sexta-feira, 3 de novembro de 2023

A mancha do Ministério da Igualdade Racial

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

A assessora exonerada por atacar atorcida do São Paulo representa bem o espírito do alegado combate ao racismo no Brasil atualmente. Rodolfo Borges para a Crusoé:


O São Paulo Futebol Clube deu fim a um período de 15 anos sem títulos de relevância ao conquistar sua primeira Copa do Brasil, contra o Flamengo, no último fim de semana. Se destacaram no triunfo a torcida tricolor, que conduziu um time limitado rumo à glória contra o clube mais poderoso do Brasil; Rodrigo Nestor, o outrora criticado jovem promissor que marcou o gol do título; o técnico Dorival Júnior, que se vingou da diretoria flamenguista que o demitiu mesmo após a conquista de dois torneios; e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Anielle atraiu críticas por dar a entender que pegou carona em voo da FAB para assistir à final disputada no Morumbi. Flamenguista, gravou vídeo animada dando conta da viagem, feita sob a justificativa de assinar um protocolo contra o racismo junto com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Foi cobrada publicamente, o que é do jogo, mas a história estava apenas começando. A ministra enxergou “violência política de gênero e raça” nos questionamentos sobre sua viagem. Disse também que os “ataques” não eram contra ela, mas “ao povo brasileiro”.

A história piorou ainda mais quando Marcelle Decothé, assessora especial do Ministério da Igualdade Racial, foi pega criticando a “torcida branca que não canta, descendente de europeu safade (sic)…” do São Paulo em seu perfil no Instagram. Marcelle acabou exonerada na última terça-feira, mas o que ela disse não apenas está em consonância com a primeira reação de Anielle às críticas, como representa o espírito do alegado combate ao racismo no Brasil atualmente.

A assessora especial estava apenas reverberando uma crítica que a crônica esportiva nacional se acostumou a fazer após a construção de arenas mais modernas no país. No caso da final da Copa do Brasil, os preços dos ingressos estavam bem elevados, pelo tamanho da partida, tanto no Maracanã, que abrigou a primeira parte da final, quanto no Morumbi, apesar de nenhum dos dois estádios ter virado arena. Como resultado, a população mais pobre ficou de fora. Não foram poucos os cronistas a dizer que o estádio estava “branco”, como repetiu Marcelle, e a destacar que esse torcedor da elite econômica não sabe empurrar o time.

Pesquisa Datafolha indica que apenas 31% dos são-paulinos se identificam como brancos. Outros 16% se dizem negros. A maioria (46%) entra na categoria pardos. É mais ou menos a mesma proporção do Brasil, mas a categoria pardos vai sumindo progressivamente, empurrada para o lado negro ou branco a depender da conveniência, à medida que o debate racial brasileiro é dominado pelo discurso americano, reflexo de uma história mais escancarada e também mais simples. Sem conseguir lidar com as próprias complexidades, o país mestiço se rendeu às cotas raciais e tenta se encaixar nos moldes daquilo que parece mais avançado no debate racial — o “racismo estrutural”, encampado por outro ministro, Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, é o exemplo mais destacado.

Em A Marca Humana (Companhia das Letras), ou a mancha humana, já que o original em inglês é The Human Stain, Philip Roth conta a história de Coleman Silk, um professor universitário que cai em desgraça após ser injustamente acusado de racismo. Intrigado por dois alunos que não apareceram nas primeiras seis aulas do curso, Silk questiona: “Alguém conhece essas pessoas? Eles existem mesmo ou será que são spooks [espectros, fantasmas]?”. Para seu azar, os dois alunos eram negros, e spook era um termo usado no passado para se referir de forma pejorativa a negros — Roth revelou anos após publicar o livro que se baseou na história real de um amigo.

A ironia é que, apesar de ter a pele clara, o professor universitário é negro, geneticamente. Nasceu numa família negra e, aproveitando-se do fenótipo claro, se alistou na Marinha como branco, aos 19 anos, para escapar da segregação oficial, vivendo assim pelo resto da vida. É o tipo de história que não faz sentido no Brasil, onde a dinâmica racial se desenvolveu e se desenvolve de outras formas. Para o bem ou para o mal, o país se misturou, e talvez esse fato pudesse ser usado para combater o racismo de forma mais efetiva do que essa tentativa de alimentar a cizânia entre europeus e africanos que não existem mais.

“O perigo do ódio é que, uma vez iniciado, você recebe cem vezes mais do que esperava. Depois de começar, você não pode parar. Não conheço nada mais difícil de controlar do que odiar. É mais fácil parar de beber do que dominar o ódio”, diz Ernestine Silk, irmã de Coleman, ao comentar os sentimentos da família abandonada pelo negro que escolheu viver como branco. Se de fato pretende combater o racismo no país, o Ministério da Igualdade Racial precisa olhar para o Brasil, não para os EUA. E com um pouco mais de carinho.
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