BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nunca
encaramos um hospital como um lugar para irmos morrer. Nunca olhamos um
médico como alguém que nos tira a vida. Nunca vimos o suicídio como ato
que devemos ajudar ou em que devemos ser ajudados. José Ribeiro e
Castro para o Observador:
1
Há um mês, logo após a aprovação da lei da eutanásia na Assembleia da
República, escrevi um artigo criticando a má sorte do artigo 24.º, n.º 1
da Constituição (“A vida humana é inviolável.”), que jaz morto e
enterrado. Intitulei-o de Requiem pelo artigo 24.º . É um facto que poderá ter terríveis consequências.
Rever
a Constituição para remover esse obstáculo e, a seguir, fazer a lei que
aprovaram não é a mesma coisa que aprovarem esta lei, fazendo de conta
que o obstáculo não estava lá. Se se revisse a Constituição para
acomodar o propósito legislativo, alguma coisa nova teria ficado na
Constituição com valor de garantia. Assim, deixando-se a Constituição
como está, mas ignorando-se o que lá está, ficámos sem a mais leve
garantia em matéria de vida humana.
Quanto
ao direito à vida e à Constituição, entrámos em regime fora-da-lei. No
futuro, pode imperar o arbítrio, segundo as concepções que, a cada
momento, o poder estabelecido subscrever e impuser. A porta ficou
aberta. Deixou de haver limite constitucional – o que lá está deixou de
ter préstimo. O processo legislativo mostrou falta de respeito pelo
comando “a vida humana é inviolável” e não houve sequer o cuidado de o
ponderar. Esse respeito não voltará, a menos que seja expressamente
resgatado. Triunfou a jurisprudência da indiferença.
2 O
meu artigo suscitou, em publicações electrónicas, alguns comentários
reveladores, que tomo como representativos de uma visão diferente da
minha.
O
leitor Gil Teixeira comentou-me: “Estimado, vou começar a rezar para
que um dia não seja confrontado com um estado de saúde pessoal terminal,
sofrendo lancinantemente, e queira antecipar a partida com recurso a um
método não doloroso.”
Bento
Guerra (que creio não ser nome verdadeiro) escreveu: “Manipulam e
deturpam o sentido da lei, que é o de descriminalizar os profissionais
que intervêm no abreviar da morte, a dar-se antes que o Deus deles
“decida”. Com gente desta, uma sociedade não progride.”
E
Jorge Lopes argumentou: “100% favorável à Eutanásia e/ou ao suicídio
assistido em determinadas situações… Ninguém com esta lei vai contra o
direito à vida, apenas dá a possibilidade a quem esteja numa situação de
doença incurável e mortal no curto prazo de pôr termo ao seu sofrimento
de forma confortável ao morrer sem sofrimento e num momento pelo
próprio decidido.”
Todos
os três acreditam que a lei vai ao encontro do pedido de alguém que, em
sofrimento tremendo, com doença fatal e a morte à vista, quer a
antecipação da morte. O primeiro: “estado de saúde pessoal terminal,
sofrendo lancinantemente, e queira antecipar a partida”. O segundo:
“descriminalizar os profissionais que intervêm no abreviar da morte”. E o
terceiro: “situação de doença incurável e mortal no curto prazo de pôr
termo ao seu sofrimento”.
Vêem-se
as consequências de esta lei não ser uma lei democrática. O PS, tendo a
lei em apreciação desde 2015 a 2023, cometeu a proeza de nunca a levar à
apreciação democrática, fosse nas eleições legislativas (em que sempre a
esconderam), fosse em referendo (que sempre rejeitaram). Não
surpreende, por isso, que os cidadãos – mesmo entre os mais atentos e
informados – não conheçam o que foi realmente aprovado e se prepara para
entrar em vigor.
Agora, com o texto da lei já publicado (Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio),
podemos falar da letra de lei e não de projectos, conjecturas,
intenções, narrativas. O essencial da previsão legal é a “morte (…) por
decisão da própria pessoa, (…) em situação de sofrimento de grande
intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e
incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” A
lei deixou de ter qualquer foco na doença fatal, afastou a necessidade
de proximidade da morte e enxotou em absoluto as menções à “antecipação
da morte”.
Aqueles
cidadãos que me interpelaram têm ainda no espírito a previsão do
projecto de lei do PS em 2018: “a antecipação da morte por decisão da
própria pessoa, (…) em situação de sofrimento extremo, com lesão
definitiva ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por
profissionais de saúde.” Nada a ver com a lei de hoje.
Era
ainda a previsão que, no início de 2021, constava do primeiro texto
aprovado pela Assembleia da República: “antecipação da morte (…) por
decisão da própria pessoa, (…) em situação de sofrimento intolerável,
com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por
profissionais de saúde.” Todo o procedimento era ainda designado de
“antecipação da morte”, ocorrendo em quadro de “sofrimento intolerável”
e, em caso de doença, devia ser “incurável e fatal”.
