BLOG ORLANDO TAMBOSI
A cassação de Deltan Dallagnol desrespeita a vontade do eleitor e fragiliza a confiança na Justiça Eleitoral. Wilson Lima para a revista Crusoé:
A
democracia brasileira sofreu um abalo esta semana. Não por meio de
depredações ao prédio do Congresso ou de um quebra-quebra generalizado
na sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. A democracia foi
golpeada por meio de uma decisão judicial, como é de praxe em repúblicas
mambembes.
O
indeferimento do registro de candidatura do deputado federal Deltan
Dallagnol (Podemos-PR) nesta terça, 16, representou, de forma límpida, a
vingança do proverbial “sistema” contra a Operação Lava Jato. Mais de
344 mil eleitores tiveram seus desejos desconsiderados por uma votação
de sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral que durou um minuto e
seis segundos. Para a decisão ser proferida, o tempo também foi recorde:
menos de dois minutos. Anulou-se a vontade popular expressa nas urnas
com uma sentença apressada e baseada em conjecturas e nada mais. Lula
livrou-se dos tribunais mesmo diante de um calhamaço de provas e
documentos. Dallagnol perdeu o mandato sem uma prova sequer.
Durante
o julgamento, o corregedor-geral eleitoral, Benedito Gonçalves, relator
da ação, argumentou que o então procurador renunciou ao cargo para
impedir que 15 procedimentos prévios contra ele se tornassem Processos
Administrativos Disciplinares (PAD), que hipoteticamente poderiam
resultar em demissão. Ele enquadrou o ex-parlamentar no artigo 1º,
inciso I, letra “q” da Lei Complementar 64/1990 – também conhecida como
Lei da Ficha Limpa. E, por essas coincidências da vida, a redação desse
trecho foi sugerida pelo hoje ministro da Justiça, Flávio Dino, quando
ele era deputado federal.
Esse
item da Lei da Ficha Limpa prevê o seguinte: ficarão inelegíveis, por
oito anos, “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem
aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham
perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou
aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo
disciplinar”. Na visão de Benedito Gonçalves, seguida pelos outros seis
ministros – entre os quais, o ultragarantista Kassio Nunes Marques –
Deltan pediu exoneração em 5 de novembro de 2021 para manter seus
direitos políticos intactos.
Só
que alguns detalhes chamam a atenção. Na época, essas investigações
prévias (que nem sempre se tornam procedimentos administrativos,
diga-se) tramitaram no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a
partir de denúncias de personagens como o senador Renan Calheiros
(MDB-AL), o ministro do STF Dias Toffoli, a presidente do PT, Gleisi
Hoffmann, o hoje ministro das Comunicações, Paulo Pimenta, entre outros.
E eis um resumo ao cerco a Deltan: desde 2016, ele foi alvo de 52
denúncias no CNMP – aproximadamente 30 delas já arquivadas.
E
havia um pouco de tudo. Desde reclamações sobre verdades que Deltan
disse em entrevistas – como uma concedida à CBN em que ele declarou que o
STF, ao transferir a competência de parte da Lava Jato para a Justiça
Federal do DF, passava uma “mensagem muito forte de leniência a favor da
corrupção” – até acusações estapafúrdias de que ele enriqueceu fazendo
palestras ou embolsando diárias concedidas ao longo da Operação Lava
Jato. Sobre esse caso especificamente, a decisão do Tribunal de Contas
da União (TCU) que determinou a Deltan o reembolso de R$ 2,5 milhões por
supostas irregularidades na concessão de diárias, foi reformada pela
Justiça Federal do Paraná.
Outro
ponto curioso: o então procurador pediu exoneração em novembro de 2021,
quando ainda não havia nenhuma circunstância concreta que lhe
garantisse a candidatura a deputado federal. Somente depois disso é que
partidos políticos encetaram conversas com Dallagnol. Ele se filiou ao
Podemos no final daquele ano de 2021.
Mesmo
assim, o corregedor-eleitoral entendeu que houve tentativa de fraude
processual por parte de Deltan. “O objeto da controvérsia em apreço não
é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se
conferir interpretação ampliativa ao termo ‘processo administrativo
disciplinar’. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao
Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à
lei”, afirmou Gonçalves. Enfim, na sua interpretação, Deltan deixou o
Ministério Público porque não queria ser condenado em Processos
Administrativos Disciplinares que jamais foram instaurados. Em vez da
presunção de inocência, uma garantia de qualquer cidadão brasileiro,
Gonçalves entendeu que Deltan era culpado, mesmo sem ter havido qualquer
decisão nesse sentido.
