É uma espécie de libertarianismo levado às ultimas consequências, em que todos os aspectos da sociedade devem ser privatizados – incluindo a administração pública, a polícia e até a justiça. Reportagem de Omar Godoy para a Gazeta do Povo:
Vencedor
das primárias argentinas, realizadas no último domingo (13), Javier
Milei “semeou” na grande imprensa uma palavra até então mais restrita às
bolhas políticas da internet: anarcocapitalismo.
Milei
se considera anarcocapitalista, ou ancap, como também são conhecidos os
entusiastas dessa vertente, digamos, mais radical do pensamento
liberal. Em linhas bem gerais, trata-se de um sistema filosófico,
político e econômico cujos princípios incluem a liberdade individual, a
propriedade privada, o livre mercado e, acima de tudo, a eliminação
total do estado.
Ou
seja, é uma espécie de libertarianismo levado às ultimas consequências,
em que todos os aspectos da sociedade devem ser privatizados –
incluindo a administração pública, a polícia e até a justiça.
Mais
do que uma escola de pensamento, o anarcocapitalismo hoje em dia se
configura como um movimento, quase uma contracultura de direita (com
seus institutos, livros, influenciadores e canais de discussão e
divulgação). O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro contou com vários
ancaps em suas fileiras, e nas redes sociais é possível identificar uma
quantidade significativa de jovens que aderiram a essa corrente.
O
economista e filósofo norte-americano Murray Rothbard (1926-1995),
ligado à Escola Austríaca, é considerado o principal teórico do
anarcocapitalismo e responsável pela criação do termo. Mas nomes como
Hans-Hermann Hoppe, Stephan Kinsella, David D. Friedman, Robert Nozick,
Ayn Rand e o casal Morris e Linda Tannehill também contribuíram ou são
influências decisivas para o desenvolvimento das ideias ancap. A seguir,
elencamos alguns tópicos elucidativos para os não iniciados no
movimento.
Anarquia?
Para
muitos críticos, especialmente os de esquerda, a simples ideia de
conectar os conceitos de anarquismo e capitalismo é bisonha – como se os
ancaps juntassem alhos e bugalhos, descontrole e rigor. É o típico erro
de quem não faz a lição de casa direito. Os dois sistemas compartilham,
em suas nomenclaturas, a raiz “anarco", derivada do grego “anarkhos”
(“sem governo”), que não tem nada a ver com bagunça ou desordem.
O
anarcocapitalista defende a existência de uma sociedade com
instituições, cooperação e governança. Porém, diferentemente do
anarquista clássico, o ancap crê que a propriedade privada é a principal
garantia da liberdade dos indivíduos.
Diferença entre anarcocapitalismo e libertarianismo
As
duas correntes têm em comum a ênfase na liberdade individual, na
propriedade privada e no livre mercado. Mas enquanto os ancaps desejam
que todas as funções do Estado sejam realizadas por entidades
particulares, os libertários tendem a aceitar um governo mínimo, capaz
de proteger os direitos básicos e necessários.
Costumes e questões morais
Em
geral, os anarcocapitalistas não entram em discussões de fundo moral.
Liberdade, autonomia e responsabilidade pessoal estão entre os pilares
do movimento. Um ancap pode até ser contra o uso de drogas, os
casamentos homoafetivos ou a mudança de gênero – mas jamais vão apoiar a
intervenção estatal em qualquer um desses assuntos. A única exceção diz
respeito ao aborto. Enquanto alguns entendem que a prática é uma
decisão da mulher (considerando a ideia de “propriedade corporal”),
outros veem a interrupção da gravidez como uma violação dos direitos
individuais de um ser humano em potencial.
“Se
você colocar quatro libertários em uma sala para debater, o único ponto
que vai gerar discórdia é o aborto”, diz Raphaël Lima, empreendedor,
criador do canal ‘Ideias Radicais’ (com mais de 650 mil inscritos no
YouTube) e uma das figuras que mais influenciam os ancaps brasileiros –
ainda que prefira ser chamado de libertário.
Administração de grandes crises
Sem
um governo central, é possível resolver ou conter problemas como
desastres naturais e epidemias? Para os ancaps, essa lacuna deve ser
preenchida com coordenação e cooperação. Empresas, comunidades,
organizações voluntárias e indivíduos podem se unir para organizar
ações, compartilhar recursos e definir acordos em prol das áreas e
pessoas afetadas. Um ponto controverso, aqui, é a dependência das
agências de seguros privadas – em um sistema anarcocapitalista, elas
seriam fundamentais para diminuir riscos e prejuízos.
A ciência em xeque
Os
anarcocapitalistas têm posições variadas com relação a temas polêmicos
envolvendo a ciência, como a existência de uma crise climática e a
eficácia das vacinas e dos lockdowns. Eles creem, por exemplo, que a
poluição é uma agressão e uma invasão à propriedade privada (“Quem mais
joga esgoto nos rios é o próprio Estado”, comenta Raphaël Lima). No
entanto, não compactuam com a teoria do apocalipse ambiental a médio ou
curto prazo.
Quanto
às vacinas, o grupo já se mostra bem mais dividido, e muitos
influenciadores ancap admitem publicamente não ter recebido nem a
primeira dose do medicamento contra a Covid-19. Mas todos, claro, são
enfaticamente contra qualquer tipo de imunização obrigatória.
O que isso tem a ver com Bitcoin?
Tudo.
Por circularem em redes descentralizadas, independentes de bancos ou
governos, as criptomoedas vão diretamente ao encontro dos princípios de
autonomia valorizados pelos ancaps. Além disso, possibilitam a
privacidade nas transações e, ao menos em tese, possuem caráter
deflacionário (entre outros motivos, por não estarem submetidas à
manipulação da oferta monetária operada pelo Estado).
Principais questionamentos
As
preocupações mais comuns com relação ao anarcocapitalismo dizem
respeito à falta de proteção para as comunidades mais vulneráreis e ao
meio ambiente, à facilidade da criação de monopólios econômicos e ao
risco de não haver mais ordem social e justiça. Para os que não
acreditam na viabilidade dessa filosofia, há uma imensa desconexão entre
os ideais ancap e a complexidade e o desafios práticos da vida
contemporânea.
Utopia x realidade
Ainda
não existem exemplos concretos de países, cidades ou territórios
realmente anarcocapitalistas – o que, para muitos, é o suficiente para
classificar esse sistema como um delírio utópico. Libertários como
Raphaël Lima, no entanto, contestam o uso dessa expressão. “Se a
definição de utopia é uma sociedade planejada e idealizada, o
anarcocapitalismo se coloca totalmente como o contrário disso. Ele é uma
antiutopia, pois não quer desenhar ou impor um modelo para o futuro”,
afirma.
“Outra
definição de utopia é algo que nunca vai se realizar. Mas se você
pudesse voltar no tempo, em 1512, e perguntar para uma pessoa se um dia a
escravidão acabaria, ela com certeza iria te achar um maluco, porque
não entraria na cabeça dela que isso pudesse vir a acontecer”, conclui.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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