domingo, 28 de maio de 2023

Golpe contra a democracia

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


A cassação de Deltan Dallagnol desrespeita a vontade do eleitor e fragiliza a confiança na Justiça Eleitoral. Wilson Lima para a revista Crusoé:


A democracia brasileira sofreu um abalo esta semana. Não por meio de depredações ao prédio do Congresso ou de um quebra-quebra generalizado na sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. A democracia foi golpeada por meio de uma decisão judicial, como é de praxe em repúblicas mambembes.

O indeferimento do registro de candidatura do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) nesta terça, 16, representou, de forma límpida, a vingança do proverbial “sistema” contra a Operação Lava Jato. Mais de 344 mil eleitores tiveram seus desejos desconsiderados por uma votação de sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral que durou um minuto e seis segundos. Para a decisão ser proferida, o tempo também foi recorde: menos de dois minutos. Anulou-se a vontade popular expressa nas urnas com uma sentença apressada e baseada em conjecturas e nada mais. Lula livrou-se dos tribunais mesmo diante de um calhamaço de provas e documentos. Dallagnol perdeu o mandato sem uma prova sequer.

Durante o julgamento, o corregedor-geral eleitoral, Benedito Gonçalves, relator da ação, argumentou que o então procurador renunciou ao cargo para impedir que 15 procedimentos prévios contra ele se tornassem Processos Administrativos Disciplinares (PAD), que hipoteticamente poderiam resultar em demissão. Ele enquadrou o ex-parlamentar no artigo 1º, inciso I, letra “q” da Lei Complementar 64/1990 – também conhecida como Lei da Ficha Limpa. E, por essas coincidências da vida, a redação desse trecho foi sugerida pelo hoje ministro da Justiça, Flávio Dino, quando ele era deputado federal.

Esse item da Lei da Ficha Limpa prevê o seguinte: ficarão inelegíveis, por oito anos, “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. Na visão de Benedito Gonçalves, seguida pelos outros seis ministros – entre os quais, o ultragarantista Kassio Nunes Marques – Deltan pediu exoneração em 5 de novembro de 2021 para manter seus direitos políticos intactos.

Só que alguns detalhes chamam a atenção. Na época, essas investigações prévias (que nem sempre se tornam procedimentos administrativos, diga-se) tramitaram no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a partir de denúncias de personagens como o senador Renan Calheiros (MDB-AL), o ministro do STF Dias Toffoli, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o hoje ministro das Comunicações, Paulo Pimenta, entre outros. E eis um resumo ao cerco a Deltan: desde 2016, ele foi alvo de 52 denúncias no CNMP – aproximadamente 30 delas já arquivadas.

E havia um pouco de tudo. Desde reclamações sobre verdades que Deltan disse em entrevistas – como uma concedida à CBN em que ele declarou que o STF, ao transferir a competência de parte da Lava Jato para a Justiça Federal do DF, passava uma “mensagem muito forte de leniência a favor da corrupção” – até acusações estapafúrdias de que ele enriqueceu fazendo palestras ou embolsando diárias concedidas ao longo da Operação Lava Jato. Sobre esse caso especificamente, a decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que determinou a Deltan o reembolso de R$ 2,5 milhões por supostas irregularidades na concessão de diárias, foi reformada pela Justiça Federal do Paraná.

Outro ponto curioso: o então procurador pediu exoneração em novembro de 2021, quando ainda não havia nenhuma circunstância concreta que lhe garantisse a candidatura a deputado federal. Somente depois disso é que partidos políticos encetaram conversas com Dallagnol. Ele se filiou ao Podemos no final daquele ano de 2021.

Mesmo assim, o corregedor-eleitoral entendeu que houve tentativa de fraude processual por parte de Deltan. “O objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo ‘processo administrativo disciplinar’. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei”, afirmou Gonçalves. Enfim, na sua interpretação, Deltan deixou o Ministério Público porque não queria ser condenado em Processos Administrativos Disciplinares que jamais foram instaurados. Em vez da presunção de inocência, uma garantia de qualquer cidadão brasileiro, Gonçalves entendeu que Deltan era culpado, mesmo sem ter havido qualquer decisão nesse sentido.

