BLOG ORLANDO TAMBOSI
Até cem crianças estariam em fila de bloqueio da puberdade em um ambulatório especializado em gênero do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Cem
crianças entre quatro e 12 anos podem ter suas puberdades bloqueadas
através de medicamentos no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de
Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP, noticiou neste domingo (29) o G1. Além
delas, 180 jovens de 13 a 17 anos poderão receber hormônio do sexo
oposto e 100 adultos a cirurgia de mudança de sexo.
As
três intervenções têm a intenção de tratar a condição que o Código
Internacional de Doenças (CID, hoje na 11ª edição), da Organização
Mundial da Saúde, chama de “incongruência de gênero” e o Manual
Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM, em 5ª edição, da
Associação Americana de Psiquiatria) chama de “disforia de gênero”: um
persistente e profundo mal-estar com o sexo com o qual se nasceu, e
desejo de pertencer ao outro sexo.
Os
tratamentos são regulados no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina. O
tratamento hormonal pode ser iniciado a partir dos 16 anos com o
consentimento de pais ou responsáveis, a cirurgia é permitida apenas a
partir dos 18 anos. O bloqueio da puberdade nas crianças tem a maior
exigência do CFM: só pode ser feito em caráter experimental.
Um
dos principais problemas da recomendação do bloqueio é que, segundo 11
estudos diferentes, o número de crianças com disforia (disfóricas) que
se resolvem após a puberdade sem necessidade do processo
transexualizador está entre 60 e 90%. Logo, a expectativa é de uma
maioria de desistências. Porém, quando se faz o bloqueio de puberdade,
os médicos e terapeutas podem estar interferindo na chance dessa
remissão espontânea. Outro problema é que ninguém sabe ao certo qual é o
risco das drogas usadas.
Procurado
pela Gazeta do Povo, o ambulatório do Instituto de Psiquiatria do HC da
USP não respondeu a tempo do fechamento da reportagem, mas assim que
retornar terá sua explicação publicada neste espaço.
Bloqueio de puberdade: tratamento envolto em ignorância, potencialmente perigoso
O
protocolo do bloqueio de puberdade foi desenvolvido pelos holandeses.
Os Países Baixos são a referência global no assunto do tratamento da
disforia. Não há droga aprovada nos Estados Unidos com essa indicação,
mas o Lupron (nome genérico leuprorelina ou leuprolida), que era
indicado para câncer de próstata e endometriose (problema de útero), é o
medicamento mais popular para esse fim — é um uso off-label, ou seja, é
um reposicionamento ou repropósito, exatamente como se fez com
ivermectina e hidroxicloroquina quando houve necessidade de procurar por
um tratamento precoce para Covid-19. Já usado para castrar quimicamente
de forma reversível pedófilos reincidentes, o Lupron chamou a atenção
por ter aparentemente ajudado a retardar puberdades anômalas, que
aconteciam cedo demais (seis ou sete anos).
Em
2017, a Academia Americana de Pediatria (AAP) e a Sociedade Endócrina
internacional classificaram como de “baixa qualidade” a escassa
literatura a respeito do bloqueio de puberdade. Ainda assim, viam o
tratamento como promissor. A empresa de tecnologia em saúde Komodo
Health compilou dados de planos de saúde a respeito e descobriu que 4780
crianças foram postas no bloqueio medicamentoso entre 2017 e 2021. No
período, o número de diagnósticos de disforia aumentou quase três vezes
para as idades entre seis e 17 anos nos Estados Unidos. A estatística
não cobre os casos em que não houve cobertura dos planos e as famílias
pagaram do próprio bolso.
O
jornal New York Times contou em novembro passado casos de jovens tanto
satisfeitos quanto descontentes por terem tido a puberdade interrompida.
Uma menina deprimida de 11 anos expressou desejo de ser menino e foi
posta no tratamento, junto a antidepressivos. No começo do terceiro ano
tomando os bloqueadores, os médicos descobriram uma redução de 15% em
sua densidade óssea. Ela estava com osteoporose, uma doença associada a
idosas, aos 14 anos. Nessa idade, os ossos deveriam estar ganhando entre
6 e 12% de densidade todo ano. “Fiquei furiosa”, disse a mãe, “fico
preocupada porque podemos ter causado danos permanentes”.
Na
Suécia, que viu uma explosão nos casos de meninas com disforia na
última década, um documentário de televisão mostrou o caso de uma
criança que tomou os medicamentos entre 11 e 14 anos, sem acompanhamento
dos ossos, que sofreu uma séria fratura na coluna com osteoporose,
ficando com uma deficiência permanente.
