BLOG ORLANDO TAMBOSI
O Brasil confirma a tese de Malan: aqui "até o passado é incerto". Fernando Schüler para a revista Veja:
Primeiro,
foi com a regra do teto. Em 2016, o Brasil vivia a sua crise, o PIB
cairia mais de 7% em dois anos, e alguns milhões de brasileiros
cruzavam, para baixo, a linha da extrema pobreza. Foi aí que o país
definiu uma regra fiscal para valer no longo prazo: o Orçamento só pode
crescer no limite da inflação do ano anterior. Por vinte anos, com
direito a uma revisão no meio do caminho. O problema é que rodamos no
marshmallow test. Para quem não conhece, é aquele teste famoso em que se
põe uma criança diante de uma guloseima, sabendo ela que se esperar
alguns minutos ganhará, logo ali adiante, duas guloseimas. Uma parte das
crianças, em geral as mais novas, não consegue esperar. É semelhante ao
nosso caso. Pouco mais de seis anos depois de definir a regra, o
país-criança decide mudar. Já havíamos furado a regra algumas vezes, mas
agora vamos mudar de vez, sem fazer ideia do que colocar no lugar.
É
o mesmo caso da Lei das Estatais. Na esteira da crise, em 2016, nossas
estatais tiveram um resultado negativo de mais de 30 bilhões de reais.
Havia um rastro de corrupção e o país resolveu fazer uma lei dura,
impondo 36 meses de quarentena a quem comandou campanhas ou partidos
políticos. Apontada como modelo pela OCDE, a lei ajudou o Brasil a
melhorar não apenas no aspecto ético como também na performance das
empresas, que atingiram seu melhor resultado no ano passado. Diante
disso, o que faz nosso mundo político? Ainda na transição para o novo
governo, aprova-se a incrível redução da quarentena de 36 meses para
apenas um mês. Alguma avaliação técnica? Os investidores estão
reclamando? Foi reduzido o retorno das empresas para o governo? As
respostas são um tanto óbvias. Nas últimas semanas, Lula
resolveu tirar o Banco Central e seu presidente para Geni. A autonomia
do BC foi aprovada com folga no Congresso, e depois chancelada pelo STF.
O ministro Barroso fez um voto exemplar, dizendo que instituições como o
Banco Central não deveriam ser “submetidas a vontades políticas, mas a
compromissos com a Constituição e o Estado brasileiro”. Tudo isso há
menos de dois anos. A aprovação foi saudada como um avanço
institucional, na linha do que fazem as grandes economias globais. Mas
não tem jeito. Eleito, Lula diz que a autonomia do BC é uma “bobagem” e a
presidente do partido diz que o Banco Central é a “última trincheira do
bolsonarismo”. Não se trata de debate técnico sobre juros. É um
sintoma: aceitamos um Banco Central independente, desde que os juros
fiquem no patamar desejado pelo governo.
O
tema é o mesmo com as privatizações. Em 2021, a Câmara dos Deputados
aprovou a privatização dos Correios. O processo ficou parado no Senado, e
o atual governo terminou por engavetar. Há casos mais curiosos. A
privatização do Porto de Santos foi aprovada pela Antaq, recebeu parecer
positivo da área técnica do TCU e o leilão está virtualmente pronto
para acontecer. Provavelmente não irá. São anos de estudos e tramitação,
a um custo difícil de estimar. E mais: de expectativas de investimentos
geradas na região da Baixada Santista. No zigue-zague brasileiro, nada
disso importa. Ainda agora lemos que o governo mandou a AGU tentar a
reversão da privatização da Eletrobras. É provável que não dê em nada,
mas não será pequeno o rastro de insegurança institucional deixado pelo
caminho.
Há
quem veja essas coisas como um retrocesso; há quem veja um avanço. Um
“retorno do Estado ao comando da economia”, como li, por estes dias. A
verdade é que não é nem uma coisa nem outra. Somos apenas um país
cindido, sem uma convicção básica que seja em torno de uma agenda
modernizadora. Tivemos um ciclo de reformas, e agora resolvemos puxar o
freio. Dias atrás li um artigo culpando Lula pelo “retrocesso”. Perfeita
injustiça. Na campanha, Lula foi bastante claro sobre o que faria. Ele
expressa o que a maior parte da sociedade pensa, e por isso ganhou. Tudo
perfeitamente democrático, não é esse o ponto. Poderíamos exercitar
plenamente a democracia, com a sabedoria de preservar uma agenda básica
de modernização.
De
minha parte, o que mais incomoda é o experimentalismo, o país em que
“até o passado é incerto”, na conhecida frase de Pedro Malan. O prêmio
Nobel Douglass North escreveu longamente sobre a importância das
instituições para “reduzir as incertezas próprias da interação humana
fornecendo os incentivos para que haja cooperação e desenvolvimento”.
Isso é perfeitamente lógico. Por que alguém investiria uma enorme
quantidade de tempo e dinheiro desconfiando seriamente que as regras do
jogo vão mudar daqui a dois ou três anos? Há uma extensa literatura
sobre esse tema. O próprio North vai longe, na história moderna,
mostrando como boa parte do sucesso econômico inglês, à época da
Revolução Industrial, se deve ao redesenho institucional e à redução da
instabilidade produzida pela Revolução Gloriosa, que fixou alguns
parâmetros na política inglesa: limites claros às prerrogativas reais,
sob a common law; soberania do Parlamento, na tributação; Judiciário
independente; e segurança quanto aos direitos de propriedade.
A
série de reformas que o país fez nos últimos anos foi precisamente na
direção de uma maior estabilidade institucional. Foi esse o sentido da
Lei Geral das Agências Reguladoras, aprovada em 2019, e do Marco do
Saneamento Básico, que abriu o setor para a competição e vem atraindo
uma montanha de investimentos. Ou ainda da reforma trabalhista. Estudo
feito por pesquisadores da USP e do Insper mostrou como a regra inibindo
a litigância de má-fé resultou em um aumento de 1,7 milhão de vagas no
país entre 2017 e 2021. Daria para ir longe nisso. São reformas que não
deveriam ser vistas como deste ou daquele governo, mas como nosso
patrimônio comum. Previsibilidade e a garantia de direitos interessam ao
elo mais frágil da vida social. A quem toma risco, empreende, investe, e
a quem consegue um bom emprego porque alguém investiu. Nossa
incompreensão sobre o tema talvez venha do clássico problema da
prevalência do Estado sobre a sociedade na vida brasileira. Daí a imensa
carga tributária, o peso desproporcional da máquina pública e a
burocracia infernal em um país em que os “donos do poder” ocupam o
centro do palco, e o indivíduo e seus direitos dançam conforme a música.
O
problema é que estamos perdendo tempo. Um país pode sempre mudar de
direção, mas ser jovem apenas durante algum tempo. E o nosso está
passando. Há quatro décadas, tínhamos 45 milhões de pessoas com até 14
anos, e pouco mais de 7 milhões de idosos. Daqui a menos de quatro
décadas, será o oposto. Teremos 73 milhões de idosos, e apenas 28
milhões abaixo dos 14. Estamos diante de um maremoto. O detalhe é que o
caminho para a prosperidade passa por aumentar a produtividade e
promover a abertura de mercado, a boa regulação, a segurança jurídica e a
boa educação de verdade, não de mentirinha. Era sobre isso que Mario
Covas falava, em nossa primeira eleição presidencial, quando dizia que
precisávamos de um “choque de capitalismo”. Coisa que, trinta e tantos
anos depois, parecemos ainda não compreender.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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