Cada um pode escolher. E na mágica dessa escolha exercer o poder irredutível que cada um possui para definir a si mesmo. Fernando Schüler para a revista Veja:
A ministra Rosa Weber
fez um discurso na semana dizendo que a internet foi ocupada por
“agentes do ódio”. Na sua visão, aquele espaço, que deveria ser uma
arena democrática, acabou nas mãos de pessoas perigosas, dispostas a
“manipular o pensamento”, enquanto o “jornalismo profissional” luta para
defender a verdade. Faltou enaltecer o papel do Estado, funcionando
como uma espécie de grande maestro do debate na sociedade. Se a ministra
estiver certa, o Brasil está em um ótimo caminho. Foi correto
generalizar a censura prévia, de modo a matar a desinformação mesmo
antes que ela aconteça, e tudo que vimos no país por estes anos. De
minha parte, suspeito que as coisas sejam bem mais complicadas. Mocinhos
e bandidos trocam de papel a todo momento, o jornalismo profissional
está longe de ser o guardião da verdade e, pasmem, os juízes não são
infalíveis. Infelizmente, o ódio digital não é apenas a ação de alguns
“agentes”, e o preconceito e a raiva que vêm de muitos “lados” da
sociedade, como bem vimos nesta semana. E que tudo remete à natureza da
revolução tecnológica, que marca a nossa época e vem dando o tom do
debate público em nossas democracias.
Em
algum momento, de fato, se imaginou que a internet promoveria a “ágora
global”, aproximando as pessoas, mas a verdade é que isso há muito se
perdeu. Minha hipótese é que isto aconteceu em algum momento em torno da
virada para a década de 2010. Há muitos sinais nessa direção. Um deles é
o declínio da saúde mental, em especial dos adolescentes, na última
década, que vem sintomaticamente junto com a generalização do uso das
redes sociais. Luca Braghieri e outros pesquisadores publicaram um amplo
estudo, na American Economic Review, mostrando o impacto negativo da
popularização do Facebook nas universidades americanas. O estudo relata
83% de aumento de casos de depressão entre jovens de 18 a 23 anos, entre
2008 e 2018. É o mesmo que mostra o Centro de Controle e Prevenção de
Doenças, dos Estados Unidos, com 57% de aumento dos sentimentos de
“tristeza” e “desesperança” entre meninas adolescentes. O Brasil não
está distante disso, com um aumento de 81% na taxa de suicídios entre
adolescentes.
Também
parte importante da mídia, na última década, migrou para um inédito
“universo de negatividade”. Foi o que o cientista de dados David Rozado,
da Nova Zelândia, encontrou analisando 23 milhões de manchetes de 47
veículos de mídia pop americanos, entre 2000 e 2019. Até 2010, ele diz,
“há uma tênue dianteira dos sentimentos positivos”. A partir daí, tudo
se transforma. “A média das manchetes ficou negativa”, diz, e cresce
aceleradamente o número de matérias associadas a “medo”, “raiva”, “nojo”
e “tristeza”. As menções a “medo” crescem 150%, e a razão parece ser
uma sombria mecânica de mercado. Manchetes negativas repercutem mais, no
ambiente digital, criando um incentivo perverso em direção à
negatividade. Há um canal de mão dupla, um discreto namoro, quem sabe,
entre a “mídia profissional” e as redes sociais. O mundo pode não ter
piorado em nada, mas a nossa percepção, sim. E talvez venha daí um bom
pedaço do mau humor contemporâneo.
Vale
o mesmo para a radicalização política e retórica em torno da “justiça
social”. O cientista político Zach Goldberg pesquisou a frequência do
uso das expressões “racismo ou racismo estrutural”, ou “sistêmico”, em
quatro dos maiores jornais americanos (The New York Times, Washington
Post, Los Angeles Times e The Wall Street Journal), dos anos 70 até
hoje. O mesmo padrão se repete. Nos primeiros trinta anos da mostra, a
frequência é basicamente estável. A partir de 2010, há um crescimento de
700% a 1 000% no uso desses termos. “A mídia foi incorporando a agenda
woke”, diz Goldberg. Os sintomas disso todos conhecemos: generalização
dos “cancelamentos”, as “microagressões”, as guerras culturais opondo
“identitários” e “conservadores”. E todo mal-estar do qual muitos já
estão cansados.
Vai
aí um paradoxo de nossa época. Ao mesmo tempo que avançamos na
sociedade de direitos, tendemos a perceber o mundo como se estivéssemos
deslizando à beira de um abismo. De onde veio tudo isso? Não há uma
explicação simples, mas certo consenso que a rápida expansão das redes
sociais e sua cultura tóxica têm muito a ver com isso. Com alguns
detalhes especialmente marcantes. Em 2009, o Twitter contratou Chris
Wetherel, um jovem roqueiro e programador, para desenvolver uma nova
ferramenta: o botão de retweet. No início, diz ele, achou ótima. Pensou
que seria uma boa maneira de “dar voz a comunidades sub-representadas”.
Depois mudou de ideia. A ferramenta logo se tornou a forma mais comum de
assédio digital e de disseminação de notícias “sem pensar duas vezes”.
“Colocamos uma arma nas mãos de uma criança de 4 anos”, diz o bom
roqueiro hoje em dia. A culpa não é dele, claro, e é possível pensar que
sua pequena geringonça deu apenas mais liberdade para que as pessoas
mostrem o que são de verdade.
Há
muita coisa perigosa e fascinante nisso tudo. Uma delas é que estamos
todos metidos em um grande “experimento” que veio para ficar. É evidente
que há muitos “agentes do ódio”, como diz a ministra Weber, mas a
verdade é que o problema é muito mais amplo. Uma pesquisa mostrou que os
“radicais”, no espectro político, somam 14% da sociedade, mas conseguem
dar o tom do debate digital. E que o ecossistema que produzem
condiciona diretamente a “mídia profissional”. Por vezes pela tentação
da ideologia, por vezes apenas como estratégia de mercado. Afora isso, é
algo constrangedor perceber como, mesmo nas entrelinhas do discurso de
nossa ministra, os “agentes do ódio” não por acaso costumam ser aqueles
cujas visões de mundo não compartilhamos. Para saber disso, basta quinze
minutos circulando por uma rede social no Brasil de hoje.
Não
recomendo que ninguém faça isso. Sugiro, aliás, que todos desliguem um
pouco. Somos filhos de uma época de ódio e angústia não porque há gente
ruim rondando uma sociedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um
poder inédito para revelar quem somos. Uma mecânica que ninguém pode
mudar, mas que nos permite uma tomada de posição individual. A decisão
sobre como cada um de nós irá se comportar diante disso. Podemos entrar
no jogo. Podemos nos “algoritmizar” e depois esperar que o Estado aspire
o pó da “desordem informacional”, em regra feita das ideias que não
suportamos. Mas podemos ser melhores do que isso. Cada um pode escolher.
E na mágica dessa escolha exercer o poder irredutível que cada um
possui para definir a si mesmo, em última instância.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861
Postado há 30th September por Orlando Tambosi
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