O que Gonçalves fez, embora negue isso, foi dar uma interpretação ampliativa da lei. Com isso, ele fez o oposto do que se espera no direito, que manda que as normas que restringem direitos devem ser interpretadas de forma restritiva. “Tinha Processo Administrativo Disciplinar nesse caso do Deltan Dallagnol? Não. Aí o Tribunal Superior Eleitoral interpretou. Não tinha Processo Administrativo Disciplinar, mas tinha processo administrativo que muito provavelmente poderiam resultar em procedimentos disciplinares. O que fez o TSE? Deu uma interpretação extensiva à hipótese de inelegibilidade”, disse o advogado Arthur Rollo, especialista em Direito Eleitoral, ao programa Meio-Dia em Brasília.

O corolário da ampliação interpretativa é a insegurança jurídica. A partir de agora, outros congressistas, mesmo aqueles que não tenham infringido alguma lei expressa, podem temer ser punidos por interpretações ampliadas das normas jurídicas. “Esse precedente acarreta perigo sistêmico, uma vez que a interpretação extensiva do TSE poderá logo ser aplicada a outros casos por juízes eleitorais em todo o Brasil, inclusive para outras hipóteses de inelegibilidade previstas na Lei da Ficha Limpa”, escreveu a Transparência Internacional em um comunicado. “Ampliar hipóteses de inelegibilidade, prescindindo do requisito literal e objetivo da lei sobre existência de procedimento administrativo disciplinar (PAD), ameaça direitos políticos fundamentais, resguardados pela Constituição, e tratados internacionais.”

A decisão do TSE, com base nessa fragilidade de provas e informações, foi vista por integrantes do Ministério Público, por integrantes da oposição no Congresso e pela classe jurídica como uma clara sinalização a favor do estamento político – especialmente aquele atingido por denúncias de corrupção – e uma perseguição ampla ao trabalho do Ministério Público Federal.

“A meu ver, foi uma decisão extravagante. É direito de cada servidor público pedir exoneração no instante em que desejar. Não se pode presumir que a pessoa pediu exoneração para fugir de um processo. Em Direito, presumir é um procedimento incorreto”, disse a Crusoé o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello. “Enterraram a Lava Jato. Será que querem enterrar os protagonistas da Lava Jato, deixando em segundo plano o combate à corrupção? É o que parece”, complementou o ministro, ressaltando que teme pelo destino de Sergio Moro, hoje senador.

Procuradores que atuaram na Lava Jato vão além e falam em medo. Eles temem sofrer sanções administrativas simplesmente por terem feito o seu trabalho: investigar a corrupção e os possíveis malfeitos dos poderosos. O clima no MPF é o pior possível, conforme apurou Crusoé. O sentimento é de frustração. Alguns procuradores, em caráter reservado, falam do fim dos tempos.

“O Direito não pode ser um veículo para vingança. Ele se desenvolveu ao longo de séculos precisamente para evitar vinganças, para aplicar punições dentro da lei, conforme a lei, não torcendo a lei e aplicando-a de forma arbitrária, para dar aparência de legitimidade à punição”, diz o procurador federal de Pernambuco Wellington Saraiva, mestre e doutor em Direito. “Com a decisão do TSE sobre o deputado Dallagnol, advogados agora são os senhores da elegibilidade dos membros do Ministério Público. Basta oferecerem reclamações disciplinares e o membro do MP fica impedido de pedir exoneração e de se candidatar, mesmo sem PAD. Isso é certo?”

De fato, não parece certo. Exceto para os garantistas de ocasião, como alguns advogados ligados ao PT. Antes, eles criticaram os supostos excessos da Lava Jato. Nesta semana, foram às redes sociais comemorar a decisão do TSE.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”, ironizou o ministro da Justiça, Flávio Dino, pelas redes sociais. “Sol lindo aqui em Brasília”, também debochou o ex-Prerrogativas Augusto de Arruda Botelho, secretário nacional de Justiça. “Ele [Dallagnol] ainda tem que pagar pelos crimes que cometeu na Lava Jato”, ameaçou o secretário Nacional de Defesa do Consumidor, Wadih Damous.

