domingo, 26 de fevereiro de 2023

A fantástica fábrica de censurados

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Poucos exemplos bastam para mostrar que a palavra “mutilação” não é um exagero no caso — e, vejam, tudo isso aconteceu com a anuência da companhia que lida com os direitos das obras de Roald Dahl desde sua morte. Via Crusoé, a crônica de Ruy Goiaba:


Roald Dahl (1916-1990) é um dos mais famosos e populares escritores de histórias infantis do Reino Unido — aqui no Brasil, ele talvez seja mais conhecido pelas adaptações de suas obras para o cinema, como A Fantástica Fábrica de Chocolate e James e o Pêssego Gigante. Dahl acaba de se tornar mais uma das vítimas da censura do bem, aquela que mutila livros porque só quer proteger as crianças (e alguns supostos adultos) das coisas feias do mundo.

Resumindo o caso, a Puffin Books — que publica os livros de Dahl e é subsidiária da Penguin Random House, uma das maiores editoras do mundo — anunciou que tinha submetido a obra do escritor a uma revisão de “sensibilidade”, com mudança ou supressão de trechos que pudessem ser considerados ofensivos. A alegação era que Dahl escrevera os livros muito tempo atrás e eles precisavam de atualização. O jornal The Telegraph deu-se ao trabalho de contar e acabou descobrindo centenas de mudanças nas histórias. Agora, no mundo de Dahl, não existem mais “gordos” nem “feios”, os homens-nuvem de James e o Pêssego Gigante viraram pessoas-nuvem, os filhos do Sr. Raposo em O Fantástico Sr. Raposo passaram a ser filhas e uma menção a “tratores pretos” nesse livro foi cortada (não é piada; quem dera fosse). Em Matilda, sumiu a citação a Rudyard Kipling, aquele odioso colonialista britânico, e Jane Austen entrou no seu lugar.

Esses poucos exemplos bastam para mostrar que a palavra “mutilação” não é um exagero no caso — e, vejam, tudo isso aconteceu com a anuência da companhia que lida com os direitos das obras de Dahl desde sua morte. Neste ponto, leitores brasileiros devem se lembrar das polêmicas envolvendo passagens racistas nas obras de Monteiro Lobato, ainda hoje nosso maior escritor para crianças. A pessoa física de Dahl também não era flor que se cheirasse, a começar pelo antissemitismo. Salman Rushdie, que entende duas ou três coisas sobre censura e foi esfaqueado recentemente por causa daquilo que escreveu, destacou isso ao tratar do caso no Twitter: Dahl não era “nenhum santo”, mas a censura é absurda, e tanto a editora quanto o espólio deveriam se envergonhar.

(Alguém na rede social criticou Rushdie pela parte do “nenhum santo” e afirmou que ele estava querendo pagar pedágio à esquerda censora. O autor de Os Versos Satânicos respondeu ironicamente: “Ele [Dahl] era um antissemita confesso, com fortes inclinações racistas, e se juntou ao ataque contra mim em 1989 [ano da fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini]. Mas obrigado por me repreender por defender seu trabalho da execrável Polícia da Sensibilidade”. Ou seja: se Salman Rushdie, que tem ótimas razões para odiar Dahl, consegue argumentar que a obra dele não deve ser desfigurada, você também pode.)

Especialistas mais habilitados a falar sobre literatura infantil do que eu, como o colunista da Folha Bruno Molinero, apontam que o ataque a Dahl é uma das consequências de a literatura infantojuvenil não ser encarada como arte, e sim como uma espécie de arma pedagógica para que as crianças aprendam bons hábitos e se tornem bons cidadãos. Falei disso quando escrevi aqui sobre o saudoso João Carlos Marinho, cujo livro mais conhecido, O Gênio do Crime, foi uma das minhas portas de entrada na literatura adulta — inclusive por seu glorioso desinteresse em dar lições de moral. Hoje, a obra de Marinho seria impublicável: não consigo imaginar o “gordo” Bolachão, detetive-mirim de 12 anos, tentando se passar por uma criança “perfeitamente meningética” de 8 anos para elucidar um caso. Fariam uma bela fogueira para imolar o livro e o autor.

O problema, acrescento eu, é que obras adultas também estão na mira da Polícia da Sensibilidade, muito empenhada em tratar todos os leitores como crianças que precisam ser protegidas de expressões ofensivas. Há várias maneiras de lidar com passagens problemáticas na literatura, seja ela infantil ou adulta: contextualizar, explicar por que o trecho é problemático, ressaltar as diferenças entre a época em que o livro foi escrito e a nossa. Mas o espírito autoritário que anima a pior esquerda e a pior direita prefere proibir ou reescrever o passado. A velha censura, como a que proibiu O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, por mais de 30 anos no Reino Unido acabava servindo de propaganda para as obras; a nova se pretende moderninha e inclusiva, mas é basicamente uma versão 2.0 de Josef Stálin apagando seus inimigos políticos de fotos antigas.

Espero que a literatura e as outras artes sobrevivam à fantástica fábrica de censurados. Mas não boto muita fé nisso: temo que os escritores das próximas gerações já venham com o chip da autocensura e mais preocupados em serem reconhecidos como gente boazinha, “mudar o mundo” com suas obras, aquelas coisas. O mundo continuará sendo a porcaria que é, mas a arte estará cheia de bons sentimentos — aqueles que, como dizia André Gide, fazem a má literatura.

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A GOIABICE DA SEMANA

O destaque desta vez vai para a pluralidade do grupo de trabalho que o governo Lula criou para “combater o discurso de ódio”, que será presidido pela ex-deputada Manuela D’Ávila e terá a participação de representantes da sociedade civil. Esses representantes — ou pelo menos os nomes que foram divulgados até agora — cobrem muito bem o espectro que vai da centro-esquerda até a esquerda muito esquerdistaça pra valer mesmo. Compreensível: se o discurso é de ódio, quem é de esquerda só pode ser vítima, jamais propagador. É um espectro político que se compõe exclusivamente de ursinhos carinhosos.

Manuela D’Ávila, que vai comandar o grupo de trabalho sobre “discurso de ódio”
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