sexta-feira, 28 de junho de 2024

Busca de origens: um direito de crianças e adolescentes adotivos

 

Busca de origens: um direito de crianças e adolescentes adotivos 

O Estatuto da Criança e do Adolescente garante aos filhos adotivos o direito às informações sobre suas famílias de origem 

Ter acesso às informações da família de origem é um direito do filho adotivo. Seguir com a busca é opção garantida a ele, se e quando julgar necessária | Foto: Divulgação/Freepik

Presente no cinema, na literatura, nas novelas, em programas de TV e até em páginas policiais, a busca pelas origens evoca os mais romanescos sentimentos. Dos mistérios, passando por reviravoltas e chegando a revelações dramáticas, que podem ou não terminar em manutenção de relações, o conhecimento das origens perpassa a construção da identidade pessoal. 


Apesar de a Adoção estar presente nas relações humanas há milênios, a busca das origens tomou proporções populares nas últimas décadas, ao ser reconhecida como parte dos Direitos Humanos. A Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos da Criança (1989) é o instrumento de Direitos Humanos mais aceito na História, sendo ratificado por 196 países. No Brasil, essas ideias foram assumidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Duas décadas depois, o direito às origens foi garantido pela Lei 12.010/2009, permitindo aos adotivos o acesso às informações sobre suas origens, presentes no processo de Adoção.  


Mas, afinal, o que é a busca de origens? 


“É o direito de ter acesso às informações da sua história, que são importantes, por exemplo, na construção da identidade e na superação de lutos”, explica Verônica Pereira, professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e assessora da área de Psicologia da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad).   


No Brasil, historicamente, o processo de Adoção costumava possibilitar apenas aos adotantes o acesso às informações sobre a família biológica e sobre o que levou ao afastamento protetivo. Surge, então, a necessidade de equilibrar o tripé que envolve a Adoção: família biológica, filho e família adotiva. O equilíbrio entre as partes deve ser trabalhado pela rede de proteção aos direitos da criança e do adolescente, a fim de minimizar dores.  


Adoção aberta X com contato 


A nomenclatura muda ao redor do mundo, mas no Brasil tem sido frequente tratar como Adoção aberta aquela que possibilita ao filho ou à filha adotiva o acesso à sua memória familiar.  

A equipe técnica, seja do Judiciário ou do Acolhimento, reúne todas as informações possíveis sobre o acolhido e sua família de origem, as quais são compartilhadas com a família adotante, por serem essenciais para a construção de vínculos com o novo filho. A psicóloga Verônica explica que, “por um lado, conhecer a história de vida possibilita entender melhor as necessidades da criança e do adolescente. Por outro, pode sustentar a manutenção de contato seguro com a família de origem, o que beneficia o desenvolvimento emocional da nova relação familiar”.  

Na chamada Adoção aberta, não só a família adotante tem acesso às informações sobre a origem da criança ou adolescente. É uma via de mão dupla. A família de origem também tem os dados da família adotiva.   


O foco no interesse e na vontade da criança e do adolescente pode contemplar até a manutenção de contato com a família biológica. É a Adoção com contato. Essa prática é mais comum em países do hemisfério norte. Nos Estados Unidos, é comum as duas famílias celebrarem um acordo judicial, que define se haverá contato com a família de origem, se ela tem direito a visitas e a informações futuras sobre a criança ou adolescente.  Por meio desse acordo, são viabilizadas estratégias de segurança para o filho ou filha e para ambas as famílias.  


A possibilidade de contato depende, é claro, de não haver riscos para a criança ou o adolescente. “Como não há receita de bolo, deve ser analisado o caso concreto. A Adoção com contato pode suavizar a ruptura da relação com a família de origem, de forma a evitar maiores traumas”, acrescenta a assessora da Angaad. 


A disponibilização recíproca de informações entre as famílias é intermediada pelas equipes técnicas do acolhimento e do Judiciário, que vão articular os contatos iniciais remotos ou os encontros.  


No Brasil, a manutenção do contato é mais frequente nas adoções de adolescentes ou de crianças com mais idade, principalmente nos casos em que houve convivência entre os irmãos. “São sentimentos impossíveis de serem ignorados. Em alguns casos, a criança ou o adolescente chega a solicitar a manutenção do contato. Se há segurança psicossocial, sua vontade deve ser respeitada, porque é importante para a formação de sua identidade e é parte de sua história”, aponta Verônica. 


A manutenção do contato com as duas famílias requer preparação. Primeiro, é necessária a qualificação da rede de proteção ao direito à convivência familiar, cuja eficiência reflete positivamente em todo o tripé da Adoção. A preparação dos envolvidos passa pelo acesso da família biológica aos serviços púbicos de Assistência Social e seguridade. Embora a situação econômica não seja causa de retirada do filho de um lar, como medida de proteção, as estatísticas mostram que a pobreza está no contexto das famílias que não conseguem cuidar de seus filhos. A situação exige intervenção estatal não apenas na retirada dramática e compulsória da criança ou do adolescente. Ela demanda apoio de toda a rede para a superação das circunstâncias que vulnerabilizam a família de origem.  


