sábado, 29 de abril de 2023

A paz de Lula é um cemitério ucraniano

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Ao contrário do que sugerem os passadores de pano, não há ambiguidades nas posições de Lula sobre a guerra: elas são muito claras - e são imorais. Jerônimo Teixeira para a Crusoé:


Lula bagunçou minha semana.

Eu já tinha um artigo pronto para este número de Crusoé, mas o presidente puxou meu tapete. Ou, na verdade, mandou seu ministro da Fazenda puxar meu tapete.

Para ser honesto, admito que o texto estava pronto só na minha cabeça: escrevo sempre no último minuto, para desespero dos meus editores. O mote do artigo seria a taxação dos sites estrangeiros que vendem quinquilharia barata. Mote distante e indireto: eu passaria ao largo das questões alfandegárias para me concentrar em uma única frase dita por Fernando Haddad sobre sua medida impopular. Puxaria daí um fio insuspeito que liga essa fala a uma declaração anterior de Haddad, de quando ele ocupava a pasta da Educação no governo Dilma Rousseff: “A diferença entre Hitler e Stalin é que Stalin lia os livros antes de fuzilar os inimigos“. O artigo lembraria Mandelstam, que morreu no Gulag por causa de um poema, e contaria ainda do dia em que Pasternak atendeu o telefone e tomou um susto porque do outro lado da linha estava Stalin, querendo conversar justamente sobre Mandelstam. O texto então retornaria ao ministro da Fazenda que viajou até a China para dizer que nunca fez compras na Shein. Já a caminho do fim, eu ainda arriscaria dizer qualquer coisa sobre a tradição bacharelesca brasileira que continua viva cinco séculos depois daquele português que, segundo Oswald de Andrade, desembarcou no Brasil “citando Virgílio para tupiniquins“.

Esse apanhado não faz jus ao ensaio que eu tinha em mente. Dá a impressão de que seria um texto pedante e desconexo, um acúmulo vaidoso de citações. Mas na minha imaginação, que não é rica mas é generosa, eu visualizo uma peça de prosa sólida, do mais puro cristal flaubertiano. Já tinha até um encerramento de impacto: “Só um filisteu se orgulha de comprar um livro na Amazon todo o dia”.

Essa obra-prima inacabada – aliás, sequer começada – perdeu o sentido quando Haddad suspendeu a taxação de pequenas compras na Schein e na Shopee, pela mesma razão que o levou a postergar, no início do ano, o reajuste dos combustíveis: Lula não quer ficar mal na foto com os pobres em nome dos quais imagina falar.

O presidente também se imagina um porta-voz da Paz Mundial, essa abstração musicada por John Lennon. Eis aí o tema que me sobra – o tema que se impôs durante a semana que passou: as declarações de Lula, em sua turnê por China e Emirados Árabes, sobre a Guerra da Ucrânia.

A turma que se dedica à contenção de desastres verbais do presidente quer nos convencer de que também esse é um assunto superado. Ora, não ficou tudo esclarecido com o discurso protocolar que Lula leu na terça-feira 18, na recepção ao presidente da Romênia, Klaus Iohannis? “Meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia”, afirmou o petista, em consonância com o voto brasileiro contrário à Rússia na ONU, em fevereiro.

Ocorre que a Rússia não terá se abalado com essa declaração tíbia, que sequer nomeia o responsável pela tal violação. E o voto brasileiro na ONU se esvazia de força simbólica quando, menos de um mês depois, nosso presidente reafirma, em entrevista concedida na China, que país violador e país violado são ambos responsáveis pela guerra em curso desde fevereiro do ano passado.

Dias depois do retorno de Lula, o chanceler russo, Sergey Lavrov, desembarcou em Brasília – bem à vontade, como se viu na foto – e saiu de um encontro com o presidente anunciando que Brasil e Rússia têm uma “visão única” sobre a guerra. Por contraste, Iohannis, segundo informa a Folha de S. Paulo, respondeu à conversa mole de Lula com um discurso no qual disse o óbvio: a Rússia desrespeitou o direito internacional ao agredir a Ucrânia e é a única responsável pela guerra. A EBC transmitiu o discurso de Lula, mas não a fala do presidente romeno.

Críticos demasiado suaves do governo recomendam que Lula contenha seus improvisos. O barulho em torno de declarações sobre a responsabilidade ucraniana pela invasão russa se originaria apenas da espontaneidade presidencial, que passou uma imagem errada da posição brasileira sobre o conflito. Mas isso é falso. A posição do governo Lula sobre a guerra da Ucrânia — não muito distinta, aliás, da posição do governo Bolsonaro — não comporta ambiguidade ou contradição. O discurso da terça-feira não representou qualquer correção de curso nessa linha estupidamente reta. Lula e seus devotos até admitem que a Ucrânia teve a “integridade territorial” violada, mas acreditam que isso se deu só porque o país governado por Volodymyr Zelensky se comportou mal, flertando com Otan e União Europeia. A Rússia sentiu-se ameaçada! Vladimir Putin não teve escolha: partiu para a agressão defensiva.

Lula espera resolver o conflito em uma mesa de discussões, reunindo países “neutros” para fazer o meio de campo entre Putin e Zelensky. Em texto publicado no dia em que o presidente viajava para a China, a revista The Economist qualificou essa ideia como “ingênua”. Concordo, mas acrescento: em certas circunstâncias, a ingenuidade é imoral.

A disposição ingênua de arbitrar negociações de paz foi reiterada por Lula no discurso da terça-feira. Ele se declarou preocupado com as “consequências globais” do conflito, que põem em risco a “segurança alimentar e energética” do mundo, em especial dos países pobres. Estaria tudo correto, se o discurso não fugisse covardemente à questão central do conflito. Lula fala das vítimas indiretas da guerra, as nações que dependem dos grãos produzidos pela Ucrânia, mas se cala sobre a vítima primeira e principal: o povo ucraniano. Nenhuma palavra sobre hospitais e prédios bombardeados, sobre centros urbanos em escombros, sobre populações deslocadas, sobre civis assassinados em cidades como Bucha e Irpin.

O Brasil voltou, diz a propaganda do governo. O mundo volta a nos respeitar. Tomara que não. Será miserável um mundo que respeite Lula como embaixador da paz.
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