Na noite do primeiro turno de 2022, quando já estava claro que Lula (PT) não tinha ido tão bem quanto esperado, com vantagem de apenas 5 pontos percentuais sobre Jair Bolsonaro (PL), Walter Pinheiro foi à internet dar “um recado para toda a esquerda brasileira”.
“Vocês vão chamar nós, os líderes evangélicos, para conversar de verdade ou vão continuar usando só a figura do Henrique Vieira como um totem?”, postou o pastor da progressista Igreja Betesda. “Vocês não vão vencer o bolsonarismo sem nós.”
Recado dado, mas, para especialistas de dentro e de fora dos templos, ainda tem chão até o campo assimilar plenamente a advertência para reconstruir pontes com o segmento, dinamitadas após dois movimentos xifópagos —a ascensão da luta identitária entre progressistas e de um conservadorismo mais estridente em templos já apegados ao que chamam de valores tradicionais da família.
O pleito acabou assim: Lula suou para vencer, com 2 milhões de votos a mais do que o rival, ninharia ante os 124 milhões de eleitores do segundo turno. Já Vieira, pastor que empolgou Gregorio Duvivier e outras personalidades alheias à fé evangélica, acabou eleito deputado federal pelo PSOL-RJ.
Passado o sufoco eleitoral, é em clima de cabra-cega que a esquerda tateia diante do azedume que se instalou contra ela entre boa parte dos evangélicos, outrora mais simpática a seus candidatos.
A dificuldade crônica em lidar com parcelas historicamente refratárias à retórica progressista persiste em outras redondezas, como segurança pública e agronegócio.
Não ajuda a dissipar essa desconfiança atitudes como Lula levar João Pedro Stedile, líder do MST, a um encontro com o presidente chinês, para ranço de ruralistas, ou dizer que havia “alguns fascistas” na Agrishow, maior feira de agro no país.
Também já insinuou que policial não é gente, gafe da campanha pela qual se desculpou depois. E seu governo pouco avança para “construir uma pauta positiva na área de segurança, que seja uma visão, digamos assim, alternativa ao bolsonarismo”, diz Rafael Alcadipani, da FGV e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Parece que a esquerda não quer lidar com o problema.” O outro lado, por sinal, é excelente em capitalizar o medo generalizado da violência.
A incompatibilidade de gênios ideológicos nunca facilitou uma união estável entre esquerda e esses polos. Mas a polarização piorou muito, segundo Alexandre Gonçalves. Líder dos cristãos trabalhistas no PDT, ele circula por esses meios todos. É pastor, policial rodoviário federal e de Santa Catarina, enclave bolsonarista. Embora reconheça que a animosidade entre as partes já cultiva rugas, aponta que a belicosidade hoje é nuclear.
Usa 1989 de exemplo: muitos pastores endossaram Fernando Collor, alguns poucos, Lula —Silas Malafaia, aliás, votou nele no segundo turno. “Mas todos conviviam tranquilos. A partir de 2010, começou a ficar inconciliável dois pastores de uma mesma igreja apoiarem um nome da esquerda, outro da direita.”
Para Gonçalves, o abismo dilatou na medida em que o Brasil começou a importar as pautas da nova esquerda americana. Enquanto a política canhota tradicional se estruturava a partir do conceito de luta de classes, a ala caçula abraçou embates ligados à identidade, que passam por feminismo, antirracismo e causas LGBTQIA+.
“Se você perguntar para o evangélico se ele quer ter saúde e escola pública de qualidade, direitos trabalhistas como férias, ele vai dizer que sim. É dessa forma que a esquerda consegue se conectar com as igrejas”, diz o pastor. “Mas se você inicia um diálogo com temas transversais, ainda que eles tenham a sua importância, isso acaba fazendo surgir um identitarismo de maioria. Isso faz muito bem à direita.”
São ideias erguidas sobre dogmas religiosos e fake news, como a de que a família brasileira (só vale a versão heteronormativa) e a liberdade religiosa correm perigo.
