domingo, 28 de janeiro de 2024

Se o sertanejo é um forte, o paulistano é, antes de tudo, muito louco.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Sou filho disso aí. Filho sem orgulho, porque geografia não é escolha, e filho sem vergonha, porque vergonha de que afinal? Sou filho disso aí e ponto final. Minha cidade, minha cara, meu pulmão, minha garganta, meu fígado, meu amor. Orlando Tosetto para a Crusoé:


Ontem minha cidade, São Paulo, fez 470 anos. Fundada por padres jesuítas, ganhou esse nome segundo o hábito antigo de batizar cidades ou crianças recém-nascidas com o nome do santo ou da festa do dia natal: 25 de janeiro é o dia da conversão de São Paulo, conforme se lê nos Atos dos Apóstolos 9, 1-22, versículos que antigamente se liam na missa desse dia. O nome do santo caiu bem numa cidade tão ranheta, tão belicosa quanto foi, a seu tempo, o Apóstolo (que foi chamado de “uma peste” nos Atos 24,5), e que, como ele, amansou.

Ranheta, eu disse, e disse bem. Mas também que criança levada esta cidade sempre foi. Que criança rebelde. Foi, afinal, esta cidade quem tentou aclamar rei o bandeirante Amador Bueno da Veiga, em 1641 (ele recusou; uma placa colada à parede do Mosteiro de São Bento dá notícia do fato), primeiro berro de independência, e cujos habitantes depois arranjaram guerra com os emboabas. Esta cidade depois aclamou o Imperador Dom Pedro I e a Independência de facto, aliás proclamada nas suas terras. E depois foi ainda a capital do republicanismo e do café, duas coisas que andaram juntas, antes e depois (com leite). Foi esta cidade que se sublevou em 1924, e depois de novo em 1932. E foi ainda aqui, no Anhangabaú, em 1984, que a onda da redemocratização virou tsunami. Tanta briga, tanto remelexo numa cidade que, sabe Deus por que, ganhou fama de conservadora.

Porque a verdade é que se o sertanejo é, antes de tudo, um forte, o paulistano é, antes de tudo, muito louco. Ele elegeu para prefeito o camarada que abandonou a presidência e deu início à onda que culminou no golpe de 64. Depois, elegeu prefeitas duas mulheres de esquerda, uma delas socialite e sexóloga, a outra nordestina e supostamente homossexual. Para a mesma prefeitura, elegeu um negro de direita – e carioca. Sempre deu vez na vereança ao populismo de direita (enquanto isso existiu) e ao de esquerda (hoje quase exclusivo), sem abrir mão de gente trans e negros gays. Fez deputado federal um comediante semianalfabeto e senador um senhor cuja sanidade mental sempre foi objeto de debate. E, para honrar qualquer fama capitalista, fez de um marqueteiro seu prefeito e depois seu governador. Conservador? O paulistano é um livre-pensador.

Não sou paulistano “da gema” (expressão que ninguém usa mais), se a gente considerar como gema a Colina Histórica de que já falei por aqui. Serei antes de uma “gema estendida”: nasci num hospital que não existe mais, na Rua 21 de Abril, no Brás. Rua aliás que cruza a Rua do Hipódromo – hipódromo que também não existe mais. Perto de cinemas que não existem mais (Universo, Roxy, Fontana, Brás) e de restaurantes e cantinas que não existem mais (o Braseiro, a Ballila) ou mudaram para pior (o Garoto), das bancas de jornal que não existem mais, das lojas grandes que não existem mais, das ruas calçadas de paralelepípedos que não existem mais. E nem vou falar aqui dos fantasmas, das pessoas que não existem mais.

Essa aliás é outra marca da minha cidade: o faz-desmancha-refaz-desmancha de novo-refaz de novo, sem parar. Tudo aqui parece eterno no atacado, mas é muito provisório no varejo. O cinema que vira igreja, a igreja que vira restaurante, o restaurante que vira loja, a loja que vira shopping, o shopping que vira hospital, o hospital que vira condomínio, o condomínio que vira avenida, a linha do trem que vira outra avenida, a passagem de nível que vira ponte, a ponte que vira túnel, a casa que vira prédio, o prédio que vira três prédios, a árvore que vira nada, o bairro charmoso que vira um perigo e o bairro feio que vira chique. Tiro exemplos da minha própria vida: das cinco primeiras casas em que morei, só uma ainda existe.

Sou filho desse bafafá, desse “não tenho nada para fazer, mas estou com pressa”, dessa sensação de que a vida no centro de qualquer outra cidade grande do Brasil é uma espécie de sábado à tarde, dessa vontade de rir sempre que alguém de fora pergunta “será que dá pra ir a pé?”, das negociações complexas para juntar dez amigos em torno de uma mesa, de falar e ouvir “ih, naquele tempo isso aqui era tudo mato” e “pois é, choveu e parou tudo” e “nossa, faz séculos que eu não ando por aqui” (na Avenida São João) e “ah, é fácil, dois ônibus e um metrô” e “não ande sozinho por lá à noite, viu?”.

Sou filho disso aí. Filho sem orgulho, porque geografia não é escolha, e filho sem vergonha, porque vergonha de que afinal? Sou filho disso aí e ponto final. Minha cidade, minha cara, meu pulmão, minha garganta, meu fígado, meu amor.

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