sábado, 29 de abril de 2023

Tem que investigar

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Vídeo de general ligado a Lula reacende a chama da CPI do 8 de janeiro, cria dor de cabeça ao governo e atrapalha a pauta econômica. Wilson Lima para a revista Crusoé:


O roteirista de Brasil é um ser maravilhoso. Vira e mexe, ele surpreende a todos com tramas rocambolescas que dariam inveja a qualquer executivo da indústria dos serviços de streaming. A revelação de um vídeo, pela CNN Brasil, que liga o general da reserva Marco Edson Gonçalves Dias, ex-GSI, aos atos terroristas de 8 de janeiro é um exemplo dessas reviravoltas que nem mesmo o mais brilhante escritor hollywoodiano ousaria imaginar.

Em menos de 24 horas, o governo federal enfrentou a primeira queda de um ministro e ainda será obrigado a enfrentar uma CPMI e a ver a sua pauta econômica ser atravancada por um tipo de investigação que, segundo o velho ditado, todos sabem como começa, mas ninguém sabe como termina.

Na quarta-feira última, a CNN divulgou vídeos em que o general Gonçalves Dias, durante o 8 de janeiro, é flagrado no Palácio do Planalto em atitude aparentemente permissiva com invasores do prédio. Nas imagens, ele não somente ficou impávido junto aos manifestantes, como parece até colaborar com momentos da invasão.

Em um primeiro momento, o Palácio do Planalto, sua blogosfera e a mídia amiga tentaram ignorar as cenas. Mas os fatos se impuseram. A repercussão foi tão negativa que o presidente Lula se viu obrigado a convocar uma reunião de emergência para tratar do episódio.

A reunião ocorreu na sala do ministro da Secom, Paulo Pimenta, e participaram também Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (Casa Civil). Crusoé apurou que esse encontro foi tenso. Lula cobrou de Gonçalves Dias explicações sobre o episódio. O presidente da República até defendeu a permanência do auxiliar, mas Pimenta, Padilha e Costa disseram que a situação era insustentável. Lula foi voto vencido.

Durante o encontro, Padilha, Costa e Pimenta argumentaram que não somente houve quebra de confiança por parte do GSI, como o general da reserva colocou o governo no epicentro da crise sobre o 8 de janeiro e deu munição para as bancadas bolsonaristas tanto da Câmara quanto do Senado. Tudo que o governo federal não queria. Mais: a avaliação do Planalto é que o fato de Gonçalves Dias ter escondido do governo a existência desses vídeos também deixou, em situação extremamente delicada, a Polícia Federal, pelo fato de ela não ter identificado um integrante do governo em meio aos manifestantes.

A conclusão após a reunião, que durou em torno de uma hora e meia, é que a demissão de Gonçalves Dias não bastaria para debelar a crise. Seria necessário um amplo plano de ação calcado, a partir de então, no apoio à CPMI e, em paralelo, na tentativa de desacreditar o material divulgado pela CNN. “É hora de controlar a narrativa”, disse um integrante do núcleo duro do governo a Crusoé. Há um receio claro por parte do Executivo de que a ala bolsonarista do Congresso consiga emplacar a tese de que o governo foi leniente com os vândalos em 8 de janeiro. Detalhe: essa virada dramática na narrativa (impondo ao governo algum tipo de participação no episódio) já foi detectada nos primeiros trackings do PT.

Por isso, o governo federal desistiu de enterrar a CPMI e agora intensifica esforços para controlar a investigação. Mas não será uma tarefa fácil. Pelo histórico, a relatoria e presidência do colegiado são divididos entre Câmara e Senado. Quando uma casa fica com a presidência, a outra controla da relatoria. Ou vice-versa.

Aí começa o jogo de xadrez. Se a tradição das duas Casas for seguida, a relatoria e a presidência da CPMI serão destinadas aos maiores blocos partidários. Na Câmara, o maior bloco reúne o PP de Arthur Lira, o PSB governista e o União Brasil – partido que é metade governista e metade, não; no Senado, o bloco majoritário reúne MDB, PSD, PT e União Brasil.

Integrantes das duas casas admitem que o governo federal dificilmente terá ingerência na escolha do represente da Câmara na mesa diretora da CPMI. Isso porque esse bloco é controlado, fundamentalmente, por Lira e por Elmar Nascimento, líder do União Brasil. Ou seja: no final das contas, caberá a Lira ou a Elmar – que tem pressionado o governo federal pela liberação de cargos e emendas – a responsabilidade da indicação do representante dos deputados na mesa da CPMI.

Para piorar a situação do Planalto, na próxima terça-feira o PP vai discutir, institucionalmente, como vai lidar com a investigação. Lideranças do partido ouvidas por Crusoé admitem que a tendência é que a sigla adote uma postura crítica em relação ao Planalto durante as investigações, colaborando para desgastar ainda mais a imagem do Executivo na CPMI. Para a oposição, de maneira geral, o objetivo será dividir as responsabilidades frente aos atos de 8 de janeiro. Se é inegável que bolsonaristas e antipetistas estavam na confusão que foi a invasão dos Três Poderes, eles não devem ser os únicos culpados – dizem os proponentes dessa versão da história –, uma vez que integrantes do governo se omitiram, não forneceram a segurança necessária ou até mesmo incentivaram a turba dos vândalos.