No Congresso, os perseguidos pela Lava Jato — Renan Calheiros e Eduardo Cunha — comemoraram. Cunha foi sucinto. Soltou um “Tchau, querido“. Os que aproveitaram a operação como trampolim político deram guarida ao parlamentar. Deltan ficou abatido. Chorou assim que soube da decisão. Parlamentares como Caroline de Toni (PL-SC) e Adriana Ventura (Novo-SP) também choraram.

Durante toda a quarta, Deltan recebeu apoio de colegas congressistas como Eduardo Girão (Novo-CE), Sergio Moro (União-PR) e Rosângela Moro (União-SP). O ex-juiz foi ao gabinete de Dallagnol prestar solidariedade. O ex-vice-presidente e hoje senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) ingressou com um pedido de interdição de cassação ao Congresso Nacional – a medida, porém, deve ser ignorada pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Dallagnol, por sua vez, passou a maior parte da manhã da quarta-feira, 17, trancado em seu gabinete. Evitou conversar com jornalistas. Pensou que era o momento de organizar as ideias, orar e traçar novas estratégias de combate. No começo da tarde, deu uma declaração no Salão Verde da Câmara dos Deputados. “Perdi o meu mandato porque combati a corrupção. Hoje é um dia de festa para os corruptos e um dia de festa para Lula”, disse.

Na noite da quinta, 18, Deltan foi entrevistado no Papo Antagonista. “Essa decisão manda uma mensagem muito clara para os juízes e membros do Ministério Público: não ousem incomodar os poderosos porque vocês vão pagar por isso, a sua família vai pagar por isso, seus apoiadores vão pagar por isso. A gente vai amassar, a gente vai espremer, a gente vai acabar com vocês“, disse o deputado.

Como revelou O Antagonista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), soube da decisão do TSE durante uma reunião de articulação sobre o novo marco fiscal. Até mesmo ele — que conhece todos os meandros da capital federal — ficou surpreso com o fato de que o registro de candidatura do parlamentar havia sido cassado por unanimidade.

Lira não pretende oferecer resistência à decisão do TSE, mas vai aguardar todos os recursos possíveis. Na quarta à noite, ele encaminhou o caso para a Corregedoria da Câmara dos Deputados, comandada pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE), com base no regimento interno da Câmara. Após uma questão de ordem apresentada pelo Podemos, Lira resolveu conceder um prazo de cinco dias úteis para que Deltan apresente sua defesa antes que seja adotada qualquer posição. Como tecnicamente a notificação ainda não foi publicada no Diário Oficial da Câmara, o prazo ainda não começou. “A Mesa informará ao corregedor, o corregedor vai dar um prazo ao deputado, o deputado fará sua defesa, sucessivamente”, disse Lira durante a sessão do Plenário de quarta-feira última.

É o jeito Lira de manter controle sobre os deputados. Quando estava em campanha para ser reeleito, no final de janeiro, Lira convidou Dallagnol para um evento na residência oficial da Câmara. O deputado aceitou. Cumprimentou o presidente da Câmara, disse que estava à disposição, embora tenha reafirmado que não votaria no parlamentar alagoano. Lira foi simpático, respondeu com um sorriso e disse: “Tudo bem e conte comigo no que precisar”.

Com essa decisão de Lira, Dallagnol ganha tempo para, ao menos, tentar obter um milagre no STF – uma liminar com efeito suspensivo. As esperanças são poucas, afinal de contas alguns ministros são inimigos declarados do ex-procurador, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Mas, como o sistema de sorteio do STF é uma incógnita, sempre há chance de que o caso como nas mãos de um Luiz Fux, André Mendonça ou Luis Fachin, que poderiam avaliá-lo com maior vagar.

Enquanto isso, as baterias de ataque começam a se voltar contra o senador Sergio Moro, também alvo de uma ação de inelegibilidade que pode chegar ao TSE. Uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral, solicitada pelo PL, o partido de Jair Bolsonaro, o acusa de irregularidades no financiamento da campanha ao Senado. O caso tramita no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná e ainda não teve um desfecho. Se a interpretação da lei for novamente extensiva, então ninguém se salva. A insegurança jurídica é enorme. Quem perde é a democracia brasileira.

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