O
Times encomendou uma análise envolvendo sete estudos dos Países Baixos,
Canadá e Inglaterra, incluindo ao todo 500 crianças disfóricas tomando
bloqueadores a diferentes tempos entre 1998 e 2021. Na média, elas não
ganharam nenhuma densidade óssea. Comparadas a outras crianças,
perderam. Essa análise, que ainda deixa a desejar, deve ser a melhor
disponível até o momento. Há também relatos de outros problemas, como
uma incapacidade de ter orgasmos após crescer e fazer a transição, além
de falta de tecido genital até para fazer a cirurgia de mudança de sexo.
Toda
a questão da disforia de gênero é envolta em controvérsia e ignorância,
mas há outro fator de interferência: o viés político. O jornalista
americano Jesse Singal, que acompanha a questão há anos, comenta que um
artigo publicado em fevereiro de 2022 no grupo JAMA de publicações
médicas foi tratado em público como se dissesse o oposto do que tinha
nos dados. O estudo, com primeira autoria de Diana Tordoff, foi feito
com crianças da Clínica de Gênero do Hospital Pediátrico de Seattle, na
costa oeste do país.
Uma
das autoras do estudo, a médica Arin Collin, divulgou-o nas redes
sociais alegando que ele mostrava que “bloqueadores de puberdade e
hormônios afirmativos de gênero estiveram associados a uma redução de
60% no risco de depressão moderada a severa e 73% no risco de suicídio
durante um acompanhamento de 12 meses”. Mas não era verdade. Em uma
tabela posta no material suplementar do artigo, fica claro que “entre as
crianças que começaram a tomar hormônios, não há melhoria estatística
genuína”, comenta Singal. “As crianças no estudo chegaram com o que
parecem ser taxas altas e alarmantes de problemas de saúde mental,
muitas delas começaram a tomar bloqueadores ou hormônios, e elas saíram
do estudo com o que parecem ser taxas altas e alarmantes de problemas de
saúde mental”. Parte do problema, diz ele, é que nem mesmo publicações
jornalísticas de alta qualidade fazem checagem de fatos com estudos como
esse.
Depois
de um acúmulo de casos de jovens arrependidos de terem feito o processo
transexualizador e processos judiciais, o Reino Unido fechará este ano o
seu maior centro de identidade de gênero, a clínica Tavistock, em
Londres. O jornal britânico The Telegraph informou no último dia 20 que a
clínica estava dando as drogas bloqueadoras “para quase toda criança”
que era encaminhada para lá. O próprio Serviço Nacional de Saúde do país
informa que esse tratamento foi aplicado em 96% das crianças
encaminhadas para avaliação em clínicas especializadas de
endocrinologia.
Aidan
Kelly, médico que trabalhou no serviço, disse que a equipe médica tinha
dúvidas sobre as crianças de fato serem “transgênero” (disfóricas), mas
que essas preocupações “não eram ouvidas”. O número de crianças
procurando o serviço aumentou 20 vezes em dez anos (2011-2021). O
serviço da Tavistock será substituído por outro, mais descentralizado.
Até mesmo “gênero” é controverso entre especialistas
Outro
ponto de controvérsia é a própria adoção do termo “gênero” e seus
derivados. O termo é usado para se referir a homens e mulheres, como
categorias, no mínimo desde o século XVI em português, mas num sentido
de “tipo” de pessoa. A filósofa da biologia Helena Cronin, em 2017,
escreveu que a adoção do termo “gênero” no lugar de “sexo” foi sobretudo
fruto de uma campanha de ativismo político dos anos 1960 que confundiu
igualdade de direitos com ausência de diferenças factuais entre homens e
mulheres.
“Essa
campanha triunfou. O sexo agora luta para ser ouvido em meio a um
clamor de desentendimentos, fabricações e denunciações”, escreveu a
especialista. Outro cético quanto à distinção sexo-gênero é Marco del
Giudice, professor de psicologia da Universidade do Novo México, nos
Estados Unidos. Para ele, a distinção presume saber qual parte é
biológica e qual é puramente cultural em ser homem ou mulher, mas não se
sabe. A recomendação que vem dos diálogos de Sócrates é que, para ser
entendida, a natureza precisa ser partida “em suas juntas”, como um
açougueiro faz ao escolher cortes de carne. A “junta” entre sexo e
gênero não é nítida o suficiente para justificar a distinção.
Postado há 23 hours ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário