Aprovada na CCJ do Senado, PEC do Plasma passa longe do centro das discussões, mas pode mudar a forma de vermos o sangue Por: Alice Maiciel, Ed Wanderley | Edição: Thiago Domenici, da Agência Pública
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O projeto que prevê mudanças na Constituição para permitir que a iniciativa privada explore o plasma humano – um componente valioso do sangue usado para produzir medicamentos voltados para o tratamento de doenças imunológicas – começou a tramitar no Senado um ano após um estudo realizado por empresas estrangeiras ter identificado que o plasma do povo brasileiro pode gerar mais lucro para a indústria farmacêutica, por ter durabilidade e rendimento maior, do que o do mercado europeu.
Se a Proposta de Emenda à Constituição nº10/2022, apelidada de PEC do Plasma, virar lei, um grupo seleto de grandes players com tecnologia para fracionar o plasma no mundo estaria pronto para faturar com o negócio. Entre eles, apenas um gigante brasileiro: a Blau Farmacêutica.
Na outra ponta, em contato direto com a população, estão os bancos de sangue privados, interessados em vender o plasma excedente das doações de sangue. Esse material, hoje, por lei, deveria ser repassado para a estatal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia), única autorizada a processá-lo. No entanto, a empresa informou à Agência Pública que apenas um banco de sangue privado cumpre o que diz a legislação.
Essa realidade foi confirmada, em entrevista, pelo presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu de Almeida, que informou ainda que essa escassa matéria-prima está indo parar em aterros sanitários. A associação conta com 48 associados e fez uma campanha massiva de publicidade nos meios de comunicação às vésperas da votação e junto aos senadores pela aprovação da PEC 10/2022 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
A articulação parece ter funcionado. O parecer da relatora, a senadora Daniella Ribeiro (PSD/PB), aprovado em 4 de outubro por 15 votos contra 11, permite que a parte do sangue não usada em transfusões, seja explorada neste mercado. O texto ainda abre brecha para a coleta de sangue remunerada, o que o presidente da ABBS diz ser contra e admite conversar com senadores para ajudar na redação da proposta. Para o projeto passar no plenário da Casa, serão necessários 49 votos favoráveis.
A PEC do Plasma, de autoria do senador e médico Nelsinho Trad (PSD/MS), começou a tramitar em abril de 2022 e visa mudar as regras do mercado de hemoderivados, em especial a imunoglobulina. Extraída em poucas gramas a cada doação, a substância concentra nossos anticorpos, e é matéria-prima de um dos remédios mais cobiçados atualmente pela indústria farmacêutica, recomendado para tratar diversas doenças que vão de problemas de coagulação a câncer ou aids. Também são extraídos do plasma para fazer remédios a albumina e os concentrados de fator VIII e IX da coagulação — hoje concebidos por meio de engenharia genética.
Atualmente, apenas seis empresas privadas, além da estatal Hemobrás, possuem registro na Anvisa para produzir e comercializar imunoglobulina humana (igg 5g), de acordo com o órgão: a espanhola Grifols, a italiana Kedrion, a alemã Biotest, a suíça Octapharma, a francesa LFB - Hemoderivados e Biotecnologia e a Blau Farmacêutica, única brasileira da lista. A gigante nacional, aliás, adquiriu recentemente participação de uma fábrica, a Prothya, de processamento de plasma nos Países Baixos, e quatro bancos de sangue na Flórida (EUA).
Um dos textos propostos pela relatora Daniella Ribeiro (PSD/PB) que circularam entre os senadores para votação, ao qual a Pública teve acesso, beneficiaria diretamente a Blau. Ele determinava que a comercialização do plasma pela iniciativa privada deveria ser feita exclusivamente “por empresa brasileira de capital nacional”, ponto também defendido pela ABBS, segundo o presidente da entidade. Mas, por falta de acordo entre os pares e pressão dos parlamentares contrários, o texto foi alterado. Procurada, a senadora não respondeu à reportagem.
A Blau informou por meio de nota desconhecer o texto da relatora e disse não ter tratado do assunto com senadores. A farmacêutica também acrescentou que não tem planos “nem interesse em comercializar, no Brasil, seus hemoderivados fabricados na Prothya”, com a justificativa de que o negócio não vale a pena no país.
Durante a votação na CCJ, Daniella Ribeiro disse que tentou construir um projeto baseado no que é feito na Europa, nos EUA e na Ásia. “O que nós queremos é que os pacientes autoimunes, queimados, traumatizados, politraumatizados tenham acesso ao que a Hemobrás não faz”, ressaltou, referindo-se ao fato de a estatal não conseguir atender ao mercado interno de hemoderivados.
Assim como a relatora, o autor do texto, Nelsinho Trad (PSD/MS), criticou, durante a reunião no Senado, o fato de o Ministério da Saúde precisar importar hemoderivados. “Nós queremos fortalecer o SUS, tirar o peso das costas do SUS essa questão que ele não deu conta de fazer para atender os pacientes que precisam”, defendeu. Em nota, ele informou à reportagem que o setor privado não teve influência na elaboração da proposta.
