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Henry Kissinger é um exemplo do alcance estratégico do papel da palavra do intelectual na vida pública. Artigo de Celso Lafer, publicado pelo Estadão:
Henry
Kissinger, aos cem anos, é caso único no cenário diplomático
internacional. Sabe sempre mesclar a capacidade de pensar com a de
indicar rumos do agir. Reuniu com sucesso reflexão e ação no exercício
do poder.
É
também caso singular de quem, tendo deixado de exercer diretamente a
gestão da diplomacia norte-americana, nunca deixou de ter nas décadas
subsequentes às presidências Nixon e Ford relevante poder de influência.
Em seus livros pós-governo, aprofundou seus temas recorrentes, como o
papel das personalidades e da liderança na condução da política externa e
do significado da China. Enfrentou o “novo” na dinâmica da ordem
mundial, proveniente do advento da era digital e da inteligência
artificial.
Kissinger
é um exemplo do alcance estratégico do papel da palavra do intelectual
na vida pública. Sua duradoura trajetória, no entanto, mais do que a de
qualquer outro no seu campo, suscita tanto a animosidade das paixões
quanto o sentimento de admiração.
A
admiração está presente entre os que reconhecem a alta envergadura de
sua obra de pensador e nos que exercem responsabilidades na condução da
política externa e prezam a destreza do seu domínio do ofício
diplomático.
A
animosidade provém de facetas de seu exercício de poder, norteado pela
perspectiva organizadora dos interesses mundiais de uma grande potência.
Um país, como ele disse, que exige a perfeição moral na condução de sua
política externa não obterá nem a perfeição moral nem a segurança.
Daí
o seu realismo que não é autocentrado. Tem pontos de contato com o de
Morgenthau, que o antecedeu como estudioso da política entre as nações e
de participante da agenda pública de seu debate.
Soube
apreciar nas suas elaborações a interlocução com Raymond Aron e
valorizar a qualidade analítica de sua obra e do seu papel de observador
participante da política internacional.
Seu
realismo parte do reconhecimento das complexidades e da análise da
efetiva relação existente de forças e de poder, e do que ensinam as
lições da História pelo discernimento da validade das analogias.
Caracteriza-se pela afirmação da diplomacia e sua função na acomodação
de interesses num quadro comum de referências, no qual destaca que a
busca da segurança absoluta de um Estado gera a instabilidade da
insegurança relativa dos demais. Daí sua permanente preocupação em
conter os riscos de uma guerra nuclear. Levou em conta de maneira
generalizada no seu trato diplomático com atores internacionais a
especificidade dos seus interesses e a variedade dos estilos de
negociação.
Na
condução da política externa, está sempre latente o uso da força. No
caso de Kissinger, foram as suas decisões sobre o uso da força e as suas
consequências que geraram hostilidades.
Antonio
Candido, ao tratar do mando e transgressão no Ricardo II de
Shakespeare, adverte: “Não se manda impunemente”. Daí as vigorosas
críticas a Kissinger pelas violações dos direitos humanos que resultaram
do apoio dado à derrubada de Allende, no Chile, e o respaldo a
Pinochet, na lógica da guerra fria. Também foram contestadas as decisões
do bombardeio ao Camboja e Vietnã e do prolongamento da guerra na
região, situações nas quais os custos humanos foram deixados de lado
para sustentar a credibilidade dos EUA.
As
animosidades não obscurecem suas bem-sucedidas e inovadoras realizações
de ator diplomático. Seu maior e inconteste sucesso foi a aproximação
dos EUA com a China, que assinalou o fim da ordem bipolar criada em
Yalta e cujos desdobramentos são um dado da atual cena internacional.
Kissinger
discute sua gestão nos substanciosos, bem documentados e bem escritos
volumes de suas Memórias. Estas inserem os fatos numa visão global dos
acontecimentos. Combinam o impulso de se explicar e se defender,
pontuando que a perspectiva do ator permite esclarecer, na vastidão dos
documentos disponíveis, quais os temas que efetivamente influenciaram o
processo decisório à luz dos eventos.
Aponta
que o exercício de altas responsabilidades governamentais ensina a
decidir, mas não o que decidir. A substância das decisões tem o lastro
das intuições e conhecimentos das coisas de quem decide. No seu caso,
foi o domínio do campo das relações internacionais e de uma visão
estratégica que não circunscreveu sua ação apenas ao curto prazo da
agenda dos acontecimentos e das rotinas burocráticas. Diferenciava a
urgência e as imprecisões do tempo da decisão no calor da hora do tempo
mais longo da reflexão acadêmica.
Concluo
realçando a envergadura clássica de seu livro Diplomacia. Nele, retoma
os fatores de estabilidade e instabilidade da ordem mundial na
perspectiva da sempre precária segurança dos Estados no mundo. A estes
temas dá renovada abrangência com o fundamento dos seus conhecimentos de
grande universitário, vivificado pela sua experiência de homem de
Estado.
Kissinger
tem na sua vida o corajoso sentimento de suas próprias forças. Subjaz
em surdina na sua leitura do mundo o trágico da história, fruto, na sua
formação, da experiência do nazismo.
Postado há 2 weeks ago por Orlando Tambosi
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