ENTREVISTA
Ao editor Luiz Fernando Emediato
Em
seu livro, você trata do conceito de que raça não existe, pele não tem
cor. Isso não é novidade na Ciência. O que você nos traz de novo?
Que
podemos, finalmente, desconstruir e abolir essa crime humanitário
continuado – o apartheid – não só aqui, mas no mundo, baseado na
pigmentação da pele e numa suposta inferioridade cognitiva e orgânica
dos afrodescendentes. Esse apartheid é tão cruel quanto aquele tráfego
humano escravista iniciado pelos portugueses na costa africana a partir
do século XVI. Que se ampliaria para muitos países europeus até o século
XVIII e parte do XIX.
O que é genômica?
É
o maior salto científico , em termos biológicos, do século XX. Explorar
a última fronteira da constituição e desenvolvimento dos seres humanos
(e de outros seres vivos). Além das células, órgãos, aparelhos,
sistemas, estamos desbravando o DNA, genes, cromossomos, proteínas. Em
grau molecular. Com ela, podemos investigar todo o ciclo da vida, desde
sua origem até o seu fim. O Projeto Genoma Humano acabou com as
mistificações criacionistas, religiosas, suposições fantasiosas, a má
ciência.
Por que o Homo sapiens é uma espécie única?
Porque
somos descendentes de um único primata – chimpanzés (com pequenas
contribuições dos bonobos) – todos com o mesmo DNA, em todo o planeta.
Como você acredita que os militantes antirracistas identitários vão receber o seu livro?
Terão
a disposição deles – integralmente – a genômica, a ciência, para a
derrubada, a partir dessa matriz, dos crimes contínuos, seculares, na
atual civilização brasileira em relação aos afrodescendentes. Que
continuam a sofrer, em maior ou menor grau, a mesma exploração,
desqualificação, confinamento nos espaços urbanos, em favelizações, que
emulam guetos mantidos pelas várias formas de apartheid. Mas o mal
original é único, o mesmo. Há séculos.
Os
movimentos identitários antirracistas defendem que devem reivindicar
cotas, espaços de atuação na sociedade e reparação pelo que seus
ascendentes escravizados sofreram. Há quem diga que esse movimentado
centrado na identidade divide a luta política geral pela igualdade
social. Qual a sua opinião?
Pergunta mal formulada.
Vou reformular. O movimento de resistência afro-brasileiro está no caminho certo?
Você
quer saber qual a verdadeira identidade da afrodescendência? O fator
identitário não pode ser resumido à pigmentação da pele. Melanócitos não
são doutores, são características evolutivas. Na luta por espaço
político, social, econômico, o movimento de resistência afro-brasileiro,
enfim, tomou um caminho que considero equivocado. A relevância dada à
pigmentação da pele como direito primário, nas disputas por espaço de
poder e representatividade, não é a melhor escolha. Pigmentação de pele
não é notório saber, competência, mérito. É apenas uma característica
fenotípica, epigenética, resultante da interação entre genes e meio
ambiente. Martin Luther King nunca reivindicou a pigmentação da sua pele
e sim direitos civis igualitários.
Perfeito. É o que o livro deixa claro e é o que queria saber. Mas, sigamos: a partir
do século XVI, com as grandes navegações, os europeus invadiram a
África, destruíram povos inteiros (havia civilizações avançadas lá),
raptaram e escravizaram milhões de seres humanos para trabalharem à
força nas terras do Novo Mundo. Como conseguiram fazer isso – raptar e
escravizar seus iguais – sem agredir suas convicções religiosas?
A
Igreja Católica, confissão dominante, especificamente o exército papal,
a Companhia de Jesus, uma ordem religiosa paramilitar, foi sócia nesse
empreendimento colonizador escravista. Os jesuítas formaram companhias
para a exploração conjunta no tráfico e venda dos escravos africanos. E
impunham a conversão forçada dos escravos para a religião oficial
colonizadora. Os jesuítas portugueses foram maléficos em suas
empreitadas evangelizadoras.
O
prefaciador de seu livro, Alberto Nakamura, o enaltece e afirma que a
Ciência às vezes erra e precisa ser revisada. Que revisão você faz em
seu livro?
Uma nova abordagem –
científica, genômica – do apartheid como sucedâneo imediato da
escravidão, após a sua abolição formal, e não real. Ele é tão cruel e
desumano como a escravidão o foi nos quase quatro séculos em que foi
presente em todo o território nacional. Ele persiste, incólume, como
crime humanitário continuado. Com tantos danos quanto.
No
final de seu livro há um QR Code que remete para um site com conteúdo
gigantesco e variado. Qual o propósito desse site e como você o
construiu, com tanta informação?
Eu não
vou discutir, polemizar, controverter, o apartheid, fora do contexto, à
margem, do campo genômico. O debate, discussão, críticas, todas, que eu
venha a ter, serão nesse campo científico. O que estou propondo é uma
desconstrução, uma nova abordagem do apartheid, mas sempre no campo
genômico. Esse é o objetivo desse guia virtual, como do meu livro, de
colocar no banco dos réus os responsáveis por essa calamidade
humanitária.
Qual é o objetivo do conceito de despigmentados que você utiliza no livro?
É
proposital. Para contrastar com a denominação ofensiva, infame,
utilizada pelos ditos “brancos” sobre os afrodescendentes, sempre
citados como negros, pretos, genericamente. Até porque todos os seres
humanos têm a mesma pele, incolor. O povo africano é privilegiado –
mantém alta proteção contra a radiação solar e danos ao DNA. Sua
pigmentação é evolutiva.
Os modelos da supremacia branca no século XX utilizaram todos os tipos de estereótipos.
Tarzan,
o despigmentado, atlético, cognominado o rei dos macacos, dominador de
toda a floresta, de todos os seus habitantes e animais. Criado pelo
norte-americano Edgar Rice Burroughs. E o mito do super homem, criado
por Friedrich Nietzsche, pedra angular do nazismo na exaltação do mito
ariano. A Europa é uma fortaleza “branca” desde sempre. O país mais
discriminador nela é a Finlândia.
E a representatividade afrodescendente nos poderes nacionais?
É
residual, insignificante, na superestrutura do poder. Nunca houve um
presidente da Câmara dos Deputados, do Senado, de raízes africanas. Ou
um presidente da República. Em todas as esferas de poder político, nos
tempos atuais. Uma única exceção, em toda a sua história, foi do STF,
com Joaquim Barbosa, que saiu pela porta dos fundos depois de comandar o
Mensalão na corte. Vou repetir, por ser importante: temos atualmente
uma perversão na luta dos afrodescendentes por espaço e
representatividade no Estado brasileiro. Pigmentação de pele como
critério primeiro para a disputa de cargos, e não a especialização
exigida. Pigmentação da pele não é notório saber, contribuição social,
mérito republicano. Pertencem a outro campo, o da evolução.
Como afirmava Martin Luther King...
Martin
Luther King nunca reivindicou a pigmentação da pele na sua luta contra o
apartheid. Era pelos direitos civis, a igualdade jurídica, o acesso
igualitário das oportunidades para os afro-americanos. A luta dos
afrodescendentes brasileiros deveria ser pela igualdade de direitos
sociais e legais. Igualdade “racial” é de uma estupidez monumental.
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