Reclamam-se leis, polícias, quotas, regulamentos, multas, sanções e campanhas de esclarecimento pagas com dinheiro público, nas quais se estabeleça como indiscutível certa maneira de ver as coisas. José Meirelles Graça para o Observador:
Foi,
salvo erro, em 20 de Agosto que Luis Rubiales beijou na boca Jennifer
Hermoso. De imediato as redes sociais e os meios de comunicação
explodiram em críticas e protestos, não apenas em Espanha mas em quase
todo o lado. Não fui conferir (nem podia: googlando “caso Rubiales” há
minutos obtive 100.000 resultados) se naqueles países, e são muitos, em
que as mulheres têm um estatuto legal de inferioridade se comentou
furiosamente, como aqui; e é claro que não terá havido nesses países
artigos indignados a pôr o caso nos cornos da Lua e a reclamar
intervenção dos poderes para punir o criminoso.
Confesso
que gosto destes estrugidos. Enquanto as polémicas giram à volta de
coisas menoríssimas e não guerras, terramotos, tufões, cancros, fomes,
golpes de Estado, prisões, o diabo a sete, sempre a gente se diverte.
Julguei
que a coisa fosse durar três dias até ser substituída por uma ministra
surpreendida a trair o marido com um agente a soldo de uma potência
estrangeira, ou um diplomata enlouquecido a prestar declarações em
pelota no Iémen, ou um chefe de Estado a dar conferências de imprensa
enquanto muda de calções, ou uma das trinta mil maneiras dos famosos
asneirarem para o efeito dos anónimos se esgotarem em condenações. Mas
não, passado este tempo todo o caso ainda não esmoreceu e vejo com
espanto amigas (umas unilaterais, que são aquelas de quem gosto e não me
podem ver, outras as que ainda não são mas têm potencial para vir a
ser, as que são mas contam com o perdão de Deus porque o meu já têm, e
finalmente as raríssimas que têm lugar cativo no altar da minha
admiração) a abundarem em considerações, todas no mesmo sentido: ai
Jesus que ainda falta muito caminho para percorrer, e o tal Rubiales
nunca se atreveria a fazer o que fez se não vivêssemos numa sociedade
patriarcal – no futebol, nas empresas, na política, no Estado e, não
dizem mas suspeito, na cama.
Isto
e mais dizem elas, e reclamam leis, polícias, quotas, regulamentos,
multas, sanções e campanhas de esclarecimento (pagas com dinheiro
público, como é de uso para causas nobres) nas quais se estabeleça como
indiscutível esta maneira de muitas delas de ver as coisas, e como
negacionista quem tenha pontos de vista diferentes.
Alguns
tipos mais corajosos, ou descarados, verberam o exagero, os efeitos
perversos e as contradições que muitos “estudos” encerram, como é normal
em ciências sociais. Por exemplo, o argumento de que foi por causa de
quotas de mulheres na administração de empresas que estas melhoraram o
desempenho implica que as gestoras detenham alguma forma de
superioridade sobre os gestores – coisa que infirma o princípio da
igualdade. De caminho, naquelas profissões ou actividades em que elas já
tenham superioridade numérica, como juízes ou licenciaturas na maior
parte dos cursos, não haverá, credo, lugar a quotas porque há que
compensar o desequilíbrio global.
Quanto
aos amigos, não faltam os que se confessam feministas, muitos de
boa-fé, que o Santíssimo a releve, e outros porque querem agradar ao
belo sexo e são intensamente modernos, como se nota pelas sapatilhas de
marca e pelo paleio consensual.
Passados uns dias, e atónito com a algaraviada, escrevi isto numa rede:
O
caso Rubiales, a mim, embaraça-me porque se transformou num assunto
esquerda/direita e eu, como sou um reaccionário do piorio, pendo
automaticamente para o lado são do espectro. Tanto mais porque não
ignoro que o incidente só está rodeado desta grande barulheira porque
encaixa no padrão opressor/vítima que a esquerda cavalga automaticamente
por ser defensora do amanhã da igualdade absoluta, que toma por destino
desejável. Isso, porém, leva-me a defender um grunhozito sem maneiras.