Para o presidente da Hemobrás, Antônio Edson de Lucena, a proximidade da inauguração da fábrica da estatal, prevista para o fim de 2025, seria a motivação pela PEC. “É uma questão de ‘agora ou nunca’. O projeto seria inviável após a fábrica inaugurar e nós suprimirmos quase toda a demanda do SUS. Viram uma oportunidade”, disse sobre o complexo que terá capacidade inicial para processar 500 mil litros de plasma por ano.
R$ 131 milhões por ano no lixo (literalmente)
Atualmente, mais plasma brasileiro vai parar em lixões que no fluxo de refinamento que dá origem a medicamentos. De todos os 122 bancos de sangue privados em atuação no Brasil, apenas um, regularizado recentemente, cumpre a Lei do Sangue, de 2001.
Apesar da exigência prevista no inciso segundo do artigo 14 da Lei 10.205/21, as empresas não repassam os cerca de 265 mil litros anuais de plasma excedente de doações para o refino de medicamentos que iriam para o SUS.
O plasma “privado” hoje vai parar em aterros sanitários, como admite o presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu. Esse é o mesmo material que os bancos de sangue querem vender, caso a PEC do Plasma seja aprovada.
Segundo o Ministério da Saúde, os atuais 200 mil litros de plasma anuais que são fragmentados correspondem à extração realizada nos hemocentros públicos e dão origem a cerca de 30% dos hemoderivados fornecidos no SUS. Enquanto a fábrica estatal não começa a operar, o fracionamento vem sendo feito no exterior pela suíça Octapharma.
“Sem a PEC, eu jogo fora milhares de bolsas de plasma no ‘lixão’ e isso é matéria-prima para fazer remédio”, destacou Paulo Tadeu. Isso significa dizer que, apenas em matéria prima, todos os anos, os aterros sanitários brasileiros recebem R$ 131 milhões em plasma desperdiçado, considerando a cotação do valor do barril de plasma bruto a 16 mil dólares. Ele diz ainda que apenas 15% do plasma é aproveitado nas transfusões, o que significa que os demais 85% são descartados.
Questionado sobre o descumprimento à Lei do Sangue, Paulo Tadeu afirmou não reconhecer irregularidades e disse que a responsabilidade é da estatal. “Quem tem que recolher isso por dever de ofício é a Hemobrás. Quem tem que fazer a validação do meu serviço é a indústria, não sou eu. Eu tenho que abrir a porta e dizer ‘por favor, entrem’ [...] Eu não posso enviar algo para quem não quer receber – e nem tem condições de armazenar. Não adiantaria de nada”, destacou.
Apenas o banco de sangue Colsan, de São Paulo, segundo a Hemobrás, se disponibilizou, este ano, em se submeter à auditoria da empresa e passar pelas adequações necessárias para fornecer ao SUS.
A Lei do Sangue exige a entrega do plasma, mas não há dispositivos legais que indiquem o responsável pelo custeio de refrigeração, armazenamento e logística desse conteúdo. Não há previsão para o Ministério da Saúde arque com esse custo e nem lei que imponha punições aos bancos de sangue que não o assumam. As tratativas seguem discutidas nos bastidores há anos, e, enquanto isso, o desperdício continua.
Plasma brasileiro, o melhor do mundo?
A desconfiança de que o plasma brasileiro seria diferenciado esteve presente em laboratórios por vários anos, mas em 2021 veio a confirmação. À época, se descobriu que 413 mil litros de plasma armazenados por cinco anos tinham as mesmas condições e qualidades de uma “coleta fresca” de um europeu comum. A pesquisa, feita pela suíça Octapharma identificou que o plasma brasileiro rende 4,8g de imunoglobulina por litro, 37% acima da média padrão do mercado europeu, de 3,5 g – em casos “excelentes”, esse número chega apenas a 4,5g.
Cada grama de imunoglobulina extraída custa cerca de 40 euros (cerca de R$ 210,10 na cotação atual) e leva nada menos que oito meses entre coleta, transporte, fragmentação, processamento, refino e envase em forma de medicamentos. Uma busca rápida em farmácias de três estados brasileiros mostra que o medicamento é comercializado entre R$ 1,4 mil e R$ 3,2 mil.
Os dados sobre o rendimento do plasma brasileiro foram confirmados pela Hemobrás por meio da Lei de Acesso à Informação e pelo presidente da estatal, Antonio Edson Lucena. Ele reforçou ainda que nosso sangue “é o melhor do mercado” e que no teste também “tiramos nota máxima em segurança". “A gente consegue esse rendimento porque estamos num país tropical. Aqui tem dengue, chikungunya, tem zika, tem tudo que nos gera anticorpos. Nós [brasileiro] somos uma fábrica ambulante de anticorpos”, destacou.
A pesquisa foi feita com o estoque “abandonado” entre 2016 e 2020, porque, em 2017, durante o governo do ex-presidente Michel Temer, o então Ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP), retirou da estatal a gestão do plasma, mas nenhum destino foi dado ao conteúdo. A decisão foi revogada na gestão de Eduardo Pazuello, em 2020, durante a pandemia da covid-19, após uma representação do Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas da União.
Esta é uma versão reduzida da reportagem produzida pela Agência Pública. Leia a matéria completa em apublica.org
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