sexta-feira, 3 de novembro de 2023

A escolha de cada um diante dos "agentes do ódio"

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Cada um pode escolher. E na mágica dessa escolha exercer o poder irredutível que cada um possui para definir a si mesmo. Fernando Schüler para a revista Veja:


A ministra Rosa Weber fez um discurso na semana dizendo que a internet foi ocupada por “agentes do ódio”. Na sua visão, aquele espaço, que deveria ser uma arena democrática, acabou nas mãos de pessoas perigosas, dispostas a “manipular o pensamento”, enquanto o “jornalismo profissional” luta para defender a verdade. Faltou enaltecer o papel do Estado, funcionando como uma espécie de grande maestro do debate na sociedade. Se a ministra estiver certa, o Brasil está em um ótimo caminho. Foi correto generalizar a censura prévia, de modo a matar a desinformação mesmo antes que ela aconteça, e tudo que vimos no país por estes anos. De minha parte, suspeito que as coisas sejam bem mais complicadas. Mocinhos e bandidos trocam de papel a todo momento, o jornalismo profissional está longe de ser o guardião da verdade e, pasmem, os juízes não são infalíveis. Infelizmente, o ódio digital não é apenas a ação de alguns “agentes”, e o preconceito e a raiva que vêm de muitos “lados” da sociedade, como bem vimos nesta semana. E que tudo remete à natureza da revolução tecnológica, que marca a nossa época e vem dando o tom do debate público em nossas democracias.

Em algum momento, de fato, se imaginou que a internet promoveria a “ágora global”, aproximando as pessoas, mas a verdade é que isso há muito se perdeu. Minha hipótese é que isto aconteceu em algum momento em torno da virada para a década de 2010. Há muitos sinais nessa direção. Um deles é o declínio da saúde mental, em especial dos adolescentes, na última década, que vem sintomaticamente junto com a generalização do uso das redes sociais. Luca Braghieri e outros pesquisadores publicaram um amplo estudo, na American Economic Review, mostrando o impacto negativo da popularização do Facebook nas universidades americanas. O estudo relata 83% de aumento de casos de depressão entre jovens de 18 a 23 anos, entre 2008 e 2018. É o mesmo que mostra o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, dos Estados Unidos, com 57% de aumento dos sentimentos de “tristeza” e “desesperança” entre meninas adolescentes. O Brasil não está distante disso, com um aumento de 81% na taxa de suicídios entre adolescentes.

Também parte importante da mídia, na última década, migrou para um inédito “universo de negatividade”. Foi o que o cientista de dados David Rozado, da Nova Zelândia, encontrou analisando 23 milhões de manchetes de 47 veículos de mídia pop americanos, entre 2000 e 2019. Até 2010, ele diz, “há uma tênue dianteira dos sentimentos positivos”. A partir daí, tudo se transforma. “A média das manchetes ficou negativa”, diz, e cresce aceleradamente o número de matérias associadas a “medo”, “raiva”, “nojo” e “tristeza”. As menções a “medo” crescem 150%, e a razão parece ser uma sombria mecânica de mercado. Manchetes negativas repercutem mais, no ambiente digital, criando um incentivo perverso em direção à negatividade. Há um canal de mão dupla, um discreto namoro, quem sabe, entre a “mídia profissional” e as redes sociais. O mundo pode não ter piorado em nada, mas a nossa percepção, sim. E talvez venha daí um bom pedaço do mau humor contemporâneo.

Vale o mesmo para a radicalização política e retórica em torno da “justiça social”. O cientista político Zach Goldberg pesquisou a frequência do uso das expressões “racismo ou racismo estrutural”, ou “sistêmico”, em quatro dos maiores jornais americanos (The New York Times, Washington Post, Los Angeles Times e The Wall Street Journal), dos anos 70 até hoje. O mesmo padrão se repete. Nos primeiros trinta anos da mostra, a frequência é basicamente estável. A partir de 2010, há um crescimento de 700% a 1 000% no uso desses termos. “A mídia foi incorporando a agenda woke”, diz Goldberg. Os sintomas disso todos conhecemos: generalização dos “cancelamentos”, as “microagressões”, as guerras culturais opondo “identitários” e “conservadores”. E todo mal-estar do qual muitos já estão cansados.

Vai aí um paradoxo de nossa época. Ao mesmo tempo que avançamos na sociedade de direitos, tendemos a perceber o mundo como se estivéssemos deslizando à beira de um abismo. De onde veio tudo isso? Não há uma explicação simples, mas certo consenso que a rápida expansão das redes sociais e sua cultura tóxica têm muito a ver com isso. Com alguns detalhes especialmente marcantes. Em 2009, o Twitter contratou Chris Wetherel, um jovem roqueiro e programador, para desenvolver uma nova ferramenta: o botão de retweet. No início, diz ele, achou ótima. Pensou que seria uma boa maneira de “dar voz a comunidades sub-representadas”. Depois mudou de ideia. A ferramenta logo se tornou a forma mais comum de assédio digital e de disseminação de notícias “sem pensar duas vezes”. “Colocamos uma arma nas mãos de uma criança de 4 anos”, diz o bom roqueiro hoje em dia. A culpa não é dele, claro, e é possível pensar que sua pequena geringonça deu apenas mais liberdade para que as pessoas mostrem o que são de verdade.

Há muita coisa perigosa e fascinante nisso tudo. Uma delas é que estamos todos metidos em um grande “experimento” que veio para ficar. É evidente que há muitos “agentes do ódio”, como diz a ministra Weber, mas a verdade é que o problema é muito mais amplo. Uma pesquisa mostrou que os “radicais”, no espectro político, somam 14% da sociedade, mas conseguem dar o tom do debate digital. E que o ecossistema que produzem condiciona diretamente a “mídia profissional”. Por vezes pela tentação da ideologia, por vezes apenas como estratégia de mercado. Afora isso, é algo constrangedor perceber como, mesmo nas entrelinhas do discurso de nossa ministra, os “agentes do ódio” não por acaso costumam ser aqueles cujas visões de mundo não compartilhamos. Para saber disso, basta quinze minutos circulando por uma rede social no Brasil de hoje.

Não recomendo que ninguém faça isso. Sugiro, aliás, que todos desliguem um pouco. Somos filhos de uma época de ódio e angústia não porque há gente ruim rondando uma sociedade indefesa, mas porque ganhamos liberdade e um poder inédito para revelar quem somos. Uma mecânica que ninguém pode mudar, mas que nos permite uma tomada de posição individual. A decisão sobre como cada um de nós irá se comportar diante disso. Podemos entrar no jogo. Podemos nos “algoritmizar” e depois esperar que o Estado aspire o pó da “desordem informacional”, em regra feita das ideias que não suportamos. Mas podemos ser melhores do que isso. Cada um pode escolher. E na mágica dessa escolha exercer o poder irredutível que cada um possui para definir a si mesmo, em última instância.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861

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