BLOG ORLANDO TAMBOSI
Onde antes indivíduos fortes e independentes geravam sociedades livres, agora a dependência, o infantilismo e a negação da tragédia do mundo impelem a turba para a autoridade reguladora do Estado. Nuno Lebreiro para o Observador.
Quando
Deus disse a Adão para não comer da árvore do conhecimento do Bem e do
Mal aquele foi advertido de que a infracção a esse comando resultaria na
morte. Hoje, é certo, num mundo “científico”, “racionalizado”, tal
episódio, assim como o resto da narrativa, aparecerá à maioria como
ridículo, uma simplória historieta própria de povos primitivos,
incivilizados e, consequentemente, ignorantes. Ainda assim, sobra sempre
alguma perplexidade: afinal, como poderia fazer sentido, mesmo para
bárbaros irracionais, ser proibido, e punível por Deus, alguém obter
conhecimento sobre o mundo, em particular acerca do Bem e do Mal, ou
seja, sobre a base da moral que todos deveriam seguir?
A
resposta a esta questão talvez resida não tanto na interdição em si
mesma, mas no momento da vida em que a imaginamos postulada: se,
intuitivamente, rejeitamos a condenação à ignorância também é verdade
que dificilmente concordaremos que seja correcto exporem-se todos os
indivíduos — imagine-se uma criança, por exemplo — a todo o
conhecimento, sem quaisquer restrições. Aliás, tanto assim é que na
nossa sociedade criámos inúmeras limitações — quer de acesso a
informação, quer de frequência de certos espaços, até mesmo de direitos
sociais e políticos — baseadas precisamente na idade, isto porque o
mundo revela-se às crianças, junto com suas tragédias, de forma gradual e
lenta, normalmente adoçado sob o manto aconchegante e introdutório de
tradicionais alegorias infantis que disfarçam a nua e crua realidade em
cambiantes tão básicas quanto a reprodução ou, mais relevante, a própria
condição existencial humana marcada pela inevitabilidade da morte.
À
criança, o mundo apresenta-se, portanto, sempre a seu tempo, um tempo
que é próprio a cada civilização e cultura, um tempo normalmente
ritualizado, quando não sacramentado. Olhando desta perspectiva para a
queda do Paraíso vislumbramos uma outra história, no caso a narrativa
primordial de amadurecimento tradicional judaico-cristã — uma “coming of
age story” ancestral sobre a passagem do estado infantil, ignorante
sobre si e o mundo, para o adulto que sabe distinguir “o Bem do Mal” —,
ganhando a cena do fruto proibido, e consequente condenação divina, todo
um outro significado.
Desde
logo, a questão simbólica. Além da serpente ali representar o dragão no
mito clássico do herói que traz consigo o caos do desconhecido — no
caso, a vida adulta que vem perturbar a tranquilidade protegida da vida
infantil —, repare-se também ser um fruto maduro, um símbolo de
fertilidade facilmente associado ao estado pubescente, que configura
aquilo que impele Adão e Eva para a maioridade, altura em que aprenderão
sobre os certos e errados, é certo, e daí a árvore do Bem e dos Mal,
mas também uma nova realidade na qual, cobrindo-se porque já
sexualizados, lhes revela finalmente a sua condição: nua, agora também
sexual, mas desde sempre frágil, perene, limitada e dolorosa.
Assim,
a proibição, ou o tabu, deixa de parecer apenas castrador, ou
limitador, para se tornar, de certo modo, protector. Aliás, Deus,
omnisciente, saberá forçosamente que, a seu tempo, aquele comando será
infringido. Assim sendo, ficando a “infracção” dependente do
livre-arbítrio e da vontade humanas, responsabilizando-os, percebemos
que aquela ocorrerá quando os homens estiverem já preparados, mesmo que
apenas inconscientemente, para enfrentarem as consequências do seus
actos — ou seja, para “voarem do ninho”, “caírem” do paraíso infantil e
enfrentarem o mundo real, começando, desde logo, pela aceitação da sua
condição mortal.
Ora,
mas não era precisamente esse o aviso divino? Que o fruto proibido
traria consigo a morte? Assim vendo, ao invés do Deus que “condena” à
morte o Homem por este ter comido o fruto proibido, não será o relato
muito mais sobre a forma como o Homem, na queda do paraíso infantil, ao
aprender sobre si próprio e a sua condição, inevitavelmente, reconhece a
realidade da sua existência? — finita, periclitante, essa sim
condenada?