Verônica enfatiza que, na Adoção com contato, “a dinâmica participativa e cooperativa pode levar o filho ou a filha a compreender que não houve abandono, mas entrega consentida, diante de circunstâncias justificadoras. É uma forma de aliviar também o sofrimento da família biológica, dilacerada pelas circunstâncias graves que levaram à ruptura e revitimizada com a perda. Na outra ponta, o contato com a família de origem dá segurança aos pais adotivos, porque facilita ao filho ou à filha a superação do luto”


Irmãos adotados por famílias diferentes 


Quando irmãos de muita afinidade precisam ser adotados por famílias diferentes, os estudos psicossociais podem indicar a necessidade de manutenção de contatos entre eles. O laudo técnico costuma embasar decisão judicial para que aconteça o que é chamado de “adoções compartilhadas”.  


Nelas, as novas famílias assumem o compromisso de manter a proximidade que dá segurança aos irmãos biológicos. A manutenção do contato deve sempre ser avaliada em relação ao bem-estar das crianças ou dos adolescentes envolvidos. Frequentemente, o contato contribui para o desenvolvimento e para a regulação emocional dos irmãos.  


O cuidado com a saúde mental 


O repasse das informações sobre a própria origem precisa de um filtro. Nem sempre os dados biográficos serão bem compreendidos pela criança ou pelo adolescente.  


Deve ser considerado o respeito à maturidade cognitiva e às condições psicológicas de cada um. O acesso a históricos de violações de direitos pode despertar gatilhos prejudiciais. São questões difíceis de serem processadas em um curto espaço de tempo. “O que você conseguir trazer de bom dessa informação é de grande valia. E mesmo que seja só o fato de dizer algo como: ‘a gente agradece muito o fato de sua mãe ter te trazido ao mundo, pois se não fosse dessa forma, você não estaria conosco’. Devem ser ressaltados os resgates positivos que estão marcados na história das crianças e dos adolescentes. ‘A sua mãe devia ser muito bonita já que você é uma pessoa tão linda’. São mensagens bacanas que ajudam na constituição dessa identidade do adotivo, enquanto ele ainda não consegue compreender passagens difíceis e dolorosas às quais pode ter sido exposto”, exemplifica Verônica. 


A disponibilização das informações deve acontecer aos poucos, quando os adolescentes e as crianças solicitam. Demandam linguagem adequada ao seu desenvolvimento e à sua condição emocional, preferencialmente com apoio psicossocial. Sabendo o benefício que as informações positivas podem gerar ao filho, as famílias de origem podem ser orientadas a selecionar o momento em que as recordações importantes serão divulgadas aos filhos.  


Preparando a Entrega Voluntária de bebês à Adoção  


No processo de entrega voluntária de bebês para a Adoção, também há que se falar em Adoção aberta ou com contato. 


Primeiramente, a equipe técnica e os profissionais da saúde precisam acolher as gestantes ou puérperas e dar a elas segurança emocional para decidirem sobre os seus direitos. Elas podem entregar seus filhos ao Sistema de Justiça, para que sejam direcionados à Adoção, sempre respeitando a garantia do sigilo e a prévia habilitação dos pretendentes. No cuidado multidisciplinar com essa gestante, ela deve ser informada, inclusive dos prazos legais para a desistência da decisão de entrega do bebê. 


Nesse processo, a gestante precisa ser acolhida emocionalmente, de forma a refletir sobre a entrega como ato de amor e não como abandono, pois escolheu dar à luz e deseja o melhor à criança. Precisa estar esclarecida do seu direito de despedir-se, amamentar, deixar uma carta explicando seus motivos, deixar pertences ou fotos ou mesmo de recursar essas possibilidades, parcialmente ou em sua totalidade.   


“Atualmente, nas orientações com as gestantes, colocamos o direito de deixar uma carta para criança explicando como foi a gestação, se tem alguma questão genética, alguma doença que precise de atenção, fotos de familiares que ela gosta, entre outras possibilidades”, diz Veronica. Encontrar informações positivas como essas poderá surtir um efeito positivo para a pessoa que, mais tarde, busque sua biografia. A informação favorável em relação aos momentos de concepção, gestação e entrega, compreendida como ato de amor, ao invés de abandono, pode fortalecer a constituição de sua identidade. 


Por outro lado, em casos em que a mãe passou por situações de violência, todas as orientações são feitas com o adicional do sigilo. “Respeitamos o seu silêncio, o desejo dela de ver a criança ou não, se quer amamentar a primeira vez, segurar no colo, se despedir, escrever a carta ou rejeitar tudo isso”, lembra a assessora da Angaad. A identidade da mãe será revelada à criança apenas quando o processo for solicitado, porque o direito do filho à origem também está respaldado na lei brasileira. 


Dicas necessárias 


Em cidades pequenas, pode existir uma chance maior de contato entre as famílias adotiva e de origem, envolvendo consequentemente o filho. O estudo do caso concreto vai indicar as instruções e os cuidados para essa convivência ou reaproximação. Apesar dos benefícios, como o a convivência com algum irmão biológico ou outro parente, se houver risco à segurança da criança ou do adolescente, face à proximidade, a equipe técnica interdisciplinar do Juízo poderá recomendar que a Adoção ocorra em outra comarca, resguardando as condições de sigilo. 