O
que Gonçalves fez, embora negue isso, foi dar uma interpretação
ampliativa da lei. Com isso, ele fez o oposto do que se espera no
direito, que manda que as normas que restringem direitos devem ser
interpretadas de forma restritiva. “Tinha Processo Administrativo
Disciplinar nesse caso do Deltan Dallagnol? Não. Aí o Tribunal Superior
Eleitoral interpretou. Não tinha Processo Administrativo Disciplinar,
mas tinha processo administrativo que muito provavelmente poderiam
resultar em procedimentos disciplinares. O que fez o TSE? Deu uma
interpretação extensiva à hipótese de inelegibilidade”, disse o advogado
Arthur Rollo, especialista em Direito Eleitoral, ao programa Meio-Dia
em Brasília.
O
corolário da ampliação interpretativa é a insegurança jurídica. A
partir de agora, outros congressistas, mesmo aqueles que não tenham
infringido alguma lei expressa, podem temer ser punidos por
interpretações ampliadas das normas jurídicas. “Esse precedente acarreta
perigo sistêmico, uma vez que a interpretação extensiva do TSE poderá
logo ser aplicada a outros casos por juízes eleitorais em todo o Brasil,
inclusive para outras hipóteses de inelegibilidade previstas na Lei da
Ficha Limpa”, escreveu a Transparência Internacional em um comunicado.
“Ampliar hipóteses de inelegibilidade, prescindindo do requisito literal
e objetivo da lei sobre existência de procedimento administrativo
disciplinar (PAD), ameaça direitos políticos fundamentais, resguardados
pela Constituição, e tratados internacionais.”
A
decisão do TSE, com base nessa fragilidade de provas e informações, foi
vista por integrantes do Ministério Público, por integrantes da
oposição no Congresso e pela classe jurídica como uma clara sinalização a
favor do estamento político – especialmente aquele atingido por
denúncias de corrupção – e uma perseguição ampla ao trabalho do
Ministério Público Federal.
“A
meu ver, foi uma decisão extravagante. É direito de cada servidor
público pedir exoneração no instante em que desejar. Não se pode
presumir que a pessoa pediu exoneração para fugir de um processo. Em
Direito, presumir é um procedimento incorreto”, disse a Crusoé o
ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello. “Enterraram a Lava Jato. Será
que querem enterrar os protagonistas da Lava Jato, deixando em segundo
plano o combate à corrupção? É o que parece”, complementou o ministro,
ressaltando que teme pelo destino de Sergio Moro, hoje senador.
Procuradores
que atuaram na Lava Jato vão além e falam em medo. Eles temem sofrer
sanções administrativas simplesmente por terem feito o seu trabalho:
investigar a corrupção e os possíveis malfeitos dos poderosos. O clima
no MPF é o pior possível, conforme apurou Crusoé. O sentimento é de
frustração. Alguns procuradores, em caráter reservado, falam do fim dos
tempos.
“O
Direito não pode ser um veículo para vingança. Ele se desenvolveu ao
longo de séculos precisamente para evitar vinganças, para aplicar
punições dentro da lei, conforme a lei, não torcendo a lei e aplicando-a
de forma arbitrária, para dar aparência de legitimidade à punição”, diz
o procurador federal de Pernambuco Wellington Saraiva, mestre e doutor
em Direito. “Com a decisão do TSE sobre o deputado Dallagnol, advogados
agora são os senhores da elegibilidade dos membros do Ministério
Público. Basta oferecerem reclamações disciplinares e o membro do MP
fica impedido de pedir exoneração e de se candidatar, mesmo sem PAD.
Isso é certo?”
De
fato, não parece certo. Exceto para os garantistas de ocasião, como
alguns advogados ligados ao PT. Antes, eles criticaram os supostos
excessos da Lava Jato. Nesta semana, foram às redes sociais comemorar a
decisão do TSE.
“Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”, ironizou o
ministro da Justiça, Flávio Dino, pelas redes sociais. “Sol lindo aqui
em Brasília”, também debochou o ex-Prerrogativas Augusto de Arruda
Botelho, secretário nacional de Justiça. “Ele [Dallagnol] ainda tem que
pagar pelos crimes que cometeu na Lava Jato”, ameaçou o secretário
Nacional de Defesa do Consumidor, Wadih Damous.