Gonçalves Dias, ao ser nomeado por LulaNa Câmara, a CPI contará com três deputados do PL — muito provavelmente Eduardo Bolsonaro (SP), Alexandre Ramagem (RJ) e André Fernandes (CE), esse último autor do pedido de CPI —, três da federação do PT com o PCdoB, um do Psol, um do União Brasil – a maior chance é que seja Kim Kataguiri (SP) –, e um deputado de cada uma destas siglas: PP, PSDB, PDT, MDB, PSD, Republicanos e Podemos. Esse último vai indicar Deltan Dallagnol (PR) para o colegiado.

Apesar do cenário adverso, um dos vice-líderes do governo no Congresso Lindbergh Farias (PT-RJ) ainda tenta manter o otimismo. “Há uma maioria do governo, a presidência será do governo, do bloco governista. E o relator também. Essa história que o autor da CPI vira presidente ou relator não existe. Isso é quando há acordo e nós nunca chamamos acordo”, disse ele nesta quinta-feira, 20, durante entrevista coletiva.

No Senado, a tendência é que o governo tenha um maior controle da investigação. A princípio, a CPMI terá dois senadores do MDB (Renan Calheiros mais um segundo integrante da sigla), dois do União Brasil (são cotados Soraya Thronicke e o ex-juiz Sergio Moro), um do Podemos (Marcos do Val é o mais cotado), um do PSDB (Izalci Lucas), três do PSD (Otto Alencar e Omar Aziz e um terceiro), um do PT (Humberto Costa), um do PSB (Jorge Kajuru), três do PL (entre os mais cotados estão Flávio Bolsonaro e Magno Malta) e um do PP (provavelmente Luis Carlos Heinze).

No Senado, apesar de fazer parte do bloco majoritário, a tendência é que o integrante da Casa que fará parte da mesa diretora seja do PSD, maior partido da Casa. Isso pode fazer com que seja repetida a tática do partido de indicar Omar Aziz para comandar a investigação.

Por ter sido o autor do pedido de CPMI, o PL trabalha para ter, ao menos, a vice-presidência do colegiado, uma tática que foi adotada na CPI da Covid. Na época, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) ganhou espaço na mesa justamente mediante acordo. E eis a grande fragilidade do PL: integrantes de Câmara e Senado não querem abrir espaço para André Fernandes, justamente por ele ser visto como integrante da ala mais radical do bolsonarismo.

Além de tentar controlar a investigação, o governo federal vai tentar adotar durante a CPMI o discurso de que a oposição tenta transformar em verdade uma grande “teoria da conspiração” ou uma clássica “narrativa bolsonarista”. Em outra linha, a base governista vai insistir na quebra de sigilo de possíveis financiadores, influenciadores, e até de parlamentares com suspeita de envolvimento nos atos de 8 de janeiro. Nesse ponto, integrantes do PT não descartam, por exemplo, pedir a quebra de sigilo telefônico e telemático de integrantes do próprio colegiado como os deputados Eduardo Bolsonaro e André Fernandes, além de outros integrantes da base bolsonarista como Sílvia Waiãpi (PL-AP) e Clarissa Tércio (PP-PE). Estes três últimos (Fernandes, Waiãpi e Tércio) já são alvo de investigações no STF justamente por envolvimento nos atos de 8 de janeiro.

Do outro lado desse ringue, os deputados de oposição ao governo federal vão trabalhar pela quebra de sigilos de integrantes do governo federal como o ministro da Justiça, Flávio Dino, ou do próprio ex-GSI general Gonçalves Dias. A base bolsonarista também pedirá depoimentos de integrantes do governo federal, como o próprio Dino, integrantes da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal e da Polícia Rodoviária Federal. O propósito é emplacar a tese de que o governo federal foi omisso em diversos momentos, antes da invasão da Praça dos Três Poderes e durante o evento golpista.

Enquanto bolsonaristas e petistas se digladiam, durante os próximos seis meses (tempo de duração do inquérito), a pauta econômica tende a ficar em segundo plano. Líderes de Câmara e Senado são uníssonos em afirmar que matérias como o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária terão sua tramitação prejudicada, justamente aquilo que o governo não queria.

Será ainda mais difícil para o Executivo impedir mudanças nos dois textos. Uma alteração é tida como certa no novo arcabouço fiscal: a retirada do item que isenta a União de responsabilidade por descumprimento de metas fiscais. De cara, uma nova derrota para o governo Lula.

“Eu não acredito que a Câmara ficará paralisada com a instalação da CPMI”, disse, otimista, o relator da proposta de novo marco fiscal, Cláudio Cajado (PP-BA). “Temos outros temas importantes para enfrentar e não me refiro apenas ao arcabouço.”

A tendência é que a reforma tributária sofra mais com essa CPMI. A expectativa inicial era que o projeto fosse votado, em plenário, já no mês de maio. Mas a tendência é que fique para junho ou, nas projeções mais pessimistas das lideranças, para o início de julho, às vésperas do recesso parlamentar.

Em política, reviravoltas são absolutamente normais. Mas essa guinada, surgida após algumas imagens virem a público, é a demonstração cabal de que a política brasileira compete bem com qualquer filme ou série disponível nas plataformas de streaming.

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