sábado, 30 de março de 2024

Alucinações coletivas

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Para as pessoas sãs, o que aconteceu a 10 de Março não tem história. Foi a decorrência normal de se viver numa democracia normal. Para os radicais, foi o início do apocalipse. Pobrezinhos. Por que motivo não ajustam a medicação e consultam os estudos científicos disponíveis? João Pereira Coutinho para a revista Sábado:


A AD VENCEU AS ELEIÇÕES e recusou entendimentos com o Chega. Suspiros de alívio? Longe disso. As vozes mais extremadas da esquerda já só veem o fascismo ao virar da esquina e apelam, palavra de honra, à “resistência”. “Resistência” a quê? Ao bom senso e ao sentido do ridículo, naturalmente: entrincheiradas nos seus casulos, permanecem despertas e à escuta, não vá uma marcha sobre Lisboa apanhá-las desprevenidas.

Qualquer especialista vê aqui sintomas de stress pós-traumático: estado de alerta angustiante; pânico desproporcional; choro fácil. Para as pessoas sãs, o que aconteceu a 10 de Março não tem história. Foi a decorrência normal de se viver numa democracia normal. Para os radicais, foi o início do apocalipse. Pobrezinhos. Por que motivo não ajustam a medicação e consultam os estudos científicos disponíveis?

Um deles, coordenado por Conceição Pequito, Manuel Meirinhos Martins e Pedro Fonseca, intitulado 50 anos de Democracia em Portugal: Mudanças e Continuidades Geracionais, começa por traçar a opinião que os portugueses têm do 25 de Abril. A julgar pela histeria da esquerda, o País inteiro, ou uma parte significativa dele, deseja um regresso imediato a 1973.

Espantosamente, não deseja: a maioria prefere viver em democracia por entender que a revolução trouxe consequências mais positivas do que negativas (69%; só 7% pensam o contrário).

Mas é entre os jovens, sobre quem se despejaram os mais vis impropérios por causa das suas preferências eleitorais à direita, que a preferência pela democracia é ainda mais expressiva. As consequências de Abril foram mais positivas do que negativas para 73% dos inquiridos entre os 16 e os 34 anos.

Querem ver que os únicos nostálgicos por 1973 são aqueles que ainda se imaginam a viver e a combater em 1973?

Mas a ciência não fica por aqui. Num outro estudo, dirigido por Tiago Fernandes para a Fundação Friedrich Ebert e subordinado ao título Populismo em Portugal? Democracia, Migrações e Estado Social aos Olhos dos Portugueses, os simpatizantes do Chega começam a ter um rosto definido.

A julgar pelos histéricos, falamos de carantonhas demoníacas, que cospem fogo e comem criancinhas ao almoço (ao pequeno-almoço já sabemos quem se encarrega do assunto).

Novamente, estamos no território da alucinação: os simpatizantes do Chega têm um perfil que os aproxima do eleitorado do centro e revelam-se menos radicais do que a liderança do partido (por exemplo, no trato com os imigrantes).

Aliás, um dos dados mais notáveis do estudo está no facto de revelar que os apoiantes do Chega são os que menos se interessam por política (21% não querem saber do assunto; 31% querem saber pouco). Ricos fascistas, estes, que negam à partida os imperativos da “politique d’abord”.

Se votam, e desta vez votaram em quantidade, é porque são também os mais descontentes com o funcionamento da democracia (77%) – uma cifra que, longe de os envergonhar, devia envergonhar o partido que mais tempo esteve no poder nos últimos 24 anos: o PS.

Não admira que, segundo a Universidade Católica, tenha sido o PS o partido que mais eleitorado perdeu para o Chega. Um caso clássico de clientela insatisfeita com o serviço.

E POR FALAR EM CLIENTELAS: percebo a frustração do PS. Na primeira parte da legislatura, era preciso comer o pão que o diabo amassou – na função pública, nas forças de segurança, nas escolas, nos hospitais. Mas chegaria um momento, algures em 2024, em que o excedente orçamental permitiria montar o palco para a grande boda eleitoral de 2025-2026.

Pois bem: o momento chegou. Mas, para horror das tropas, não é o PS que vai chefiar a comissão de festas. É a AD. Isto, de facto, dá cabo de qualquer socialista: andámos nós a passar fome durante longos anos para que sejam eles a engordar agora?

Eu não seria tão drástico: falar de “cofres cheios” quando a dívida pública anda nos 99,1% do PIB é outra alucinação. No fundo, é como festejar o euromilhões só porque o saldo da conta corrente é positivo, apesar de termos um crédito à habitação no banco que nos leva couro e cabelo.
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