BLOG ORLANDO TAMBOSI
O sociólogo espanhol, pioneiro em estudar os efeitos da internet, teme pelos estragos do mau uso da tecnologia. Entrevista à Veja:
Lá
na pré-história da internet, em 1996, o sociólogo espanhol Manuel
Castells intuiu o ponto ao qual chegaríamos. Com o lançamento do livro A
Sociedade em Rede, um clássico instantâneo, ele desenhou a disseminação
da internet e boa parte dos problemas (e também os benefícios) que
nasceriam de tanta prevalência. Autor de outros vinte trabalhos em torno
do tema, ele é um dos mais celebrados especialistas do impacto das
modernas tecnologias em tempo de comunicação acelerada e informações
falsas. Professor da Universidade Aberta da Catalunha e da Universidade
do Sul da Califórnia, Castells acaba de publicar Testimonio: Viviendo
Historia, ainda não traduzido para o português, obra na qual revisita
sua trajetória pessoal, ao acompanhar o mundo em transformação. Mergulha
sobretudo nos dias de maio de 1968, quando a agitação estudantil
reinventou a civilização ocidental, ao anunciar que era “proibido
proibir” — Castells esteve no coração dos protestos e acabou sendo
expulso da França. Na semana passada ele participou, em Brasília, do
Seminário Internacional Democracia e Novas Tecnologias, em comemoração
ao bicentenário do Senado. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail,
ele trata dos riscos, mas também das oportunidades, de um planeta
conectado.
Há dez anos, o senhor disse que a comunicação em rede revitalizaria a democracia. Ainda acredita nisso? Até
certo ponto, sim, porque a democracia depende da abertura das
instituições para a livre expressão e o livre protesto dos cidadãos de
todo o mundo. A internet acabou com o monopólio do poder de comunicação,
porque as empresas são proprietárias das plataformas de mídia social.
Como o modelo de negócio pressupõe aumento do tráfego, elas não têm
interesse em limitar a autoexpressão. O problema é que essa livre
expressão cheia de contradições e conflitos não segue as normas de
comportamento que gostaríamos. Quais sejam: educação, respeito e
construção. Isso não é um problema das redes sociais, mas sim de quem
somos como humanos.
O problema então é o mau uso da tecnologia?
Originalmente, a internet era o domínio de elites supostamente educadas
e de boa vontade, mas, com 5,4 bilhões de usuários no mundo, as pessoas
comuns também passaram a povoá-la. Uma boa parcela dessas pessoas é
sexista, racista, xenófoba, homofóbica, fanática religiosa, nacionalista
extremista e propensa à violência. A internet é nosso espelho.
E o que ele mostra? Não
é uma imagem muito bonita. Somos capazes de comunicação livre e de
escolhas ideológicas independentes, mas o conteúdo da liberdade pode não
ser o que esperávamos. Adolf Hitler, Donald Trump e Jair Bolsonaro foram eleitos democraticamente.
Mas já não temos a opção de desligar a internet… O que fazer? Não
há como voltar atrás. Só podemos tentar regular o potencial uso
negativo dessas tecnologias extraordinárias. Eu observei os embriões da
sociedade em rede entre 1996 e 2000. No século XXI, a plena
digitalização da sociedade, não apenas com a internet, se tornou uma
plataforma para o pleno desenvolvimento da sociedade em rede. Aliás, é
do que tratarei em meu próximo livro, A Sociedade Digital, que deve ser
publicado em breve.
Sucessivos
estudos, sobretudo com adolescentes, mostram as pessoas mais ansiosas,
tristes e solitárias — e a internet parece ter culpa no cartório. Como
desatar esse nó que amarra a sociedade? Isso não é verdade. Está
provado que a internet aumenta a sociabilidade e a satisfação com a vida
para a maioria da população — temos evidências empíricas de cinquenta
institutos de pesquisa ao redor do mundo. Mas as pessoas estão de fato
ansiosas e tristes — mas não solitárias — por causa do massivo
deterioramento das condições de vida na maior parte dos países. No
entanto, mais uma vez, como ressaltei anteriormente, criminosos e
fascistas também usam a internet. É uma boa desculpa para os políticos
dizerem, como sempre fazem, que é tudo culpa da internet. Mas não é.
E de quem é a culpa? Em muitos casos, é culpa deles.
Não
há dúvida: observamos uma mudança na forma como as pessoas usam as
redes sociais, que deixaram de ser um lugar de diálogo saudável e
amistoso. Como esse comportamento nocivo poderá afetar a sociedade?
Isso, de fato, está criando uma polarização prejudicial entre visões
extremas. No entanto, a maior parte das interações não é sobre política e
ideologia. Na verdade, elas representam menos de 20% das conversas. As
pessoas falam mais sobre suas vidas, músicas, sonhos e tristezas. Os
grupos ideológicos extremos alimentam o conflito entre si e tornam seus
debates mais visíveis. Eles moldam a conversa em torno da violência e do
confronto. A civilidade nos debates públicos deixou de existir. Basta
olhar para os debates nos parlamentos em todo o mundo. Há mais insultos e
acusações infundadas em vez de argumentos. Não apenas no ambiente
virtual da internet, mas na realidade e materialidade dos templos da
democracia.
