domingo, 28 de maio de 2023

Extrema direita? É isso mesmo?

 

BLOG  ORLANDO TAMBOSI

A expressão vem ocupando o papel que palavra "neoliberalismo" desempenhava alguns anos atrás: o de rotular tudo o que a esquerda considera ruim. Diogo Schelp para a revista Crusoé:


Se formos levar ao pé da letra as manchetes na imprensa brasileira a respeito da recente eleição para os representantes que vão escrever uma nova Constituição para o Chile, o eleitorado do país deu uma guinada para o fascismo menos de dois anos depois de ter optado pelo presidente mais à esquerda que já ocupou o Palácio da Moeda desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990. O Partido Republicano chileno, que conquistou 45% das cadeiras do Conselho Constituinte, é tachado nos títulos das notícias quase sempre como sendo de extrema direta, classificação que vem sendo atribuída com a mesma liberalidade ao partido Chega!, de Portugal, ao Vox, da Espanha, à Frente Nacional, da França, ao AfD, da Alemanha, à ala trumpista do Partido Republicano e ao bolsonarismo, no Brasil.

“Extrema direita” vem cumprindo o papel que a expressão “neoliberalismo” desempenhava alguns anos atrás, o de rotular ou explicar tudo o que a esquerda considera ruim: da austeridade econômica à guerra às drogas, da epidemia de obesidade ao cinema de Hollywood. Como observou o historiador mexicano Mauricio Tenorio-Trillo, “neoliberalismo é um conceito explicativo todo-poderoso, dotado de uma forte e negativa carga ética por meio de uma bombástica falta de especificidade“. Ou seja, é um termo tão banalizado que se tornou vazio de significado.

Algo semelhante está acontecendo com “extrema direita“. Assim como “neoliberalismo“, a expressão existe e há um uso correto para ela — que não é o que tem prevalecido na imprensa, nas redes sociais e nas conversas de bar. Não basta defender valores conservadores, políticas macroeconômicas ortodoxas ou mesmo mais restrição à imigração para ser classificado como extrema direita. A chave para essa definição está mais no grau de adesão a princípios democráticos do que em programas de governo.

A classificação mais aceita atualmente no meio acadêmico é a que foi esquematizada pelo cientista político holandês Cas Mudde, da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos. Mudde é um dos maiores estudiosos dos fenômenos do extremismo político e do populismo nos dias de hoje.

O campo da direita é dividido em extrema direita, direita radical, direita e centro direita. À esquerda, a mesma coisa: extrema esquerda, esquerda radical, esquerda e centro esquerda. A separar os dois lados está o centro político. Mudde caracteriza o extremismo, tanto à direita quanto à esquerda, como a rejeição à soberania popular por meio do voto, à ordem constitucional e, por extensão, à própria democracia. A extrema direita e a extrema esquerda, portanto, almejam a substituição de regimes democráticos por ditaduras. Exemplos atuais seriam movimentos neonazistas ou neofascistas, de um lado, e partidos comunistas ao estilo soviético, de outro.

Já o radicalismo político, na definição de Mudde, se caracteriza pela busca de mudanças aceleradas na sociedade e no sistema político e se opõe à noção de democracia liberal, com seu pluralismo e ênfase na defesa de minorias, mas aceita o caráter procedimental da democracia, ou seja, a necessidade de se submeter ao crivo eleitoral. Os radicais, portanto, aceitam em linhas gerais o jogo democrático, mas estão dispostos a testar seus limites e a passar por cima da diversidade de interesses e opiniões existentes na sociedade para obter os resultados políticos que almejam.

Para a direita radical, esses resultados podem ser o endurecimento de penas e a flexibilização das armas para a população como forma de coibir a criminalidade, a proibição do casamento gay, para reforçar uma sociedade sustentada em núcleos familiares com mulher, homem e filhos, ou a imposição de restrições à imigração para proteger a economia e a identidade nacionais.

Já para a esquerda radical, os resultados podem ser, por exemplo, a desapropriação de terras ou imóveis privados para a reforma agrária ou para serem distribuídos a pessoas sem moradia. Quanto aos métodos, esses podem flertar, à direita e à esquerda, com o autoritarismo e com a violência, por meio da desobediência civil, de manifestações violentas e de discursos virulentos contra adversários.

Percebe-se, portanto, que os partidos e movimentos normalmente enquadrados na extrema direita na realidade são, pela classificação de Mudde, de direita radical. Isso vale, por exemplo, para o Partido Republicano chileno, com seu discurso antissistêmico e antipolítico. Seu principal líder, José Antônio Kast, já exaltou o ditador Pinochet, mas não defende a volta da ditadura militar.