No
Congresso, os perseguidos pela Lava Jato — Renan Calheiros e Eduardo
Cunha — comemoraram. Cunha foi sucinto. Soltou um “Tchau, querido“. Os
que aproveitaram a operação como trampolim político deram guarida ao
parlamentar. Deltan ficou abatido. Chorou assim que soube da decisão.
Parlamentares como Caroline de Toni (PL-SC) e Adriana Ventura (Novo-SP)
também choraram.
Durante
toda a quarta, Deltan recebeu apoio de colegas congressistas como
Eduardo Girão (Novo-CE), Sergio Moro (União-PR) e Rosângela Moro
(União-SP). O ex-juiz foi ao gabinete de Dallagnol prestar
solidariedade. O ex-vice-presidente e hoje senador Hamilton Mourão
(Republicanos-RS) ingressou com um pedido de interdição de cassação ao
Congresso Nacional – a medida, porém, deve ser ignorada pelo presidente
da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Dallagnol,
por sua vez, passou a maior parte da manhã da quarta-feira, 17,
trancado em seu gabinete. Evitou conversar com jornalistas. Pensou que
era o momento de organizar as ideias, orar e traçar novas estratégias de
combate. No começo da tarde, deu uma declaração no Salão Verde da
Câmara dos Deputados. “Perdi o meu mandato porque combati a corrupção.
Hoje é um dia de festa para os corruptos e um dia de festa para Lula”,
disse.
Na
noite da quinta, 18, Deltan foi entrevistado no Papo Antagonista. “Essa
decisão manda uma mensagem muito clara para os juízes e membros do
Ministério Público: não ousem incomodar os poderosos porque vocês vão
pagar por isso, a sua família vai pagar por isso, seus apoiadores vão
pagar por isso. A gente vai amassar, a gente vai espremer, a gente vai
acabar com vocês“, disse o deputado.
Como
revelou O Antagonista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
soube da decisão do TSE durante uma reunião de articulação sobre o novo
marco fiscal. Até mesmo ele — que conhece todos os meandros da capital
federal — ficou surpreso com o fato de que o registro de candidatura do
parlamentar havia sido cassado por unanimidade.
Lira
não pretende oferecer resistência à decisão do TSE, mas vai aguardar
todos os recursos possíveis. Na quarta à noite, ele encaminhou o caso
para a Corregedoria da Câmara dos Deputados, comandada pelo deputado
Domingos Neto (PSD-CE), com base no regimento interno da Câmara. Após
uma questão de ordem apresentada pelo Podemos, Lira resolveu conceder um
prazo de cinco dias úteis para que Deltan apresente sua defesa antes
que seja adotada qualquer posição. Como tecnicamente a notificação ainda
não foi publicada no Diário Oficial da Câmara, o prazo ainda não
começou. “A Mesa informará ao corregedor, o corregedor vai dar um prazo
ao deputado, o deputado fará sua defesa, sucessivamente”, disse Lira
durante a sessão do Plenário de quarta-feira última.
É
o jeito Lira de manter controle sobre os deputados. Quando estava em
campanha para ser reeleito, no final de janeiro, Lira convidou Dallagnol
para um evento na residência oficial da Câmara. O deputado aceitou.
Cumprimentou o presidente da Câmara, disse que estava à disposição,
embora tenha reafirmado que não votaria no parlamentar alagoano. Lira
foi simpático, respondeu com um sorriso e disse: “Tudo bem e conte
comigo no que precisar”.
Com
essa decisão de Lira, Dallagnol ganha tempo para, ao menos, tentar
obter um milagre no STF – uma liminar com efeito suspensivo. As
esperanças são poucas, afinal de contas alguns ministros são inimigos
declarados do ex-procurador, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Mas,
como o sistema de sorteio do STF é uma incógnita, sempre há chance de
que o caso como nas mãos de um Luiz Fux, André Mendonça ou Luis Fachin,
que poderiam avaliá-lo com maior vagar.
Enquanto
isso, as baterias de ataque começam a se voltar contra o senador Sergio
Moro, também alvo de uma ação de inelegibilidade que pode chegar ao
TSE. Uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral, solicitada pelo PL, o
partido de Jair Bolsonaro, o acusa de irregularidades no financiamento
da campanha ao Senado. O caso tramita no Tribunal Regional Eleitoral do
Paraná e ainda não teve um desfecho. Se a interpretação da lei for
novamente extensiva, então ninguém se salva. A insegurança jurídica é
enorme. Quem perde é a democracia brasileira.
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