BLOG ORLANDO TAMBOSI
A liberdade de dizer não a uma proposta sexual deve estar no mesmo patamar da liberdade de a fazer. Isabel Menéres Campos para o Observador:
“A
nossa compreensão da sexualidade, um tema paradigmático da cultura
moderna e sua verdadeira obsessão, tem sido perturbada pelo excesso de
politização que atualmente a envolve”. A frase é de Camille Paglia e é
assim que esta abre o seu extraordinário Mulheres Livres, Homens Livres,
uma obra desassombrada e lúcida sobre os tempos que vivemos e sobre as
novas doutrinas em torno do sexo, género e feminismo [Para quem não
conhece, Camille Paglia é uma académica americana, assumidamente lésbica
e feminista, mas muito crítica desta vaga de feminismo “estalinista” a
que chama de terceira geração].
As
linhas que aqui escrevo são sobre o feminismo militante woke, que se
iniciou há muitos anos e teve, mais recentemente, um particular destaque
com o movimento #meToo nos Estados Unidos, que rapidamente se estendeu a
todo o mundo ocidental. Por cá, tivemos também por estes dias um ensaio
de wokismo, que não chegou a atingir, até agora, proporções gigantescas
por o seu protagonista ser, na verdade, um desses activistas das
ciências sociais, oficiantes de culto de uma religião morta como é o
marxismo.
A
título prévio, cumpre esclarecer que considero, obviamente, abjecto o
abuso de poder para a obtenção de favores de natureza sexual, bem como a
humilhação que geralmente acarreta, sobretudo para as mulheres (mas não
exclusivamente). Espero, sinceramente, que Boaventura Sousa Santos
possa defender-se das acusações de que é alvo e, na sequência de um
processo judicial, seja julgado culpado e condenado, consoante os factos
que sejam apurados. E, já agora, que as acusadoras consigam fazer prova
dos factos que lhe imputam. Este texto, não é, portanto, sobre este
episódio em particular, mas sobre o fenómeno instilado por progressistas
das ciências sociais, precisamente da área onde se insere o
protagonista do caso português.
Vivemos,
actualmente, uma vaga de feminismo militante pós-moderno e sofisticado,
que podemos designar por feminismo de terceira geração em que os seus
propagandistas (de resto também homens) reivindicam, paradoxalmente, um
estatuto especial para as mulheres: por um lado, o da mulher
“empoderada” e, por outro, simultaneamente, o de eterna vítima.
Explicando.
Na primeira vaga de feminismo, surgida a partir do século XVIII, as
mulheres lutavam essencialmente pelo sufrágio feminino e direitos legais
iguais, como o direito ao divórcio, à guarda das crianças, à igualdade
na herança. Os seus objectivos eram não só legítimos, como determinantes
para a consolidação do Estado de Direito e da democracia liberal que
veio a ocorrer, genericamente, na Europa ocidental anos mais tarde. Por
seu turno, na geração de feministas dos anos 60 havia um propósito
diferente, que era o de lutar pelos direitos das mulheres, sobretudo
pela liberdade sexual, pela igualdade de oportunidades de carreira
iguais aos homens, pela licença de maternidade, objectivos igualmente
justos e absolutamente indispensáveis numa sociedade livre e igual.
Entretanto,
o movimento feminista, numa terceira ou quarta vagas surgidas a partir
dos anos 80, passou a concentrar-se nas causas de nicho, na misandria ou
a ideia de que o problema da mulher é o homem, na luta contra o
patriarcado e contra uma sociedade que julgam manipulada a favor dos
homens, com o objectivo de suprimir as capacidades das mulheres. Acresce
a isto a pretensão nestes movimentos de anular o papel do homem e
torná-lo ressentido, fraco e culpado (de quê?), aderindo a esquerda mais
radical, geralmente, a esta tendência, o que representa uma involução
puritana surpreendente: não há qualquer semelhança das moralistas
feministas de hoje com as soissante-huitard emancipadoras da segunda
vaga do feminismo. Nesta nova vaga, as mulheres infantilizam-se e
vitimizam-se, reivindicam protecção, um “safe space” onde possam estar
preservadas dos homens, tendendo a acentuar um conceito (imaginário) de
violência machista que a esquerda, de resto, procura instrumentalizar. É
um activismo que parte da concepção, falaciosa, de que as mulheres são
um corpo homogéneo e, no essencial, todas vítimas de opressão.
Destas
correntes feministas recentes, que podemos chamar de terceira geração,
surge também a luta pela imposição de quotas para mulheres, disputa
profundamente errada e perigosa, que se baseia no pressuposto, nunca
assumido, de que as mulheres não terão mérito para ascender às posições
de topo, tendo de ser alavancadas para lá chegar através da imposição
das quotas (quotas à custa de quem?).
