, a jovem veio morar sozinha no Rio de Janeiro aos 18 anos, depois de passar no vestibular de psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).Desde então, Camila tinha o sonho de ter um cão-guia, já que o animal permite a estudante ter uma mobilidade maior. “Com a bengala eu precisava esbarrar nas coisas para saber que tinha alguma coisa ali. Já a Puca (nome da cadela) antecipa os obstáculos e eu ando o dia inteiro na rua sem esbarrar em nada”, afirma a jovem, que sai de Niterói pela manhã para fazer estágio no Centro do Rio, vai para a faculdade à tarde e só volta à noite pra casa.
Como precisa se locomover muito durante o dia, chegando a transitar por dois municípios, Camila enfrenta o mesmo problema com certa frequência. “Sexta-feira passada, por exemplo, estava saindo do show de encerramento da Cúpula dos Povos, no Aterro do Flamengo, e um motorista de ônibus disse que eu não podia entrar por causa do cachorro. Eram 23h e estava num ponto super deserto do Aterro”, lembra.
Camila e Puca pela primeira vez na escada rolante
(Foto: Arquivo pessoal)
De acordo com a secretaria municipal da Pessoa com Deficiência, qualquer deficiente que for impedido de exerceu o seu direito, deve ligar para o telefone 1746 e fazer a denúncia. “A resposta é praticamente imediata. Esse tipo de coisa não pode e não deve acontecer, mas para tomarmos alguma medida punitiva precisamos tomar conhecimento das dificuldades desses deficientes”, disse a secretária Georgette Vidor, admitindo que o Rio ainda não tem nenhuma política de conscientização sobre o uso do cão-guia.(Foto: Arquivo pessoal)
Segundo a secretaria municipal de Transportes do Rio, para minimizar os transtornos dos deficientes em geral, inclusive dos portadores de deficiência visual, foi criado um decreto que estabelece que até 2014 toda a frota esteja adaptada a essas pessoas. Atualmente, de acordo com a Rio Ônibus, cerca de 57%, dos 9.500 veículos existentes na cidade, estão adaptados.
Falta de divulgação da lei gera outros problemas
A falta de informação a respeito da lei favorece também no desconhecimento da atividade do cão-guia, o que gera mais transtornos não só para a estudante, como para qualquer usuário. Apesar do extremo cuidado e carinho com o animal, Camila destaca que é fundamental saber separar as coisas. “As pessoas não entendem que quando o animal está com o equipamento ele está trabalhando. Ela foi treinada para isso e qualquer distração pode provocar um acidente para mim e para ela também”, diz a jovem, ressaltando que as pessoas não devem falar ou tocar o cão-guia enquanto ele estiver guiando alguém.
Atualmente, existem 4 instituições grandes no Brasil que treinam cães-guia e apenas 10 animais são disponibilizados por ano em função da falta de investimentos. De acordo com o presidente do Cão Guia Brasil, George Domaz Harrison, a atividade de cão-guia é relativamente nova no Brasil e as instituições que treinam têm dificuldade em obter verba, já que o treinamento de um animal para essa finalidade é longo e caro.
“O ideal seria que o governo criasse linhas de fomento para que essa atividade fosse ampliada. Hoje, existe um projeto de lei tramitando para que toda a despesa relacionada ao cão-guia possa ser abatida em imposto de renda. Se esse projeto for aprovado, com certeza várias empresas se interessarão em patrocinar”, acredita George.
Segundo George, vender esse tipo de animal é inviável porque é preciso traçar o perfil do cachorro e do deficiente para verificar a compatibilidade entre eles. No caso de Camila, ela fez a inscrição para ganhar umo cão guia durante uma campanha promovida pelo programa Mais Você, da Rede Globo.
Treinador George auxilia Camila e Puca na hora de atravessar a rua (Foto: Arquivo pessoal)
“A altura do cachorro, o tanto que o cachorro aguenta tracionar, a força que ele tem, o peso da pessoa, o ritmo de vida que a pessoa leva e o ritmo de vida do cachorro. Jamais uma pessoa aposentada poderia ficar com a Puca, porque ela é a mil por hora”, explica Camila. Como poucos cães são disponibilizados no país por ano, muitas vezes não um cachorro disponível para determinado usuário. “Para poder vender cão guia, precisaria ter 100 cães em treinamento”, diz George, que gasta em média R$ 30 mil para treinar um animal.Adaptação entre usuário e cão guia é demorada
Apesar de ter realizado o sonho de obter um cão guia, o processo de adaptação entre Camila e Puca foi longo. No começo, segundo a estudante, Puca só atendia aos comandos do treinador e algumas vezes simplesmente recusava a obedecer seus comandos.
“Durante um mês fiquei com ela e com o treinador. No início tinha que tentar fazer com que ela aceitasse fazer as coisas comigo, pois ela estava acostumada com ele. Era muito cansativo para mim e para ela. Até que um dia dá um clique e de repente o cachorro começa a te levar, ter mais cuidado e desviar das coisas para te proteger”, diz a jovem.
Só a partir desse momento que Puca foi morar definitivamente com Camila. Mesmo assim, o primeiro ano foi marcado por alguns desencontros até chegar a sintonia que as duas têm hoje em dia. “Tem vezes que eu quase não preciso dizer a ela onde estou indo. Ela simplesmente vai e faz. Nesse sentido, isso me deu uma independência e uma autonomia muito maior”.
Veja o que determina a Lei federal n° 11.126, de 27 de junho de 2005
Dispõe sobre o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia.
Art. 1o É assegurado à pessoa portadora de deficiência visual usuária de cão-guia o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo, desde que observadas as condições impostas por esta Lei.
§ 1o A deficiência visual referida no caput deste artigo restringe-se à cegueira e à baixa visão.
§ 2o O disposto no caput deste artigo aplica-se a todas as modalidades de transporte interestadual e internacional com origem no território brasileiro.
Art. 2o (VETADO)
Art. 3o Constitui ato de discriminação, a ser apenado com interdição e multa, qualquer tentativa voltada a impedir ou dificultar o gozo do direito previsto no art. 1o desta Lei.
Art. 4o Serão objeto de regulamento os requisitos mínimos para identificação do cão-guia, a forma de comprovação de treinamento do usuário, o valor da multa e o tempo de interdição impostos à empresa de transporte ou ao estabelecimento público ou privado responsável pela discriminação. (Regulamento)
Art. 5o (VETADO)
Art. 6o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
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