Vendo
por este prisma, o paraíso bíblico afinal nunca seria eterno e a queda
apenas trata da forma como, a seu tempo, para o Homem, a ilusão infantil
do paraíso perpétuo será sempre substituída pela realidade humana
adulta, ali simbolizada como queda na medida em que representa um
reconhecimento que, não obstante fundamental para atingir a maturidade,
não deixa de ser profundamente trágico. No entanto, essa é a
meta-narrativa que nos rege a todos — nascidos no “paraíso” infantil,
“caídos na real” quando adultos —, uma meta-narrativa que, precisamente
por ser universal, confere um certo grau de “verdade” à narrativa
bíblica que os tempos modernos do nosso Zeitgeist têm muita dificuldade
em sequer vislumbrar.
Ao
mesmo tempo, essa mesma meta-narrativa orienta, também, num conceito
abstracto e universal, aquela realidade particular familiar onde cada
criança deverá ser integrada num processo de educação e amadurecimento,
assim se estruturando e fortalecendo até ao ponto onde, por si própria,
questionando a sua realidade, ganhe a capacidade, e coragem, para cortar
as amarras com o uroboros — o colo materno que protege até se tornar
sufocante — e conquistar, por própria decisão, a sua independência.
Naturalmente, parte dessa protecção, e tal como o fruto proibido e o
facto de Adão e Eva se cobrirem mal caídos no mundo salienta, revela-se
na sexualidade: desconhecida à criança, interdita na puberdade,
autorizada, mas ainda limitada, após a maioridade.
Assim
visto, deste episódio bíblico se podem retirar, pelo menos, dois eixos
fundamentais para a moral Cristã que, até há muito pouco tempo, nos
educou rumo à idade adulta: primeiro, que, enquanto criança, a
sexualidade é dos assuntos aos quais, por força da sua importância,
maior protecção e limitação deverá exigir; depois, que a criança deve
ser protegida e educada apenas até que seja forte o suficiente para
enfrentar o mundo, altura em que, tornada adulto, o deverá fazer por si
próprio, de forma absolutamente independente e auto-responsável.
No
entanto, hoje em dia, ao invés de lareiras e fogões em redor dos quais
as famílias se juntem para partilhar uma cultura ancestral assente numa
moral particular destilada em narrativas como esta, a sociedade moderna
entretém-se, atomizada, nos curtos metros quadrados dos respectivos
quartos de dormir, de comando na mão, mirando o mundo, de longe, em
isolada segurança geométrica, através dos ecrãs azulados e frios da TV,
ou do smartphone, que a ciência, mágica e quase-divina, nos ofereceu.
Naturalmente, em tal contexto, a meta-narrativa bíblica, tal como todos
os mitos ancestrais, vê-se desprezada e jogada à insignificância da sua
irracionalidade religiosa, tida agora como patética, bafienta e inútil.
Pelo
contrário, a nova sociedade, assumida como “racional” e libertadora,
trata hoje em dia de perverter os dois eixos acima referidos. Desde
logo, hipersexualizada, obcecada de modo maníaco com o sexo ao ponto de
por aí pretender definir a identificação de cada indivíduo — agora
pressurosamente rotulado, catalogado, colorida e alfabeticamente
organizado em função das suas preferências sexuais —, é uma sociedade
que, progressivamente, não apenas levanta todos os tabus e limites
impostos pela velha moral — os tais que pretendiam proteger e limitar —,
como, mais relevante, precisamente porque associou a identificação
individual à sexualidade, assim expõe, ou pretende cada vez mais expor,
crianças, infantes, e até bebés, às temáticas da nova moral sexual, em
muitos casos já com carácter de obrigatoriedade, forçando, inclusive, à
tomada de posição ainda infantil sobre a “preferência sexual”, isto como
se de uma livre e alegre escolha num cardápio se tratasse.
Deste
modo, a anterior estruturação identitária dá agora lugar a uma
crescente indefinição, até por abertamente se promoverem, inclusive na
escola, adornadas a arcos-íris, novas e ridículas teorias que afirmam,
entre outras bizarrias, o género como sendo independente da realidade
biológica e cromossomática de cada indivíduo, num pseudo-científico
aprofundamento da “libertação” individual, agora numa variante biológica
face aos constrangimentos do próprio corpo. Ao mesmo tempo, o outro
eixo é igualmente invertido, apenas que pelo outro lado: desde os
progenitores ultra-protectores, até à progressiva substituição da
família pelo Estado, agora tido como incubadora tipo ama-seca, o famoso
“nanny state” que, crescentemente, se impõe, “para o nosso bem”, do
berço até ao caixão, assim se promete um mundo novo que, alicerçado no
“safe space” e na harmonia que o discurso social unânime — agora
devidamente controlado, necessariamente amável, afável, nunca odioso nem
quezilento —, garante uma sociedade pingando fraternidade, igualdade e,
naturalmente, como valor máximo, “liberdade” — a liberdade social
igualmente máxima, aquela do indivíduo face a qualquer forma de
sofrimento, agrura ou dificuldade.