Não merecia no momento em que abusou mas merece agora porque querem
pendurá-lo, para exemplo, por um deslize que nem de longe merece o
griteiro da turba virtuosa.
Como
sumário, perdoe-se-me a imodéstia, não está mal. Falta porém esclarecer
de onde vêm estes reflexos condicionados sobre as vítimas e a opressão e
porque entram neste incidente as clivagens políticas.
Houve
um tempo em que o processo histórico se explicava pela luta de classes e
havia os que detinham meios de produção – os opressores – e os que
vendiam o seu trabalho – os oprimidos. Durante longas décadas a maior
parte dos intelectuais rezou por esta cartilha e o povo necessitava das
luzes da vanguarda para descobrir o seu próprio interesse, coisa
muitíssimo difícil porque tinha a cabecinha formatada pela propaganda
dos capitalistas e pela tradição.
Bons
tempos da nitidez. Que começaram a ruir com a invasão da Hungria em
1956, com a Grande Fome da China em 1958-1961 e a invasão da
Checoslováquia em 1968, além de outros desastres (a lista é extensa), o
que tudo culminou com a implosão do Sol na Terra, e mãe do Homem Novo,
que era a URSS, em 1990-1991.
Todavia,
o apelo da sociedade perfeita, isto é, aquela em que há progresso
material, mas igualmente distribuído, e onde ninguém se sente diminuído
porque não há superioridade alguma, não morreu.
Como
fazer, porém? A propriedade colectiva dos meios de produção, o partido
único, a revolução, passaram de moda. E no seu lugar os mesmos
vanguardistas do antigamente puseram, no lugar dos capitalistas, o
opressor, e no dos trabalhadores, o oprimido.
Quem
são os oprimidos? São todas as minorias nas nossas sociedades (pretos,
muçulmanos, trabalhadores de salário mínimo, imigrantes, LGBTs sortidos,
etc.) e, grande novidade, também maiorias, se quanto a estas se puder
perceber que estão desavantajadas na partilha do bolo comum do poder,
dos benefícios e dos sacrifícios. Isto é, as mulheres.
Um
grande negócio eleitoral, já que são maioria. O drama é que, como
dantes sucedia com o povo ignorante, elas não se deixam convencer e
tendem a clivar-se politicamente como os homens.
Suspeito
que a maioria das mulheres dirá para os seus botões que tudo isto é
much ado about nothing. E mesmo que haja muitas que não engordam as
fileiras da esquerda e nem por isso deixam de fazer, quando provocadas
por um abuso qualquer, um grande berreiro nos jornais, daí não decorre
que o campeão da engenharia social vanguardista, no nosso caso o BE,
ganhe eleitoralmente muito com isso.
Falta
nitidez, é o que é. Dantes havia comunistas e fascistas, agora é uma
grande confusão: os bloquistas declaram um acendrado amor à democracia
antigamente burguesa e chegam a confessar-se social-democratas. O que
não os impede de reivindicar que, via impostos, toda a gente rica deixe
de o ser e que todos os que para isso se esforçam sejam voluntariamente
coagidos a partilhar o fruto do seu labor.
Temos
então que o MeToo começou a arribar às nossas praias, como chega tudo o
que é mau e parte do que é bom. Numa versão edulcorada, que aqui é
gente pacífica. Sem que porém, em organismos inúteis sustentados com o
dinheiro do contribuinte, como a Comissão para a Igualdade de Género, em
iniciativas legislativas e em declarações de responsáveis, não se
manifeste o unanimismo das causas do dia. Nas democracias modernas a
maioria escolhe os governos e estes deixam-se influenciar pela
comunicação social, a qual é uma câmara de eco dos activistas. É o que
temos.
Já
agora: Que vivam as mulheres. Desde que começou a ser um adquirido
civilizacional a igualdade entre os sexos, onde foi, começou um longo
caminho para a atingir. A qual, se entregue a ela própria, evoluirá
naturalmente como naturalmente já está a acontecer há muito.
Conviria, para evitar exageros, tanto nas medidas como na reacção, não empurrar.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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