Também entram na classificação de direita radical o Chega!, em Portugal, o Vox, na Espanha, o Reagrupamento Nacional (antiga Frente Nacional, de Marine Le Pen), da França, o bolsonarismo, no Brasil, e a ala do Partido Republicano ligada ao ex-presidente Donald Trump, no Estados Unidos, entre outros partidos e movimentos políticos ao redor do mundo.

Na Europa, essas agremiações surgiram principalmente na esteira da aversão ao multiculturalismo e à imigração. Nos Estados Unidos, da resistência a mudanças culturais e aos efeitos econômicos da globalização. Na América Latina, da percepção de que políticas progressistas exacerbaram a falta de segurança pública e aceleraram mudanças comportamentais indesejadas na sociedade.

Em comum, além de alguns pontos de seus programas de governo, todos esses movimentos exploram a insatisfação com os partidos tradicionais, acusados de corrupção e decadência moral, e se apresentam como alternativas contra o sistema vigente, mas em linhas gerais aceitam as regras eleitorais do jogo democrático.

Essas características remetem a outro traço da maioria desses movimentos: o populismo, que divide a sociedade em “povo“, de um lado, e “elite corrupta“, de outro, dois grupos hermeticamente antagônicos e contrários. No caso dos grupos políticos acima mencionados, “povo” normalmente é entendido de maneira restrita, não incluindo minorias e imigrantes, por exemplo, e as “elites” podem ser políticas, empresariais e intelectuais.

Por esse motivo, outra forma de classificar partidos como o Vox, o Chega!, o bolsonarismo ou os republicanos chilenos é como direita radical populista ou, simplesmente, direita populista.

Em seu sistema de classificação, Cas Mudde agrupa a extrema direita e a direita radical (que, como vimos, são essencialmente diferentes no que se refere à aceitação da democracia) sob o guarda-chuva de um terceiro conceito, o de “far-right“. A tradução dessa expressão do inglês para o português causa confusão e pode ser justamente a origem da banalização do termo “extrema direita“. Isso porque tanto “far-right” quanto “extreme right“, quando aparecem no noticiário internacional, costumam ser traduzidas pela imprensa brasileira como “extrema direita“, apesar de não serem exatamente a mesma coisa. Far-right, a rigor, engloba tanto a extrema direita quanto a direita radical. Publicações acadêmicas brasileiras e portuguesas têm tentado fazer a diferenciação traduzindo “far-right” ora como “direita extremada“, ora como “ultradireita“.

O importante para o leitor, quando se deparar com esses termos, é saber que eles se referem ao espectro político que inclui tanto a extrema direita (antidemocrática) quanto a direita radical ou direita populista (democrática com ressalvas). Ambas se diferenciam da direita tradicional (“mainstream right“, que inclui direita e centro-direita), pelo caráter antissistêmico, pelo autoritarismo latente e pela baixa disposição ao diálogo com os opostos.

Os rótulos acima não são herméticos. Mudde e outros estudiosos costumam observar que o crescimento eleitoral nos últimos anos de grupos de direita radical levou partidos e líderes da direita tradicional a incorporar parte de seus discursos e métodos. Há, por outro lado, uma tendência de absorção de pautas da esquerda por partidos da direita radical, como o apoio à distribuição de benefícios sociais (uma mudança de postura que ocorreu, por exemplo, no Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, na França, no Alternative für Deutschland (AfD), da Alemanha, e no governo de Jair Bolsonaro, no Brasil). Além disso, é possível encontrar, no seio de grupos de direita radical, elementos extremistas e, portanto, com ambições ditatoriais, como ocorre no AfD alemão, que dá abrigo a integrantes de tendência neonazista.

Uma coisa é certa: estando à direita ou à esquerda do espectro político, ninguém gosta de ser chamado de extremista ou radical. Em 2021, durante a campanha presidencial em que saiu derrotado para o esquerdista Gabriel Boric, Kast entrou em discussão com Mudde no Twitter porque não queria ser rotulado como sendo de “ultradireita“. Mudde respondeu que, para isso, Kast precisaria parar de exaltar Pinochet e de falar em cavar trincheiras para impedir a entrada de imigrantes no Chile.

No lado oposto, o Podemos, da Espanha, faz grande esforço para desviar do rótulo de esquerda radical ou populista, apesar de ser exatamente isso: radical e populista.

A confusão, portanto, é inevitável para muitos brasileiros, mas para acadêmicos e jornalistas acostumados a lidar com esse assunto, é preciso usar os termos de maneira apropriada. O leitor, ao final, só tem a ganhar com isso.
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