domingo, 26 de novembro de 2023

Como Bolsonaro passou de proibido em quartéis a escolhido pelo Exército

POLITICA LIVRE
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Na tribuna da Câmara dos Deputados, o parlamentar Jair Bolsonaro, já conhecido pela retórica incendiária, estava manso naquele 24 de setembro de 1991. “Jamais terei uma postura, em qualquer organização militar, de afronta a quem quer que seja –seja comandante, seja general, seja coronel ou até mesmo capitães”, discursou.

Bolsonaro nem tinha completado um ano de seu primeiro mandato de deputado federal. Lamentava-se sobre um informe confidencial do Comando de Operações Terrestres do Exército que disse ter recebido de “um companheiro de farda”.

O documento descrevia como o deputado andava, por meio de panfletos, “criticando a atual política salarial, os ministros militares e outros chefes, concitando uma tomada de posição individual e coletiva contrária à disciplina castrense”. E ratificava que Bolsonaro estava proibido de entrar em unidades militares.

“Sábado que vem, agora, há uma solenidade, por coincidência, na Brigada de Infantaria de Paraquedista, na qual tive o prazer de servir por quatro anos, e o convite está aberto a todos os paraquedistas”, relatou Bolsonaro.

Dirigindo-se ao colega Nilson Gibson, que presidia a Mesa, completou: “Então, pergunto a vossa excelência, companheiro mais antigo, de vários mandatos, como devo proceder: me acovardar, ficando aqui em Brasília, ou, como cidadão –não como deputado, mas como cidadão– ir a essa solenidade? E, em lá chegando, vou submeter-me a um interrogatório e ser expulso do quartel? Como devo proceder, sr. presidente?”.

Bolsonaro fora proscrito pela cúpula do Exército quatro anos antes, por uma série de atos de indisciplina e quebra de hierarquia: insultou superiores, publicou um artigo na Veja reclamando dos soldos e revelou a uma repórter da revista um plano para explodir bombas em unidades militares.

Pelas transgressões, no início de 1988 foi julgado e condenado por um Conselho de Justificação, tribunal administrativo militar, segundo o qual o então capitão mentiu “ao longo de todo o processo” e teve “comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe, ao passar à imprensa informações sobre sua instituição”.

Bolsonaro foi salvo meses depois pelo STM (Superior Tribunal Militar), que o absolveu a partir de uma interpretação exótica sobre os laudos grafotécnicos usados como provas para condená-lo antes.

Não chegou a ser expulso da corporação, como ainda hoje muita gente pensa, mas, por lei, seguiu automaticamente para a reserva remunerada quando foi eleito vereador pelo Rio de Janeiro naquele mesmo 1988.

Conforme revela o informe lido por ele na tribuna da Câmara três anos depois, continuava barrado em instalações do Exército.

Se sua nascente base eleitoral era composta por militares de baixa patente (praças, suboficiais e pensionistas), para a cúpula da força terrestre ele representava um estorvo, como era descrito e representado em reportagens e charges.

Certa feita, em 1992, ao tentar entrar na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), em Resende (RJ), para assistir a uma formatura de cadetes, Bolsonaro teve seu carro rebocado do portão de entrada da escola de formação de oficiais, a mando do então ministro do Exército, Carlos Tinoco.

Foi longo o caminho que levou um oficial antes considerado tóxico a ser reabilitado pelas altas instâncias do Exército, que mais tarde apoiaram em peso, oficiosamente, sua candidatura à Presidência em 2018 e 2022.

Ele não deixou de ser o candidato do baixo clero fardado, mas aos poucos passou a mostrar que poderia ser também um representante das Forças Armadas no Congresso Nacional, tanto do ponto de vista corporativo quanto no aspecto ideológico.

Na primeira frente, um passo crucial foi direcionar emendas individuais para instituições do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Levantamento publicado no livro “Poder Camuflado”, de autoria deste repórter, mostrou que mais da metade do valor das emendas aprovadas por Bolsonaro de 1995 a 2019 (ele foi deputado até 2018, mas no ano final propôs emendas ao Orçamento de 2019), R$ 197,7 milhões em valores nominais, foi destinado a instituições militares, sobretudo na área de saúde.