Ainda que customizado com temperos locais, o padrão é global, afirma o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV. “Temos as tensões entre uma esquerda tradicional, focada na dimensão econômica e de classe, e uma identitária, preocupada com a garantia dos direitos de grupos vulneráveis.”
No Brasil, o PT busca sintetizar essas duas linhas, “ainda que enfrente dificuldades”. Nos EUA, por exemplo, há clivagens no Partido Democrata entre figuras como Bernie Sanders, velha guarda, e Alexandria Ocasio-Cortez, a nova geração.
“Vemos uma dificuldade das esquerdas em geral em mobilizar eleitores em torno de pautas amplas. A utopia do passado, representada pelo socialismo, foi substituída por sentimentos como medo, ódio e ressentimento, ativados de maneira eficiente pela extrema direita, em particular de corte populista.”
Casarões vê ainda obstáculos de comunicação. O polo antagonista foi hábil “na ocupação precoce dos espaços digitais”, diz. Já a esquerda pena para “construir narrativas amplas de apelo às massas, para além dos grupos com os quais tradicionalmente dialoga”.
“Ao mesmo tempo, tragados pela polarização, muitos passaram a equivaler conservadorismo e fascismo, ostracizando parcelas significativas da população.”
A filósofa Márcia Tiburi, filiada ao PT, sintetiza essa postura ao lançar “Como Conversar com um Fascista?”, título que rotula dessa forma quem vota no oponente ideológico, ou sugerir que o dom de falar em línguas, central na fé pentecostal, é fajuto e popular entre “pessoas que não tiveram acesso a uma cultura”, como disse ao UOL.
Desde que voltou à Presidência, Lula tem feito acenos a esse quinhão religioso, como enviar inédita carta para justificar sua ausência na Marcha para Jesus e apoiar a ampliação da isenção tributária às igrejas na Reforma Tributária. Evangélicos de correntes diversas convergem num ponto: todo cuidado é pouco para não parecer oportunista, dando vazão à anedota de que alguns gestos na política são como Copa do Mundo, só aparecem de quatro em quatro anos, para o show eleitoral.
“Se se quer levar a sério o mundo evangélico, há que partir de respeito e abertura para ouvi-lo”, diz a bispa metodista Marisa de Freitas. “Quando um setor só é considerado como mais um meio para suporte eleitoral, jamais será legitimamente abordado. E, constatando que foi ‘usada’ a partir da sua fé, pode tomar um formato de bumerangue, com energia imprevisível.”
Há ainda tropeços típicos de muitos que até ontem pareciam querer tapar o nariz se cruzassem com um fiel na rua. Walter Pinheiro, o pastor que alertou colegas da esquerda a não ignorarem a força dos templos, menciona a força-tarefa de ministros que Lula criou para se reaproximar do campo. A estratégia incluiu reparti-lo em quatro abas: tradicionais, pentecostais, neopentecostais e de periferia.
“Essa divisão já contém equívocos. A maioria dos pentecostais e neopentecostais está na periferia, então não faz sentido separar os segmentos.”
Também não vale, segundo Pinheiro, ignorar evangélicos progressistas (ele se vê aí) e outros personagens relevantes na construção das narrativas públicas dos evangélicos.
Exemplifica: “O Movimento Dunamis liderou [em 2020] um evento chamado The Send Brasil e conseguiu aglomerar muitos jovens em três estádios. Contou com a presença da Damares Alves e Bolsonaro. Lideranças dessas comunidades carismáticas independentes passam batido das análises, pois não têm a caricatura agressiva do Malafaia, mas influenciam muito a opinião dos evangélicos sobre a política.”
Autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder” e colunista da Folha, Wilson Gomes se pergunta se o governo Lula será capaz de distensionar relações com o eleitorado conservador.
“É muito difícil imaginar que o governo e a militância lulista baixem a guarda e deixem de tratar o empresário que gera 30 empregos e luta para pagar impostos como ‘explorador’, de tratar o crente da periferia como ‘fundamentalista’, o setor rural como ‘fascista’. E do lado de lá virão predicados semelhantes, numa alimentação da inimizade que não parece ter fim.”
Anna Virginia Balloussier/Folhapress
Nenhum comentário:
Postar um comentário