terça-feira, 27 de junho de 2023

Ofensiva ou contraofensiva? E faz diferença?

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Há meses que defendo a necessidade de acabar com algumas linhas vermelhas artificiais no emprego de armamento de maior alcance. Até aqui não se pode ou não se quis fazê-lo. É urgente fazê-lo agora. Bruno Cardoso Reis para o Observador:


Há quem fale em ofensiva ucraniana e há quem fale em contraofensiva ucraniana. Quem tem razão? E isso faz alguma diferença ou é só um preciosismo? Defendo que estamos a assistir a uma ofensiva ucraniana e não a uma contraofensiva e isso faz muita diferença, que ajuda a deixar clara a enorme ambição e dificuldade dos objetivos da Ucrânia nesta fase crítica do combate à invasão russa. A história mostra-nos que é mais difícil obter resultados rápidos com uma ofensiva contra linhas defensivas consolidadas, do que com uma contraofensiva contra um exército atacante relativamente esgotado.

A gíria

No meio militar, como no meio académico, existe uma preocupação com a correção terminológica que percebo possa ser irritante. É preciso perceber que convém não haver equívocos em combate, e o rigor duma análise passa pela precisão no uso dos conceitos. Também é verdade que esta preocupação pode ser levada longe demais, até porque raramente há conceitos completamente consensuais. Em muitas profissões e meios há, na verdade, a utilização da linguagem sobretudo como marca de identidade. Falar de certa maneira identifica-nos como parte do grupo. O vocabulário e o sotaque “certo” mostram que somos alfacinhas ou portuenses, somos realmente nativos do Minho ou do Alentejo. E o mesmo se passa com várias profissões e a respetiva gíria.

Um exemplo disso é a preocupação no Exército português em falar-se sempre em carros de combate e nunca em tanques. Quando estou em instituições militares portuguesas procuro respeitar esse vocabulário, até para facilitar a comunicação. Mas para quem, como eu, fez boa parte da sua formação nesta área fora de Portugal, essa é uma distinção pouca substantiva. O termo carros de combate não existe em inglês: armoured cars é sinónimo de veículos blindados. E na língua franca da segurança internacional o termo tanks está perfeitamente consagrado. A ponto de os britânicos até terem um Tank Museum e grande orgulho no Royal Tank Regiment, como a mais antiga unidade deste tipo no mundo.

Uma contraofensiva versus uma ofensiva

O que distingue substantivamente uma contraofensiva de uma ofensiva “normal”? Uma contraofensiva deve corresponder a um ataque em grande escala do beligerante que até aí está essencialmente à defesa e espera pelo culminar da ofensiva do outro lado. Ou seja, espera pelo momento em que as forças do inimigo estão a atingir o limite do seu potencial ofensivo, a ficar esgotadas em termos de resistência física e capacidade logística. A primeira vantagem de uma contraofensiva é o choque psicológico. O lado que está a atacar quer acreditar que está prestes a quebrar completamente a resistência do inimigo. De repente, não só o inimigo já não está a recuar, como, pelo contrário, está a atacar com força renovada. A segunda vantagem de uma contraofensiva é tirar partido do do facto de o atacante não ter tido tempo ou vontade de investir em fortes posições defensivas, precisamente porque estava a avançar.

A única zona da frente onde a Ucrânia poderia fazer uma contraofensiva seria na zona de Bakhmut. Mas mesmo aí os avanços russos foram tão lentos e tão contestados que a ideia de ausência de defesas preparadas parece duvidosa. Mais, ao falar desta ofensiva ucraniana convém começar por recordar a enorme assimetria de poder de base entre a Rússia e Ucrânia: estamos a falar, respetivamente, da 11ª economia mundial e da 53ª. Estamos a falar de uma população russa em torno dos 140 milhões face a pouco mais de 40 milhões de ucranianos. Estamos sobretudo a falar, do lado ucraniano, da tentativa de romper as mais densas linhas defensivas na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, sem uma clara superioridade no domínio aéreo ou naval, bem pelo contrário. Os EUA no Iraque, em 1991 e em 2003, por exemplo, puderam avançar com uma guerra de movimentos sem grandes dificuldades, por contarem com uma enorme vantagem a todos os níveis, do treino ao equipamento, e porque tinham total domínio aéreo, permitindo identificar e destruir facilmente as concentrações de forças do inimigo. As possibilidades de a Ucrânia flanquear as linhas defensivas russas também são reduzidas, desde logo por causa desta ausência de grandes capacidades navais ou aéreas. E ficaram ainda mais reduzida pelo rebentamento da barragem de Kakhovka. O que a Ucrânia tem conseguido fazer é raides usando milícias russas anti-Putin para desviar algumas tropas russas da frente para proteger a zona fronteiriça. Será que conseguirá multiplicar estes e outros ataques, sabotagens, emboscadas na retaguarda do inimigo? Para já elas não parecem ser numa escala decisiva, no sentido de precipitar aquilo que seria o objetivo principal da Ucrânia – provocar o colapso da resistência organizada russa.

O que se segue?

Nestas duas últimas semanas estive em dois eventos com outros colegas dedicados à história militar e aos estudos de segurança, no Instituto Universitário Militar e na Universidade de Lancaster. Em ambos os casos houve amplo consenso – o que é raro – no facto de que, se os ucranianos tiverem um grande e rápido sucesso nesta sua ofensiva, estaremos perante o maior feito militar desde a Segunda Guerra Mundial. O que nunca foi realista foi pensar que uma guerra deste nível de intensidade, em que estão em causa objetivos vitais para ambos os lados – a sobrevivência duma Ucrânia livre, a sobrevivência do regime de Putin e de todos os que vivem dele – seria resolvido sem uma fase de atrição, de desgaste, de perdas significativas de vidas e de equipamentos.

A Ucrânia tem a lei internacional do seu lado e já alcançou vitórias importantes face a uma agressão brutal por uma grande potência nuclear. Mas ter toda a razão não garante a vitória total numa guerra.

Não estou com isto a decretar a derrota da ofensiva ucraniana. Recordo que contrariei nas primeiras semanas da guerra os que declaravam uma clara vitória da Rússia ou da Ucrânia, ou os que depois anunciavam a inevitabilidade de um acordo de paz para a semana seguinte. Fui avisando que era provável uma guerra prolongada. Não há nenhuma ofensiva na história, numa frente tão ampla, cujo resultado tenha ficado claro e irreversível nas primeiras horas ou mesmo nos primeiros dias. Para a Ucrânia alcançar resultados significativos precisa de romper linhas defensivas russas, e precisa de um colapso pelo menos parcial da frente, para evitar cair numa atrição prolongada. Se não o conseguir nas próximas semanas, o Ocidente deve ponderar mudar a sua abordagem. Há meses que defendo a necessidade de reforçar o poder aéreo (e naval) da Ucrânia – e não precisa ser com jatos ou fragatas – e de acabar com algumas linhas vermelhas artificiais no emprego de armamento de maior alcance. Até aqui não se pode ou não se quis fazê-lo. É urgente fazê-lo agora. Seja para melhorar as possibilidades de sucesso da ofensiva ucraniana, seja para reforçar a posição da Ucrânia em eventuais negociações para as quais Kiev será provavelmente mais pressionada à medida que o verão avance e o outono chegue.
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