Em alguns anos, como em 2012 e 2013, o percentual de emendas para as Forças Armadas chegou a 80%.

“Como deputado federal, defendendo pautas de interesse comum, ele comprovou que era envolvido. Já estava reabilitado muito antes de a turma de 77 [da Aman, na qual Bolsonaro se formou] chegar ao generalato”, afirmou o general Tomás Ribeiro Paiva, atual comandante do Exército, em setembro de 2021, quando chefiava o Comando Militar do Sudeste.

O também general Augusto Heleno –que seria ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) no governo Bolsonaro– reconheceu, numa entrevista em 2018, logo após a vitória de Bolsonaro, que “a proximidade dele com as reivindicações das Forças Armadas” foi crucial na, digamos, anistia que lhe seria concedida.

“Maior prova disso é que quem o colocou no Conselho de Justificação foi o general Leônidas Pires Gonçalves. E ficaram amigos depois de o Bolsonaro volta e meia visitá-lo, trocar ideias com ele”.

Leônidas, que era ministro do Exército na época das transgressões de Bolsonaro, mandou prendê-lo quando ele escreveu o artigo na Veja reclamando dos salários.

Com a revelação do plano das bombas, duvidou da revista e deu um crédito de confiança ao capitão —mas se enfureceu contra ele e passou a trabalhar por sua expulsão quando ficou provado que a repórter tinha provas do que escrevera.

Mais poderoso líder militar na transição para a redemocratização (ordenou a um hesitante José Sarney que tomasse posse quando Tancredo Neves morreu), Leônidas continuou com força no Exército mesmo após deixar o poder.

Bolsonaro sabia disso e, a partir dos anos 2000, se reaproximou gradativamente do ex-algoz. Foi ao enterro de Leônidas e, conforme contou Miguel Pires Gonçalves, filho do general, numa entrevista em 2022, afirmou que considerava o pai dele “o maior líder militar dos últimos 50 anos no Brasil”.

Na frente político-ideológica, Bolsonaro vocalizou como poucos o sentimento anticomunista tão caro ao Exército há quase um século. Foi, ao longo de seus sete mandatos consecutivos na Câmara dos Deputados, o maior defensor do golpe de 64 e da ditadura militar.

Destacou-se ainda, aos olhos dos generais, como um inimigo empedernido da Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2012, no primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), para investigar violações de direitos humanos durante a ditadura —e motivo de revolta na caserna, tendo sido responsável por algumas das maiores crises entre políticos e militares do período democrático.

A cruzada contra a Comissão da Verdade turbinou o antipetismo de Bolsonaro, outro traço que ajudou a reaproximá-lo das Forças Armadas.

Quando Michel Temer chegou ao poder, em 2016, após a queda de Dilma, preparou o terreno para volta dos militares ao centro da política. Dois generais exerceram um papel fundamental nesse processo: Sergio Etchegoyen, ministro-chefe do GSI de Temer, e Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército.

A atuação de ambos contribuiu para o esgarçamento das relações entre os governos petistas e o Exército e para a consequente adesão dos fardados à Operação Lava Jato —e por tabela a Bolsonaro.

Ainda em 2017, Villas Bôas já admitia que a aceitação do então pré-candidato Bolsonaro era grande nas Forças Armadas, sobretudo no Exército. Mais tarde, o comandante atuou politicamente para impedir que Lula fosse candidato em 2018 ou que o PT voltasse ao poder.

Primeiro no famoso tuíte às vésperas do julgamento de um habeas corpus no STF que poderia ter liberado a candidatura de Lula. Mais tarde, quando Bolsonaro foi vítima de uma facada durante a campanha eleitoral, Villas Bôas declarou que a turbulência política poderia levar o candidato eleito a ter sua legitimidade questionada.

De generais de quatro estrelas a praças, todo mundo na caserna reconhece a adesão praticamente irrestrita dos integrantes das Forças Armadas à candidatura do ex-rebelde e ex-persona non grata Bolsonaro em 2018.

Quando ele assumiu o governo, militarizou a administração federal com fardados da ativa e da reserva e politizou as Forças Armadas numa extensão inédita na democracia, com efeitos para as relações civis-militares visíveis no 8 de janeiro e sentidos até agora.

Fabio Victor/Folhapress

 

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