O que motiva a crescente onda de notícias falsas, as infames fake news?
Justamente a polarização e a violência, porque os humanos tendem a
acreditar no que querem e rejeitam aquilo com que não concordam. Isso é o
que a neurociência diz sobre nossos cérebros. Procuramos notícias ou
fake news não para nos informar, mas para nos reafirmar.
A
inteligência artificial (IA) ganhou, nos últimos meses, imenso espaço —
e dadas as denúncias de aproveitamento desonesto da ferramenta, com o
objetivo de enganar os cidadãos, entramos em novo fosso. Afinal de
contas, é possível usar as tecnologias em benefício de uma sociedade
mais pacífica? Sim, claro. Por meio de regulamentação e da aplicação
de algoritmos diferentes. A inteligência artificial não opera em um
vácuo. Ela depende de bases de dados abertas, e as bases existentes são
tendenciosas. Atualmente, já existem algumas empresas, como a (startup
americana) Anthropic, que desenvolvem IAs cujas bases de dados
consultadas foram tratadas de forma ética para evitar esse tipo de
problema.
O
senhor acha realmente que a regulamentação das redes sociais e da
inteligência artificial está seguindo em uma direção positiva em todo o
mundo? A regulamentação é absolutamente necessária. Estou
trabalhando nisso com o governo espanhol e alguns especialistas. A
indústria está ciente dos problemas, é como uma bomba atômica.
Simplesmente não dá para confiar apenas nos humanos.
A pandemia, que pôs a humanidade dentro de casa, diante de telas, teve papel transformador?
Somos seres humanos melhores do que há cinco anos? Nós lutamos com
sucesso contra a Covid-19 em todo o mundo, mas 7 milhões morreram por
ignorância e má política governamental. O Brasil e os Estados Unidos não
se saíram bem. Nós mostramos que a engenhosidade humana e a ciência
podem nos salvar, mas, independentemente da doença que resultou na
pandemia, os humanos não progrediram em superar sua própria estupidez.
Seu
livro mais recente, Testimonio: Viviendo Historia, ainda sem tradução
para o português, é uma reflexão profunda baseada nas suas próprias
vivências, especialmente no tempo das manifestações estudantis de maio
de 1968, em Paris. Considerando tudo o que viveu, como percebe o mundo
agora? Eu acredito que estamos em um momento sombrio da história,
porque nosso superdesenvolvimento tecnológico está em contradição com
nosso subdesenvolvimento moral e político.
Haveria, agora, um novo sistema geopolítico, desenhado com a ajuda do poder de influência da internet?
Geopoliticamente, sim, as coisas mudaram. A dominação do Ocidente,
representado por Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, acabou.
Hoje eles representam apenas 20% da população mundial e 40% do produto
interno bruto (PIB) global. O resto do mundo está dividido entre Ásia,
Oriente Médio e América Latina, com exceção da Argentina, que hoje se
tornou um satélite dos americanos. Cada país tem sua própria estratégia,
mas todos concordam em não se curvar ao velho monopólio. A guerra na
Ucrânia é decisiva, porque sinaliza o ressurgimento de uma Rússia
militarmente muito poderosa.
E, ainda assim, o senhor tem mesmo convicção de que a democracia prospere? A
solução para a crise da democracia é que as elites do poder ouçam seu
povo. O orçamento de metade das pessoas na União Europeia não chega ao
final do mês e 20% da população está na pobreza. Os Estados Unidos têm
uma economia dinâmica, mas a desigualdade é histórica, com a educação e a
saúde em crise permanente.
Mas as derrapagens democráticas parecem se espalhar sem freio…
A América Latina está em guerra. Vocês só não dizem isso claramente. Há
as guerras do narcotráfico em todos os países. No México, 250 mil
pessoas foram mortas ou desapareceram nos últimos vinte anos. Há gangues
e facções no Equador, no Peru e, agora, também no Chile e na Argentina,
onde o Exército chegou a ocupar a cidade de Rosário.
E o Brasil?
Também está envolto por gangues. O Brasil é um escândalo de
desigualdade. Como disse meu amigo, o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, não se trata de um país pobre, é um país injusto. Lula estava melhorando a situação, mas grande parte da classe política está bloqueando suas medidas para obter benefícios políticos.
E qual o resultado dessa postura?
Não pode haver democracia estável sem democracia social, com políticas
redistributivas e um Estado de bem-estar social decente. A economia
criminosa está desenfreada, e as pessoas temem a violência diária mais
do que qualquer outra coisa. Muitas forças policiais são corruptas e não
protegem os cidadãos. Os Estados são continuamente penetrados pela
corrupção.
Parece então não haver espaço para esperança… Há saída?
Sim. Nós podemos lutar e usar nosso conhecimento e nossa vontade para
criar um mundo melhor. Não podemos perder a esperança. Se o fizermos,
não haverá salvação possível.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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