Mas
já não era exactamente a previsão no segundo texto aprovado, no final
de 2021: “morte (…) por decisão da própria pessoa, (…) em situação de
sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou
doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais
de saúde.” Mantinha-se, nos casos de doença, a previsão de ser
“incurável e fatal”, mas haviam sumido a ideia e as palavras de
“antecipação da morte”.
Em
2023, na lei publicada, desapareceu o resto: além de não estarmos num
quadro de morte à vista (e, muito menos, iminente), a doença passou a
ser “grave e incurável”, sem necessidade de ser “fatal”. Por seu turno, o
sofrimento foi também sucessivamente atenuado: em 2018, “extremo”; em
2021, “intolerável”; na lei de 2023, “de grande intensidade”.
As
pessoas que pensam como Gil Teixeira, Bento Guerra e Jorge Lopes, estão
enganadas, porque foram enganadas por quem fez esta lei. Esta não se
destina só a doentes terminais, em sofrimento lancinante, que peçam a
antecipação da morte. A lei já nem foca sequer estas situações, abrindo a
administração da morte a uma gama de casos muito mais vasta.
3
As perguntas que se mantêm são estas: Alguém ouviu uma explicação de
porquê e para quê se abandonou a ideia central de “antecipação da
morte”? Alguém ouviu por que razão se afastou a previsão de “doença
fatal”? Alguém ouviu os fundamentos para, consecutivamente, se atenuar o
grau do sofrimento? A resposta é simples: ninguém ouviu, porque ninguém
explicou. Nunca esqueçamos o essencial: esta lei não é uma lei
democrática. Tudo pôde ser feito sem discutir com os eleitores e,
portanto, sem necessidade de explicar o essencial.
O
emblema parlamentar deste processo é a Assembleia da República, em
plenário, ter dedicado meia hora para aprovar uma das últimas versões da
lei, como contou o Expresso:
“a quarta versão da legalização da eutanásia só foi distribuída no
Parlamento na quarta-feira e a agenda desta sexta tem 30 minutos para o
debate.” Estamos longe da Assembleia da República dos “bons velhos
tempos”. Hoje, reina o império das grelhas, que comprime o debate
democrático e não autoriza debates alargados, em dois ou três dias, para
discussão exaustiva de questões mais profundas, sensível e complexas.
A
problemática mais sensível das leis da eutanásia é, como se sabe, a
“rampa deslizante”: a primeira lei, mais restrita, abre uma alameda por
onde novas leis vão alargando consecutivamente o seu objecto e ampliando
o campo de aplicação.
Os
promotores desta legislação em Portugal ou negam este risco, ou
procuram fugir-lhe. Mas a rampa deslizante é uma dinâmica tão inerente a
esta legislação que, mesmo antes de termos lei, os conceitos
escorregaram rampa abaixo de 2018 para 2021 e, depois, de 2021 para
2023, como mostrei acima. Teresa de Melo Ribeiro abordou exaustivamente
este facto no artigo A eutanásia já está a deslizar pela rampa abaixo e ainda nem a lei viu as trevas do dia e eu também o abordei no artigo A hora da morte. Tratarei da rampa deslizante noutro artigo, amanhã, para vermos o que nos espera.
Aqui,
quero chamar a atenção para estarmos num ponto de mudança de
civilização. Leis como esta (e outras similares, aprovadas desde o
princípio do século no mundo ocidental) indiciam claramente a mudança.
Sabemos como a atitude perante a morte, que influencia a atitude perante
a vida, e vice-versa, integra o núcleo central dos valores de uma
civilização e alimenta os seus tabus. Ora, pela primeira vez na
História, colocamos a provocação da morte na linha do que é disponível e
a organizar a sua administração pela sociedade e pelo Estado num certo
quadro de conveniências. E também pela primeira vez na História, o
Estado prescreve e impõe que este serviço é assegurado, não por
profissionais específicos, separados da classe médica, mas como
prestação médica e dentro do sistema de saúde.
Nunca
aconteceu uma mudança tão profunda e tão radical. Em Portugal, acontece
porque o artigo 24.º da Constituição foi violado – salvo se os pedidos
de fiscalização sucessiva da constitucionalidade da lei surtirem efeito
positivo. Noutros países, tem acontecido por decisões políticas e
jurídicas do mesmo tipo e, depois, pela dinâmica imparável da rampa
deslizante. A nova civilização gera uma nova cultura, que puxa
continuamente para diante, cavalgando a disponibilidade sanitária da
morte. É a nova resposta para velhos, doentes, acidentados,
incapacitados, pobres.
Ainda
não conseguimos conhecer tudo da nova civilização. É muito diferente,
mesmo radicalmente diferente do que sempre conhecemos. Nunca encarámos
um hospital ou uma clínica como um sítio para irmos lá morrer. Nunca
olhámos um médico como alguém que nos tira a vida. Nunca encarámos o
suicídio como acto que devemos ajudar ou em que devemos ser ajudados.
Nunca (ou só muito raramente) fizemos certa a data da morte. E é também
muito diferente o quadro de valores dessa nova civilização, de que já se
vê alguma coisa. É preciso prestar atenção ao que se passa noutros
países, porque é para aí que estamos a ser empurrados.
Postado há 2 weeks ago por Orlando Tambosi
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