Guarda compartilhada 


Segundo Verônica, um avanço a ser comemorado, no campo das convivências familiar e comunitária, é a desmitificação de que irmãos precisam sempre ser adotados juntos.  


Quando o estudo psicossocial abre a possibilidade de esses irmãos, como indivíduos únicos, serem adotados em famílias diferentes, aumentam suas chances de convivência familiar. Por meio da Adoção compartilhada, eles conservam contato fora do acolhimento. “Nos acompanhamentos de casos, vemos relatos de irmãos que mantêm os vínculos, seja pessoal ou virtualmente. Além disso, as próprias famílias acabam organizando encontros em que todos passam a conviver e criam laços de amizade. É muito positivo para todos!” 


O apoio em sociedade 


Os Grupos de Apoio à Adoção (GAAs) apoiam a busca de origens, à medida em que atuam para qualificar profissionais e voluntários da rede protetiva sobre as Adoções abertas e de contato. Os adotantes também devem ser preparados sobre a complexidade dos processos de identidade, verdade e comunicação dos filhos adotivos. 


Sempre que forem aplicáveis ao caso concreto, essas formas de Adoção auxiliam na construção compartilhada de identidades e na elaboração de perdas. Percebe-se a necessidade de fomento às parcerias acadêmicas destinadas à pesquisa sobre as Adoções abertas e com contato entre as famílias biológica e adotiva. 


Além disso, é necessário acompanhar, por meio da rede de proteção, as famílias de origem, prevenindo-lhes rupturas. Quando as destituições forem inevitáveis, a rede deve estar apta a apoiar as famílias na elaboração do luto proveniente do afastamento. Sempre que possível, a rede também deve permitir e mediar o trânsito de informações e contatos entre as famílias adotiva e biológica.  


Outro desafio é a construção de programas e estrutura públicos e privados de auxílio aos filhos adotivos no exercício do direito de buscar suas origens, tanto biológica quanto biográfica. 


O trabalho feito pela Angaad, com o apoio de parceiros institucionais, foca nas atitudes adotivas. Elas propiciam acolhimento, apoio, orientação e encaminhamento para atendimento especializado, para que as dores da incerteza sejam descontruídas e se transformem em pilares seguros. “Quando o filho manifesta desejo de conhecer sua origem, é sinal de que confia nos pais adotivos. É sinal de que se está seguro para conhecer sua biografia. Ouvir e apoiar essa busca de si, com orientação profissional, é ser família integralmente, sabe? Oferecer esse apoio emocional opera como uma forma de reforçar os vínculos tanto na família de origem como na adotiva, o que solidifica a segurança do filho.” 


Num outro viés, esconder e negar o acesso à informação, em uma sociedade permeada por redes sociais virtuais, pode levar o filho angustiado a encontrar informações descontextualizadas e sem o suporte profissional necessário. Ele pode, por exemplo, acessar um histórico de violência contra si ou pessoas ao seu redor, levando-o a ressentimentos. “O que normalmente se esconde é aquilo que é ruim.  Coisa boa não precisa ser escondida, não é? É importante orientar esses pais sobre a vontade do adolescente. Se ele quer muito buscar as origens, então que a caminhada seja a mais acolhedora e confortável possível”, diz Verônica. Ela acentua que, na busca de origens e na Adoção com contato, o acompanhamento psicológico é fundamental para filhos, família adotiva e família de origem.  


Construir e alimentar redes seguras e afetivas de apoio à criança e ao adolescente é a forma com que os GAAs contribuem para a evolução das convivências familiar e comunitária. É uma construção dinâmica, sensível, dialogada e técnica.  


A busca por origens, no âmbito da Adoção, é também uma busca por formação de crianças, adolescentes, adultos e famílias cada vez mais maduras, estáveis, sólidas e protagonistas de mudanças necessárias. 


Sobre a Angaad   

  

A Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que congrega e apoia os GAAs. Ela trabalha pela convivência familiar de crianças e adolescentes.    

Presente em todas as regiões do Brasil, a ANGAAD atua, desde 1999, de forma voluntária. Segue as diretrizes do ECA e representa os grupos junto aos poderes públicos e às organizações da sociedade civil, em ações que desenvolvem e fortalecem a cultura da Adoção.    

A atual diretoria da ANGAAD, com gestão entre 2023 e 2025, é composta por Jussara Marra (presidente), Antônio Júnior (vice-presidente), Ingrid Mendes (secretária), Gilson Del Carlo (tesoureiro), Francisco Cláudio Medeiros (diretor jurídico), Sara Vargas (diretora de relações públicas), José Wilson de Souza (diretor financeiro), Erika Fernandes (diretora de comunicações), Eneri Albuquerque (diretora técnica) e Hugo Damasceno (diretor de relações institucionais).   

www.angaad.org.br   

e-mail: angaad@angaad.org.br    

Instagram: @angaad_adocao   

Junho/2024 

      

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