Deste
modo, por cima das pessoas, se ergue o Estado máximo liberal ora
anunciado: quando um pobre desgraçado sofre com o corpo, logo a comissão
trans-humana resolverá cortando genitais e subsidiando hormonas e
cirurgias plásticas; se o infeliz ressabiado sofre pela rudeza do
vizinho, a repartição tratará de exigir reparações, ao mesmo tempo que
regula o discurso e extermina a “discriminação” e a maldita
“desinformação”; se o sofredor ressentido se enerva com o vizinho mais
abastado, o fisco garantirá a “justiça social”, redistribuindo o saque
tributário para felicidade generalizada — enfim a “paz perpétua”.
Em
suma, onde antes, seguindo o mito bíblico, se protegia a criança para
mais tarde gerar força e independência no adulto, assim cultivando uma
sociedade igualmente forte e independente, portanto livre, agora faz-se o
inverso: primeiro, tudo se expõe a todos sem pudor, dissolvendo-se os
infantes na fluidez imediatista e disforme que mina a priori as bases
formadoras e estruturais da criança; depois, esta, desestruturada e sem
responsabilidades próprias, agarrada ao uroborus, desprotegida e
imprecatada face ao mundo, quando nesse finalmente largada acaba
procurando, a posteriori, o habitual amparo, agora no regaço
ultra-protector do Estado. Hélas, solve et coagula em versão liberal:
onde antes indivíduos fortes e independentes geravam sociedades livres e
corajosas, agora a dependência, o infantilismo e a negação da tragédia
do mundo impelem a turba para a autoridade reguladora do Estado.
Ainda
assim, o ideal do “safe space” ora prometido, junto com a utopia
científica da vida “liberta” de dor — desde o nascimento por cesariana,
passando pelo ansiolítico, ou a ritalina, o botox quando as rugas
aparecerem, culminando na injecção libertadora da eutanásia — reflecte,
mesmo que em versão pervertida e abreviada, a vida bíblica anterior à
descoberta do Bem e do Mal — supostamente abundante, plena, pura,
harmónica, “feliz”, perfeita, pejada de certezas, sem necessidade de
decisão individual sobre o Bem e o Mal própria dos adultos, logo sob
rigorosa e infalível autoridade, agora do Estado, que, através da TV, do
perito e do cientista impõe limites, decide os interditos e, claro
está, garante protecção.
No
fundo, a promessa perversa e pervertida da suprema libertação é a da
infantilidade perpétua, desta feita satisfeita no conforto do útero
materno, agarrada à mama e ao colo, a expensas da responsabilidade, e
com ela a liberdade, individuais — um contra-senso, naturalmente. O
slogan, no entanto, é simples: obedecei ao novo dogma, respeitai os
limites politicamente correctos e nunca terás que crescer e enfrentar a
agrura do caos e do desconhecido, quedando-te no regaço da unanimidade
social, debaixo da alçada do Estado, ou seja, no novo paraíso. Do mesmo
modo, se infringires a nova lei, a nova queda revela-se no opróbrio
social, na suspensão da rede social ou do subsídio, senão mesmo, nos
casos mais graves, na prisão.
Eis,
então, o paradoxo supremo da modernidade liberal com a sua promessa da
máxima libertação individual: ao intentar a superação das restrições
primordiais morais, bem como recusando as agruras da queda do Paraíso,
criaram-se, afinal, as condições para que o estado de infantilidade se
perpetue ad aeternum. Daí, convenientemente imbecilizados, afogados em
colo e mimo, parte-se da negação daquela “verdade” da narrativa bíblica
para uma apologia da sua negação; mas, porque apenas o alienado nega a
verdade, cai-se agora já na mais perfeita loucura que, em nome da
libertação, mata a liberdade, em nome do individualismo supremo, apregoa
o colectivismo, em nome do primado das pessoas, sugere o Estado como
ente supremo e, extraordinariamente, em nome do liberalismo e da
democracia, propõe agora, como fim de ciclo, o iliberalismo e o advento
da tirania.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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