A
situação é paradoxal: pretende-se igualdade e, simultaneamente,
reivindica-se um estatuto especial (“somos melhores”), o seu
“empoderamento” artificial à custa das quotas, assim como um espaço
“seguro” a coberto de eventuais investidas de natureza sexual por parte
dos homens no local de trabalho ou na vida social (já se chegou a falar
em tempos de os autocarros passarem a ter um espaço à parte para as
mulheres poderem viajar em segurança).
Este
feminismo colectivista é incompatível com a igualdade e a liberdade de
que legitimamente as mulheres devem gozar. Trata-se de uma visão
identitária sectarista e construtivista que impõe uma ordem moral de
cima para baixo, como uma espécie de catequese do novo pensamento único
homogéneo feminista, que é um tremendo ataque à liberdade individual. O
feminismo contemporâneo é, pois, uma perversão muito prejudicial às
próprias mulheres.
Por
outro lado, a vitimização (ou melhor vitimismo) das mulheres assenta
sobretudo na culpabilização do homem, eterno devasso e predador, de que
as mulheres são vítimas, impondo-se então a sua protecção no contexto
profissional e social, para não se tornarem alvo de assédio, perseguição
ou abuso. E vai-se metendo na cabeça das jovens a ideia de que são
mártires permanentes do patriarcado e que isso é consequência lógica de
uma herança cultural. O que é preocupante neste quadro é que as mulheres
regridem à sua velha condição de flores de estufa (condição
auto-inflingida) carecendo por isso, de protecção. Na verdade, o pior
que podemos fazer às nossas filhas é incutir-lhes a ideia de que nascem
vítimas porque o vitimismo é o primeiro passo para a violência e para o
domínio e subjugação a um suposto salvador ou protector, tenha este a
configuração que tiver.
Abusos
e assédio moral sempre houve, seja no contexto profissional, seja no
contexto social: de homens para homens, de mulheres para mulheres, de
mulheres para homens. Não há apenas abuso de homens para mulheres, nem
todos os abusos são iguais. A violação é crime; também é crime a
importunação sexual com actos de carácter exibicionista, com formulação
de propostas de teor sexual ou constrangimento a contactos de natureza
sexual. Todavia, a tentativa de sedução, ainda que persistente e
indesejada, não tem natureza criminal. Não se pode tratar ao mesmo nível
dos crimes sexuais os ensaios de sedução a uma colega de trabalho ou de
conversas sobre temas mais íntimos ou até a tentativa de algum contacto
físico. Mulher que é digna do seu sexo sabe reagir adequadamente a esse
tipo de investidas e a liberdade de dizer não a uma proposta sexual
deve estar no mesmo patamar da liberdade de a fazer.
De
resto, a ideia de que existe uma epidemia de predadores sexuais é
viciosa e arriscada. Por esse mundo fora, muitas comissões para a
igualdade de género e para a inclusão justificam o seu trabalho
dedicando-se a fabricar sensacionais agressões a supostas vítimas. No
actual estado de coisas, a única opção que restaria a um homem num
contexto de relacionamento íntimo iminente, seria a de pedir
consentimento escrito, ao invés de arriscar mais tarde, quando consumado
o acto, ser acusado de abusador. E isto converte a complexidade, a
espontaneidade e a irracionalidade próprias da actividade sexual num
frio modelo contratual, o que, necessariamente, conduz a uma politização
do desejo sexual, frase com que comecei este texto. Esta deriva
vitimista afecta evidentemente a sexualidade das mulheres, pois o
“puritanismo do bem”, conduz as mulheres, a coberto de uma falsa
sensação formal de protecção, à situação de presas indefesas de demónios
machistas e heterossexuais.
A
ideologia subjacente a este feminismo militante de terceira geração
combina elementos marxistas e pós-modernos com o objectivo de
desconstrução social. Insistindo constantemente na retórica de que as
mulheres são oprimidas nas relações com os homens, não só no casamento e
na maternidade, mas também nos relacionamentos informais e ocasionais,
onde o homem aparece como o abusador e a mulher como a vítima subjugada,
estas correntes conduzem à narrativa de que as relações heterossexuais
representam sistematicamente o domínio do homem e a submissão da mulher.
Agustina
Bessa-Luís, sempre penetrante nos seus textos, escreveu, em 1983, no
seu Os Meninos de Ouro “Os direitos da mulher, tão debatidos até por
intelectuais sérios, não passavam de uma fraca bandeira de facto
recortada nos costumes mais vigorosos de outras épocas. A inteligência
libertina do século XVIII, que jogava com a condição do interdito, antes
de Freud a considerar como indispensável ao prazer sexual da mulher,
tinha cem anos de avanço a toda aquela propaganda de amor-livre e
rebelião pequeno-burguesa. O resultado foi que o homem fez dessa
pretensa libertação uma outra forma de rebaixamento da mulher,
necessário à assimetria masculino-feminino como condição de uma
intensidade sexual”. Esta frase, actualíssima, resume bem os tempos que
vamos vivendo.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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